sábado, agosto 28, 2004

De praças e estátuas

Caros e Caras,
Paz e saúde!

É possível avaliar a história de um país pela quantidade de praças e estátuas que possui. Uma considerável quantidade de praças significa muito espaço para estátuas. Muitas estátuas equivalem a muitos feitos históricos, lutas, heróis e vitórias. Ou a existência de muitos artistas, como Aleijadinho e Michelangelo, por exemplo. Salvo as estátuas religiosas, ninguém ergue estátuas a um medíocre, a não ser o próprio medíocre quando no poder.

Seguindo esse tortuoso caminho da minha obscura teoria, uma luz opaca me orienta a deduzir que o Paraguai deve ser um país com uma, duas praças no máximo. Por outro lado, não posso dispor do mesmo frágil argumento contra Sadam Husein. Ditador, sim. Mas me recuso a chamar de medíocre alguém que tem sua fortuna avaliada em “lhões” de dólares (ainda que com poucas chances de poder desfrutá-la) e que, além de ex-amigo dos americanos, tornou-se o bode expiatório da maior fria envolvendo os ex-parceiros desde o Vietnã.

A vida de muitas cidades italianas gira em torno a uma praça. São pessoas que se encontram, crianças que brincam, a fina-flor do comércio que movimenta a economia da cidade ou vilarejo, bêbados, cães, multas, bicicletas, idosos, muitos idosos, a igreja...
Interessante notar que, com excessão das crianças que visitam as praças em excursões escolares, pouca gente sabe quem são e o que representaram os personagens imortalizados nas estátuas. Garibaldi ganhou, além de estátuas, ruas, praças e escolas. Mas ninguém soube contar-me por quê. E se espantam ao saber que sua mulher Anita, na realidade chamava-se Ana e que era brasileira. Sabem apenas que por alguma razão Garibaldi é chamado de “herói de dois mundos”. Gente estranha...

Ranuccio e Alessandro Farnese a cavalo (ambos) e um bispo (a pé!). São as três estátuas que compõem a Piazza Cavalli (Praça dos Cavalos), no centro de Piacenza. “É um bispo aí, que foi muito importante pra cidade. As estátuas com os cavalos são dos irmãos Farnese, que comandaram Piacenza até a última invasão dos húngaros. Uma das patas de ambos os cavalos está levantada porque, segundo dizem, acabaram de pisar na merda que os patrões fizeram na cidade.” Quem foi o bispo fico devendo para uma outra carta; quanto aos Farnese, na realidade eram pai e filho. Bastaria uma olhada nas placas nas bases das estátuas para descobrir que o segundo nasceu quando o primeiro havia trinta e dois anos e não cinquenta, cinquenta e cinco anos, que o permitiria de ser pai de ambos, com uma longevidade impensável à época. Quanto ao fato da pata que não toca o chão, trata-se de uma convenção na construção de estátuas: as quatro patas tocando o chão indicam que o personagem já não ocupava o cargo quando morreu; com uma das patas levantadas informa que o personagem ainda ocupava o cargo; duas patas levantadas, o personagem morreu em batalha. Ah, ia esquecendo: Piacenza jamais foi invadida pelos húngaros, mas pelos austríacos. E os Farnese não deixaram herdeiros masculinos, extinguindo a dinastia. Tais informações não despertam o interesse de alguém habituado a estar rodeado de história, como o meu amigo piacentino DOC das afirmações acima. (DOC em italiano significa Denominazione d’Origine Controllata, expressão encontrada em produtos – vinhos, salames, etc. – produzidos de forma tradicional, teoricamente controlados por um consórcio. É usado na linguagem informal como o nosso “da gema”.)

As praças das cidades históricas ficam repletas de estrangeiros e ninguém se lamenta. Ao contrário, o comércio recebe todos de forma indistinta e com o mesmo sorriso de plástico. Mas nas praças das cidades menos frequentadas por turistas a história é outra: os estrangeiros que se vêem não vão embora e nem sempre são bem recebidos. Especialmente neste momento curioso que vivemos: o congresso italiano estuda um projeto de lei que permitiria o voto aos estrangeiros que vivem de forma regular (não clandestina) no país. Umberto Bossi, da extrema-direita, sugeriu o linchamento sumário dos extra-comunitários em dias de eleição.

A Praça Quinze de Novembro, no centro do Rio, acolheu o início da barraca do angú do Gomes, que só abria à noite e virou mania; a Piazza San Pietro, no Vaticano, não tem bancos. Para sentar, sugiro a Piazza Navona ou a escadaria da Piazza di Spagna, em Roma; a Piazzale delle Crociate, em Piacenza, foi o local de onde partiu a primeira Cruzada da história; em São Paulo, gostava da confusão da Praça da Sé, no centro. Um mundo de gente caminhando apressada, como quem tem algo importante a fazer; Salvador tem a Praça Castro Alves, construída em declive com uma estátua do poeta, de onde é possível ver o imenso e verde mar da cidade.

A cada cidade, a sua praça. A cada povo, seus heróis.
Mas, como é mesmo o nome daquele famoso herói paraguaio?

Ciao.

terça-feira, agosto 24, 2004

Agua e sabão

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Como disse Vinícius: “As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental!”
Toda mulher quer parecer bonita e espera ser admirada. Vivem dizendo que o importante é o que há no interior, mas gastam horas com o exterior. Nenhuma crítica, apenas constatação. Gosto de apreciar o resultado, apesar de acreditar que a hora do cabeleireiro poderia ser partilhada com a leitura de um bom livro. Na Itália, quem diria, não é diferente.

Se o homem italiano está se tornando um tímido, a mulher italiana descobriu a necessidade de tornar-se mais agressiva. É a lei do mercado. Ou, a lei da selva. Na busca desesperada de um parceiro para a velhice, as mulheres italianas topam qualquer relação. E isso começa a assustar a ala masculina.

A população feminina italiana entre os quatorze e os cinquenta anos está à beira do colapso. Sem outras perspectivas além das fronteiras profissionais, elas viram todos os antigos valores serem destruídos, sem que novos valores surgissem em substituição, criando um vazio que as muitas interrogações não conseguem preencher. Ao contrário, só fazem aumentar o tamanho do buraco.

O normal, por aqui, é um namoro durar oito, dez anos. Depois disso a maioria termina em casamento; muitas vezes encarado pelo casal como mera formalidade moral. Se o fim do namoro acontece por uma separação, dificilmente os ex-pombinhos irão se casar. Como o próprio casamento (assim como o namoro) está se tornando uma convenção em via de extinção, o resultado é que novas famílias deixam de se formar, aumentando a ansiedade feminina.

Os italianos dão uma importância muito grande às relações familiares. Mãe, pai, irmãos, primos e outros parentes, fazem parte do cotidiano das pessoas assim como os automóveis. Com a diferença que não se pode trocar, caso o modelo não seja satisfatório ou apareça um outro, mais econômico. É muito comum encontrar lojas onde a mãe divide a administração com filhos e netos, além de fazer o almoço, buscar as crianças na escola e controlar as despesas pessoais. Quando a corrente se quebra e a imagem do fim da saga da família vem à tona, o elo culpado será sempre a mulher, que não conseguiu arranjar um marido. Se ela estiver solteira e sem um noivo até os trinta, trinta e dois anos ela simplesmente desiste.

Para enfrentar os desafios dos novos tempos, muitas moças decidem dedicar boa parte da juventude aos estudos. O Ministério da Educação Italiano verificou que sessenta e quatro por cento dos estudantes nos cursos superiores são do sexo feminino. A capacitação profissional feminina acaba exercendo uma inibição a mais no já acuado homem italiano. Após a universidade, começa a batalha para mostrar-se competente na esfera profissional e a dedicação costuma ser completa. Até que, numa bela manhã de sol, ela se descobre bem encaminhada na carreira; independente, como exigia a sua rebeldia; dona de uma conta bancária só com o seu nome; livre de decidir onde passar as férias; péssima cozinheira, mas …sozinha!

Uma das saídas encontradas é o casamento com estrangeiros.
Mais dóceis que os habitantes árabes do norte da África, os negros africanos não têm nenhum obstáculo que os impeçam de casarem-se com o tipo de mulher que o cinema e a Tv vendem como padrão de beleza universal. Óbvio que os motivos nem sempre são somente afetivos, mas deixo as considerações filo-socio-antropológicas a cada um.

Como os índios norte-americanos, as mulheres italianas se pintam e vão à guerra. Às vezes, pintadas demais. Vender cosméticos nessa terra dá dinheiro. Mas não somente cosméticos: academias, centros de estética, de depilação permanente, clínicas de cirurgia plástica e toda a chamada indústria da beleza, movimenta boa parte da economia italiana. Satisfação garantida ou suas rugas e celulite de volta.

Depois do primeiro grito de independência feminista, a mulher italiana transformou seu comportamento e hoje decide seu próprio caminho. Algumas, não têm a menor idéia do que fazer com a conquistada igualdade, mas já não existem tabus de nenhuma natureza. Poucas famílias no sul da Itália ainda exigem o noivado dentro de casa, enquanto o presidente Ciampi vai à Tv, defender a retomada dos valores matrimoniais, como premissa para a manutenção dos laços familiares e a sobrevivência e perpetuação do povo italiano.

A presença feminina ocupa todos os espaços do cotidiano, dividindo com o homem mesmo as tarefas mais pesadas. A única exceção é a construção civil, além de uma tímida participação na política. Na Tv, Poucas mulheres conduzem programas sozinhas, mas são muito utilizadas como ornamento e aceitam todas as piadas e comportamentos que as coloquem como mero objeto do desejo. Ou seja: podem ser feministas o quanto quiserem, mas vivem numa sociedade altamente machista, a qual devem respeitar, amar e preservar.

Depois dos seios de silicone e dos lábios artificialmente carnosos, que, mais que moda, tornaram-se uma epidemia deplorável com resultados idem, uma nova tendência começa a ganhar terreno: a da cara limpa, com imperfeições naturais (até já, bisturi!) e roupas mais casuais. Enquanto não surgir a necessidade de uma nova mudança, soprada pelo efeito misterioso do próximo ciclo do El Niño, a mulher italiana acreditará estar no caminho para a redescoberta da personalidade perdida.

O lado positivo da emancipação e da perda dos valores da mulher italiana, pode ser verificado nas estatísticas oficiais: a drástica redução de matrimônios (e nascimentos!) tem provocado uma idêntica redução dos divórcios. Mas nesse ponto deixo as considerações filo-socio-antropológicas…

Ciao.

sábado, agosto 21, 2004

Palafitas

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Quando morava em Salvador conheci alguns bairros da periferia. Ou daquilo que se convencionou chamar de periferia, pois em Salvador, assim como no Rio, não há muita diferença entre centro e periferia. Existem bairros ricos e bairros pobres, e ricos que moram em bairros pobres, assim como pobres que habitam em casas de ricos. Mas o bairro em questão não foge à regra de muitos outros bairros de Salvador: começou como uma invasão, foi protegido pelo poder político em período eleitoral, recebeu o status oficial de bairro ganhando algum nome de santo (porque nenhum político gostaria de ver o próprio nome ou de algum parente ligado àquela miséria) e, em seguida, solenemente esquecido por todos. Mesmo desconhecendo o nome “oficial” de Alagados, acredito que ele não chegou a ser adotado, confirmando outra característica de Salvador de apelidar ruas e lugares com a primeira piada do gaiato de plantão.

(Fazendo uso do meu hábito prolixo, esclareço que, apesar da legislação contrária, existe sim um costume de batizar ruas, praças e avenidas com o nome de políticos ainda vivos. No início dos anos oitenta, conheci Ilhabela e a sua avenida Jânio Quadros. O fato chamou a minha atenção, pois já conhecia a tal lei. Anos depois, morando em Salvador, pude caminhar por diversas vias com o nome de Antônio Carlos Magalhães, político que não teve sua morte divulgada até o momento em que escrevia esta carta. Portanto, que ninguém estranhe a minha observação sobre doar, em vida, o próprio nome a vias ou bairros do parágrafo anterior.)

Alagados possuía uma característica que se encontra com maior facilidade nas comunidades mais necessitadas: a solidariedade. Quando o distribuidor local de cerveja decidiu não mais entregar o produto de forma pulverizada, mas concentrando em um único bar todos os pedidos, os envolvidos se reuniram e decidiram que somente os antigos clientes poderiam continuar comprando o produto pelo preço do distribuidor, permitindo, assim, que aqueles que já vendiam a cerveja gelada na janela da própria casa continuassem a fazê-lo. E assim foi.

Construídas sobre o mar, as palafitas tinham a desvantagem de não possuir água encanada, eletricidade ou rede de esgoto. Vez ou outra, uma notícia perdida no jornal anunciava a morte de outra criança caída das palafitas. Mas isso jamais chegou a ser notícia de verdade. E era exatamente essa a maior desvantagem do bairro, as pessoas que moravam ali não tinham opção. Pior: eram estigmatizadas até mesmo pelos moradores do bairro de Coutos, que é o nome do bairro, do outro lado da avenida, sobre a terra firme. Coutos era um bairro miserável. Alagados, a miséria dentro da miséria.

Num outro cenário, a necessidade de sobreviver às invasões bárbaras colaborou na decisão de construir palafitas sobre as pequenas ilhas separadas por canais e pela laguna. Aos poucos, os espaços sobre a terra firme se reduziram e as construções avançaram sobre os canais e sobre a laguna salgada. A pequena comunidade transformou-se em uma potência marítima que chegou a dominar o comércio na velha Europa. Hoje, Veneza é uma potência do turismo.

Apesar de concluir que prefiro a Veneza dos filmes, impressionou-me a arquitetura de ruelas estreitíssimas do centro; a necessidade de manutenção e substituição periódica das madeiras submersas que sustentam algumas construções; os caminhões sem roda que transportam todo tipo de material pelos canais (inclusive areia e material de construção a granel); a multidão que se transforma em um imenso polvo, espalhando seus imensos tentáculos por todos os cantos; a beleza quase invisível, sufocada pelo calor e humidade insuportáveis, barracas de camelôs, turistas, flashes, pombos e gaivotas.

Em Veneza é possível alugar bicicletas, mas eu desaconselho. Falta espaço entre a multidão e sobram pontes arcadas a serem atravessadas. Um passeio de gôndola custa cem euros. São quarenta minutos entre os canais menores e o Grande Canal, mas o sorriso irônico dos pedestres irá lhe fazer crer no maior mico da sua vida. Melhor deixar pra lá. Lanchas fazem todo o percurso de Veneza e entre as ilhas, mas é melhor comprar um mapa e decidir antes o que visitar, pois as cabines das lanchas são sufocantes no verão. Uma boa dica, além dos museus, monumentos e teatros, é a exposição das máquinas de Leonardo (aquele…). Mas você deve se apressar, pois a exposição termina dentro de alguns dias.

A famosa Piazza San Marco com os cafés dos cartões postais tem muitos outros atrativos, calor e multidão permitindo. Outra coisa muito famosa na Piazza San Marco são os preços dos cafés. Ao contrário do que se vê nas imagens dos cartões, as mesas ao ar livre estavam vazias. Mostrei e esclareci uma curiosidade às minhas filhas: os garçons que ali trabalham pagam para fazê-lo. Cada um deles adquire uma taxa diária (que muda conforme a estação) que lhes dá direito de atender às mesas, fazendo jus aos dez por cento do serviço e às gorjetas. No fim do dia sempre levam para casa muito mais do que pagaram. Por esse motivo, os garçons dos cafés da Piazza San Marco são, na grande maioria, idosos. Eles não vendem o próprio lugar por dinheiro nenhum!

Mas em Veneza também existe um tipo de solidariedade. Os chineses se ajudam mutuamente e começam a tomar conta dos pequenos cafés, lojas de souvenir, de roupas e calçados. Em breve, o mandarim será a segunda língua oficial de Veneza.

Um amigo mais atento poderia ter notado que falei de Alagados no passado, como se não existisse mais. Para falar de Veneza puxei-a do passado, falei do presente e sugeri um futuro. Foi proposital: espero que o bairro dos Alagados não exista mais, que finalmente os nossos governantes tenham decidido ser solidários, eles também, e tenham cumprido velhas promessas. Espero que não exista mais a possibilidade de uma criança morrer entre os troncos velhos das palafitas, no esgoto social da pobreza daquele lugar. É uma ilusão, eu sei. Mas enquanto Veneza é mais bela nos filmes, Alagados, em comum, possui somente o mau cheiro. E não há Felini que a faça bela.
Ciao.

quarta-feira, agosto 18, 2004

Il mercato

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Sabe aquela feira de bairro que acontece uma, duas vezes por semana, onde se pode comprar frutas e verduras frescas e onde se fala mal da vida dos outros? Pois é, aqui não tem! Não que o italiano não fale mal da vida dos outros, mas a feira da região onde moramos não vende alimentos. Vende de tudo, menos frutas e verduras. E se chama “mercato ”. “Il Mercato ”. Todas as quartas e sábados as barracas lotam o centro da cidade e oferecem boas e más oportunidades. Ocupando a Piazza Cavalli e a Piazza Duomo, as duas principais praças da cidade, interligadas por uma rua comercial exclusiva aos pedestres, a feira acolhe uma infinidade de pequenos comerciantes, na maioria, italianos.

Noutro dia um policial pediu-me para descer da bicicleta: no meio da feira é proibido o trânsito de qualquer veículo. Tive mais sorte que muitos. Descobri, através de uma edição histórica do jornal Libertà, comemorativa aos seus cento e vinte anos, que um sujeito foi julgado e multado em duas mil liras por transitar de bicicleta em alta velocidade no centro da cidade, em fins do século dezenove. Menos que um outro, multado por chicotear forte demais o cavalo que puxava a sua carroça: três mil liras. Parece que as bicicletas têm longa tradição na sociedade piacentina. Assim como as multas…

A chinesa nos atende sorrindo, apesar de termos ido solicitar a troca de um agasalho esportivo, curto demais para uma menina em infinita fase de crescimento. Ela sabe que dentro de dois meses tornaremos para um outro agasalho. O preço? Um quinto do valor na loja de artigos esportivos.

Sapatos, bolsas, bijuterias, panelas, ferramentas, perfumes, roupas e todo tipo de quinquilharia produzida na China ou em Nápoles (uma espécie de Paraguai local). Em geral, mercadoria descartável, mas tem, também, mercadoria boa com preços realmente de ocasião. O vendedor de sapatos esclarece: “Esse tênis é igual aquele famoso lançado nesta semana. Cópia idêntica! Só a marca e o preço são diferentes.” Barracas, mesmo, são poucas. Os caminhões ou furgões chegam às quatro e meia, cinco da manhã. Abre-se a lateral do veículo que se transforma em estantes, prateleiras e balcão. O único trabalho é arrumar a mercadoria. Não faltam nem mesmo as bancas de artesanato, montadas pelos remanescentes dos hippyes.

Nos dias de feira, boa parte do comércio da zona fecha, exceto aos sábados, dia de grande movimento. Nas outras áreas o comércio fecha às tardes de quinta-feira, para poder funcionar aos sábados à tarde sem ferir a carga horária semanal dos empregados. A Pizzaria D’Orologio (a minha preferida) na Piazza Duomo, não abre para almoço às quartas-feiras. Deve estar perdendo uma ótima oportunidade, pois não há opções. O labirinto de barracas, chineses e bugigangas costuma separar famílias. E não existe nenhum lugar aberto onde se possa comemorar o reencontro.

No aniversário das cidades e vilarejos, ou no dia do padroeiro, costumava-se fazer uma feira com exposição de tratores, algum artesanato e comida local. Mas isso não era suficiente para atrair um público que compensasse todas as despesas das prefeituras. Aos poucos, abriu-se a oportunidade da participação de pequenos comerciantes da província. Pronto! Adeus festa caipira! Os tratores continuam lá, mas são os únicos representantes de um tempo que se foi. As feiras são todas iguais. Muda somente a sua dimensão, pelo fato da “festa” ser mais ou menos tradicional. A feira de Santo Antonino, em Piacenza, é muito famosa e ocupa todo o Passeggio Publico, uma longa rua fartamente arborizada, destinada aos pedestres. As ruas adjacentes começam a ser ocupadas pelas barracas que aumentam a cada ano. É impossível visitá-la inteira e estar vivo ao final do dia. Dura somente o dia 4 de junho.

A senhora, dona de uma elegância discreta, caminha silenciosa entre malas e bolsas expostas; duas jovens escolhem, animadas, a mochila com a cor da roupa; o dono da barraca de casacos de pele, dispensa às baixinhas equatorianas um tratamento de rainhas: elas são as suas melhores clientes. Um casal de anciães já comprou peças de fogão, tênis para criança, um xale, um colete e estão negociando a compra de um cobertor; um rapaz espera o vendedor terminar o embrulho para presente de um vidro de perfume; Dom Anselmo, o pároco da catedral, passa indiferente.

A desenvoltura das pessoas em pechinchar, comprar e levar para casa as mercadorias em sacos plásticos reaproveitados, cria um tipo de solidariedade silenciosa. São as mesmas pessoas que frequentam as lojas caras das ruas chiques. Ocasionalmente, se ouvem desculpas improvisadas, quando dois conhecidos se encontram no meio da feira: “Estou programando pintar a casa…”

Dia de feira, folga de camelô. Como não têm licença, os africanos desaparecem com medo do maior controle da polícia e das denúncias dos feirantes. Só os vendedores de castanha assada circulam livremente. Isso, de meados de setembro até o dia de finados, que, como manda a tradição, marca o fim do período da castanha no Norte.

Ao meio-dia a mercadoria começa a ser recolhida. Às quatro da tarde a limpeza pública já deixou tudo como no dia anterior. Resta apenas a certeza da transitoriedade das coisas. E a impressão de que também nós somos descartáveis.

Hum…
Acho que uma barraca de pastel seria um bom negócio.

Ciao.

domingo, agosto 15, 2004

Ferragosto

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Toda sexta-feira em Salvador é dia de branco. As pessoas vestem a cor da paz em homenagem ao Senhor do Bonfim, padroeiro da cidade. Muitos vão até a Colina Sagrada para a missa, ou simplesmente para, num curto passeio, absorver a energia que se multiplica e se divide entre os passantes. Próximo ao Carnaval, todos os dias são sextas-feiras e a euforia transborda dos copos de cerveja e dos cocos gelados; inunda as praias num tom dourado e se mistura com uma água ora verde, ora azul. Quando isso acontece, todos se tornam baianos e comungam a mesma fé: o Carnaval das cores.

Como falar de uma emoção a quem nunca a viveu? A vocês, pobres mortais que desconhecem a sensação descrita no parágrafo acima, é inútil dizer que o clima desta semana na Itália é idêntico àquele respirado em Salvador antes do Carnaval. O sacro e o profano se misturam naquele que os italianos chamam de o mais louco e mais esperado fim-de-semana do ano. Quinze de agosto, Assunção de Nossa Senhora: feriado na Europa católica, que na Itália chama-se Ferragosto.

As estradas estão paradas, nada se move. Um mar de carros cobre cada pedaço de asfalto, um odor acre, exalado da centopéia automobilística, sugere já não haver vida dentro dos veículos, cujos ocupantes morreram (provavelmente) de impaciência ou pelo calor saariano que os ventos africanos nos sopraram. A Europa arde. E isso nem chega a ser um pleonasmo.

O país se divide em dois: a Itália das férias e a Itália em férias.

A Itália das férias se encontra nas cidades de praia ou de montanha, onde cada espaço conquistado é defendido como a virgindade da filha única pelo pai arruinado: “…é tudo o que me resta. Que ninguém se atreva ou leva bala!” O aluguel diário da espreguiçadeira e do guarda-sol custam mais caro que comprá-los novos, mas você tem a vantagem de comprar, também, o espaço que eles ocupam, pois já estão montados e o resto da areia foi tomado por quem chegou antes, muito antes de você. Pague e não reclame, ou algum turista espertinho pode pagar na sua frente e adeus espaço! No restaurante, a sensação é maravilhosa (se você chegar antes do meio-dia) pois os garçons são italianos e dá pra entender o que eles falam; ao contrário das praias e pontos turísticos, onde milhares de línguas e dialetos se misturam num exercício confuso de democracia. Vá em grupo, assim o sorteio para ver quem irá deixar o olho para pagar a conta pode livrar sua cara.

A Tv, sádica, mostra o resultado dos inexperientes que deixaram a viagem para a última hora e dão dicas de como voltar vivo das férias.
- Onde está a sua carteira e o celular? – Pergunta a repórter ao jovem prestes a entrar no mar.
- Na pochete… – Responde o rapaz.
- E onde está a pochete?
- Na sacola…
- … E a sacola? – Insiste a repórter.
- Embaixo do guarda-sol.
- E quem está tomando conta?
- …Ninguém!!??! – Diz o jovem, já atônito.
Mais de noventa por cento dos italianos agem desta maneira, mas não contem aos ratos de praia de Copacabana, acostumados com o arrastão e outras modalidades de furtos.

Nas cidades de montanha, onde ainda é possível respirar e dormir à noite sem ar-condicionado, é preciso fazer reservas nos hotéis que abrem neste período com um ano de antecedência, normalmente ocupados pelos mesmos idosos por anos a fio. Não espere encontrar nestes locais nada de excitante, além do ar puro e restaurantes lotados. De resto, é tudo igual.

A Itália em férias não existe. Os bares estão fechados, as padarias estão fechadas, as farmácias estão fechadas, as bancas de jornais estão fechadas. Enfim, a cidade está fechada. Somente as piscinas públicas estão abertas, mas os funcionários te olham com desaprovação tão profunda, que você não consegue esquecer nem por um minuto de que eles também não viajaram de férias e, pior: estão trabalhando! A cena se repete em todas as cidades entre o mar e a montanha. As únicas exceções são Roma e Florença, por causa do grande fluxo turístico e apesar do calor abafado. Mas encontrar um restaurante aberto naquelas cidades requer paciência, espírito aventureiro e muita fome.

Há três anos tivemos um vazamento na banheira que provocou uma infiltração no teto do vizinho de baixo. Chamamos o nosso encanador, que é o único autorizado a instalar o aquecedor de água e todas as torneiras com “C” e “H” (cold – frio e Hot – quente, em inglês, mas que eles traduzem como caldo – quente em italiano e H de …ah! Quem se importa?). Dois dias depois ele nos respondeu, da França, para informar que voltaria em dez dias. Procuramos outros profissionais, mas eles estavam todos em férias. O serviço de emergência da prefeitura nos sugeriu fechar o registro e tomar banho na casa de algum amigo. Inútil tentar explicar que todos os amigos também estavam de férias. Para nossa sorte, o cunhado de um amigo do nosso vizinho, um outro encanador (o sujeito, não o vizinho), não havia viajado, mas nos informou que cobraria uma taxa para sermos atendidos antes das inúmeras outras emergências. Veio, quebrou a parede, não descobriu o vazamento e só voltou quinze dias depois, quando o nosso encanador já havia feito o conserto. E nos apresentou a conta por abrir e fechar o buraco na parede. Um hotel nos teria saído mais barato.

Domingo, 15 de agosto. Ferragosto. Quando for programar sua viagem à Itália, lembre-se: evite esta data. Vista-se de branco e vá ao Bonfim. E reze por nós.

Ciao.

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Post Sctiptum:


Atualização sobre o tema "Ferragosto" aqui.

sábado, agosto 14, 2004

Risotto

Caros e Caras,
Paz e saúde!

A região de Piemonte, no norte da Itália, é a terra dos risotos. Com o clima que deve estar fazendo no Brasil, pensei em sugerir como opção para as noites mais frias, pois deve ser servido quente. Antes, algumas considerações.

A regra gastronômica italiana pede antipasto, primeiro prato (massa ou risoto), segundo prato (carnes), queijo e sobremesa. Tudo deve durar umas quatro horas. Em cada etapa, um vinho diferente. Peixe não combina com queijo, portanto, nada de queijo ralado sobre o risoto de frutos do mar. Não sou um conhecedor de vinhos, mas evito os brancos quando o produto é muito transparente (sinal de que passou por processo químico para clarear, cujos resíduos me provocam fortes dores de cabeça) e esqueço um pouco a regra que manda servir vinho branco com peixes. Faço de conta que é tudo bacalhau.

Inicialmente, pode parecer um prato fácil, mas um descuido pode estragar o jantar. Por crer na dificuldade de encontrar o riso carnaroli em qualquer mercado aí na sua cidade, sugiro uma escolha atenciosa do arroz, que deve ser de um calibre mais grosso que o normal arroz brasileiro, tipo agulhinha. Ele deve ficar ligeiramente cru por dentro. Outra distinção é a panela, que não deve ser alta, mas baixa e larga como uma frigideira. A base do risoto é sempre a mesma: um arroz húmido cozido lentamente, ao qual se adicionam ervas e carnes ou vegetais já cozidos.

Base: Em uma panela larga, coloque o arroz com um pouco do brodo (caldo) remanescente da carne ou verdura. Não adicione sal ou alho. O tempero deve ser somente aquele contido no brodo. Vá mexendo e adicionando o brodo até o final do cozimento. Adicione o restante dos ingredientes e sirva ainda quente.

Risotto ai funghi: Se for fungo seco (e não creio que se possa encontrar funghi porcini frescos por aí), coloque-o em uma vasilha com água para hidratá-lo, enxugue-o e o corte em tirinhas. Frite com cebola e (pouco) alho. Adicione o sal e, se quiser, um pouco de salsinha. Reserve. Pegue um maço de sálvia fresca e separe as folhas maiores. Empane-as com ovo e farinha de trigo. Frite-as uma a uma e coloque-as para enxugar em papel toalha. Reserve. Na mesma panela em que fritou o fungo, adicione água ou vinho branco, um pouco mais de sal e deixe ferver. Use esse caldo (brodo) para fazer o risoto. Uma vez pronto o arroz, adicione o fungo e um pouco mais de salsinha fresca batida. Enfeite com a sálvia empanada e sirva. Na Itália, é comum ter fungos frescos congelados para serem ralados sobre o prato na hora de servir. Na falta, é aceitável o queijo ralado, desde que não muito forte. O ideal seria um pecorino ou ricota ralada.

Risotto alla parmigiana: Faça a base do risoto com vinho branco no lugar do brodo. Jamais use vinho doce para pratos salgados. Ele deve ser o mais seco possível. Não esqueça de adicionar o sal, pois, neste caso, não há brodo. Ao final do cozimento, adicione uma generosa porção de Parmigiano Reggiano ralado e misture bem. Sirva muito quente.

Risotto ai gamberetti: Escolha camarões pequenos, sem cabeça e sem casca. Em uma frigideira, frite com azeite um pouco de cebola e alho. Aos adeptos, um pouco de pimenta vermelha em tirinhas. Coloque o camarão (cru, e não pré-cozido) e deixe fritar por uns dois minutos. Quando o camarão estiver quase frito, pode-se adicionar um tomate picado, previamente pelado e sem sementes. Adicione água ou vinho branco. Controle o cozimento para que o camarão fique com uma consistência dura, sem desmanchar. Separe o camarão e use o brodo para o risoto. Misture tudo quando o arroz estiver pronto e sirva sem queijo ralado. Para um risotto ai frutti di mare, lembre-se de que frutos do mar têm consistências diferentes e devem ser cozidos ou fritos separadamente.

Risotto al salmone: Em uma frigideira com azeite, coloque cebola batida e um punhado de salsinha. Deixe fritar e adicione um pouco de vinho branco. Quando começar a ferver, adicione o salmão defumado cortado ou desfiado em pequenos pedaços, respeitando a porção de trinta gramas por pessoa. Deixe dois minutos e retire o salmão. Reserve. Adicione o resto do vinho e deixe ferver. Corrija o sal e use o brodo para o risoto. Com delicadeza, misture o salmão com o arroz pronto e sirva com um pouco de salsinha picada.

Como opção de segundo prato para os risotos de frutos do mar, truta (ou truta salmonada) na manteiga: Tempere a truta sem muita convicção. Deixe marinar por algumas horas. Em uma frigideira, derreta uma colher de manteiga. Coloque a truta e deixe-a fritar delicadamente de cada lado em fogo médio. Ponha a truta sobre o prato e, na mesma frigideira, adicione mais uma colher rasa de manteiga e um pouco de alcaparras. Deixe no fogo por um minuto, mexendo sempre e espalhe-as sobre a truta. Sirva com legumes cozidos e luz de velas.

Risotto alle zucchine: Escolha algumas abobrinhas verdes e pequenas. Corte em sentido longitudinal (de comprido!) e em fatias finas, formando pequenos pedaços. Em uma frigideira grande, coloque o azeite. Coloque um pouco de cebola e alho e deixe fritar. Adicione cheiro verde e, por último, a abobrinha fatiada. Controle para que a abobrinha fique ligeiramente crua. Reserve. Na mesma frigideira, adicione água e deixe ferver. Corrija o sal e use o brodo…
Para fazer um risotto ai carciofi, escolha alcachofras pequenas e frescas. Retire as folhas de fora e corte as alcachofras em tiras finas. O procedimento é o mesmo do risotto alle zucchine. Sim, neste caso pode-se usar queijo ralado.

Ao contrário do que podemos pensar, o risoto deve ter um sabor suave para não interferir no segundo prato. Ou nos outros primeiros pratos, um hábito muito comum. Aprendi a perguntar qual será o menu antes de jantar na casa de algum amigo. Assim posso me preparar para provar um pouco de cada um dos cinco primeiros pratos. É verdade, às vezes é difícil chegar no segundo prato, mas em nome de uma boa amizade, eu me sacrifico!

Ciao.

quinta-feira, agosto 12, 2004

Roma, cidade aberta

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Dizem, alguns, que o melhor das férias é quando elas acabam.
Pensando nisso, decidimos tirar nossas férias justamente quando as “oficiais” européias acabam. Neste ano atípico, o grande êxodo do verão europeu foi dividido com o mês de julho, pois o feriado que marca o auge da estação na Europa, quinze de agosto, cai num domingo. O mês de agosto virou uma espécie de prolongamento das férias, com pequenas viagens de fins de semana. A indústria do turismo adorou e os preços continuam altos.

Fomos para a estrada a bordo do Fiat Punto equipado com o kit de sobrevivência: ar-condicionado e cd-player (como diabos se chama esse trem em português?). Só faltou o Telepass, pequeno aparelho instalado nos carros que permite passar nos pedágios sem parar, com a cobrança feita através do cartão de crédito, o que evita as quilométricas filas. Mas o ar-condicionado torna a espera menos apoplética.

Quem viaja a turismo pela Toscana, deve levar um passageiro preparado e armado com uma filmadora. Os vilarejos construídos sobre as enormes rochas que surgem improvisamente, fazem a alegria de qualquer japonês e já valem a viagem. Algumas paisagens não se repetem, assim como os restaurantes de comidas típicas. Se o roteiro não impuser datas, é possível levar dias para percorrer poucos quilômetros. E vale a pena. (Recordo-me de uma viagem de três dias de São Paulo a Araçoiaba da Serra - uns oitenta quilômetros – num roteiro etílico não planejado que não lembro de ter concluído.) Infelizmente os pontos turísticos são obrigatórios. Portanto, prepare o bolso!

Pisa. Uma garrafa de água mineral de meio litro custa 3,50 euros, contra 1,00 euro em qualquer boteco do resto da Itália. A torre é inclinada mesmo! Faz parte de um conjunto arquitetônico onde a igreja deveria ser a grande atração, mas foi superada pelo efeito do inadequado terreno onde a torre foi construída, o que conferiu à cidade a fama internacional. Visite a torre, tire fotos, mande postais e vá embora. Não há mais nada a ser visto.

Roma. Desaconselhável a pessoas com problemas cardiovasculares. A beleza, a suntuosidade e as longas caminhadas podem ser prejudiciais à saúde. Conhecer Roma após ter conhecido Milão, permite entender a ponta de inveja que os milaneses possuem dos romanos. A ponta de um iceberg. Visite-a com tempo. Ao menos uma semana para ver Roma. O Museu do Vaticano toma um dia inteiro, se a intenção forem somente as obras principais e a Capela Sistina. O interno da Basílica de São Pedro é alta, escura e grave, fazendo-nos sentir pequenos e humildes. Exatamente como espera a Igreja. Assim como nos principais monumentos religiosos, é proibido entrar de bermuda, saia curta e com os ombros à mostra. Mas, caso você esqueça e não lhe deixem entrar, não desanime: tem sempre uma chinesa vendendo enormes lenços para os ombros, e um monte de camelôs nas vizinhanças que oferecem calças de papel e camisetas turísticas com mangas por cinco euros.

Pausa. Em Roma (quem diria!) come-se tão bem que o turismo gastronômico é um programa à parte. Descubra e invente o próprio roteiro. Lá é permitido comer macarrão com garfo e colher, mas só os romanos têm esse hábito. Evite-o. Experimente todas as massas e reserve algumas refeições para as pizzas.

Entre a Piazza Venezia e o Coliseo estão o Forum Romano e o Forum Itálico. Ruínas romanas, necessitam de um dia inteiro para serem visitados. Depois tem a Piazza di Spagna, as catacumbas, os palácios onde funcionam os órgãos do Governo Italiano, o Pantheon e tantos, tantos outros monumentos, ruas menos famosas, becos, praças, igrejas e museus. Tudo tão cheio de história e de uma arquitetura sem igual, que quase sempre falta fôlego.

Na Roma antiga, o abastecimento de água era feito por galerias subterrâneas, engenhosamente construídas, que transportavam a água do rio Tévere aos habitantes que podiam pagar. Os dutos de pedra eram construídos de modo a fornecer um volume de água acertado previamente, com canais mais ou menos profundos e de larguras diversas. A cobrança se baseava na capacidade de fornecimento. O excesso de água abastece, ainda hoje, uma fonte no centro da cidade que é uma das maiores atrações turísticas da cidade: a Fontana di Trevi.

Cidade cosmopolita, em Roma é possível encontrar gente de todo o mundo: O garçon argentino; o motorista de táxi chinês; o ambulante indiano que vende a mesma garrafa d’água de Pisa por 2,50 euros; o hippie inglês; os soldados romanos que posam para fotos na frente do Coliseu, com o típico sotaque romano, mas que conversam entre si em albanês; a pintora sul-africana que vende desenhos dos pontos turísticos da cidade e, na Piazza Navona, o Itamar.

Praia. Uma semana em San Benedetto del Tronto, com as praias tomadas por chalés bem estruturados que sobrevivem do turismo de verão, alugam-se espreguiçadeiras com guarda-sol por dia, por semana ou por mês. Chuveiro, cabines, quadras de esportes de praia, atrações musicais, academias ao ar livre e um serviço de bar e restaurante, permitem ao turista passar o dia sob o sol. Uma garrafa d’água (a mesma) custa 0,75 euros. As pessoas deixam bolsas, carteiras e celulares abandonados à sombra e vão caminhar ou dar um mergulho. Quando voltam, está tudo lá. Estranho, não? Caso alguém decida conhecer a cidade, avise-me: tenho ótimas dicas gastronômicas.

Férias: cedo ou tarde você vai cair nessa.
Que inclua Roma. Pelo menos o melhor não será o fim delas.

Ciao.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Preguiça

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Piadinha velha que circula na internet como se fosse nova:
Duas redes numa varanda em Salvador. Depois de horas, a mulher quebra o silêncio:
– …Tem remédio pra mordida de tartaruga?
– Não! Porquê, a tartaruga te mordeu?
– Não, mas ela tá vindo na minha direção.

O ócio é criativo. A preguiça italiana é endêmica e contagiosa. “Cabeça vazia, oficina do diabo”, dizem os mais velhos. Aqui se trabalha para poder tirar férias. De preferência, sem pegar no pesado. Quarenta por cento da população italiana se declara comunista, contra vinte e dois por cento que se declara de direita. O resto fica entre o centro (de esquerda e de direita) e há os que não têm a menor idéia do que isso signifique. Os comunistas defendem menos horas de trabalho como medida para a criação de novas vagas. Sem redução de salário. Querem mais horas de ócio e garantem que é por uma boa causa.

Aos extra-comunitários (designação dada aos estrangeiros de países que não pertençam à Comunidade Européia, exceto os suíços) cabe o trabalho braçal mais vigoroso. O que tem de marroquino, albanês e africano negro trabalhando nas queijarias – onde uma forma de Grana Padano ou Parmigiano Reggiano pesa, em média, quarenta quilos – não é brincadeira! Serviços de pedreiros, carregadores, estivadores, lava-pratos e afins, são executados pela sub-casta dos estrangeiros ou por italianos acima dos quarenta. Os jovens mantêm-se longe dos trabalhos físicos ou o fazem por breve tempo.

O italiano chega com seu pequeno caminhão carregado de máquinas. Com a ajuda de um braço mecânico, descarrega os equipamentos mais pesados. Marca no piso de concreto as linhas onde deverá escavar a canaleta por onde passarão os tubos da pequena obra. Senta no seu pequeno trator e começa a movimentar as alavancas que conduzem a britadeira ao ponto onde faz a valeta. Buraco pronto, recarrega o trator no caminhão e some. Um egípcio, um marroquino e dois senegaleses já descarregaram o resto das ferramentas, o material (tubos, cimento, etc.) e fazem o trabalho pesado. Ao final do segundo dia, completado o serviço, reaparece o italiano, recarrega o equipamento e apresenta a conta.

A coleta do lixo é feita por apenas uma pessoa: o motorista do caminhão. Apertando botões e movimentando alavancas, ele recolhe os containers plásticos cheios de lixo doméstico sem nenhum contato manual. As ruas são limpas pelas vassouras dos caminhões varredores e, mais recentemente, pelos pequenos veículos que mais parecem naves espaciais. A figura bucólica do garí, persiste apenas nos locais onde os veículos são impossibilitados de entrar. Guindastes, máquinas agrícolas e caminhões possuem cabines com ar-condicionado. Os caminhões possuem, ainda, uma plataforma retrátil com sistema hidráulico para carregar e descarregar a mercadoria, geralmente em pallets, que por sua vez, são movimentados por traspallets elétricos. Tudo sem esforço. Os equipamentos velhos são vendidos a países da África.

Como a diferença de salário é pequena, poucos se esforçam para uma promoção, que pode representar ampliação do horário de trabalho e comporta maior responsabilidade. Por outro lado, é muito difícil encontrar um estrangeiro em cargo de chefia ou trabalhando em escritório. As promoções, quando acontecem, consideram o tempo de serviço, que ninguém contesta. A grande massa da mão-de-obra italiana não move um dedo para melhorar, apenas se acomoda.

O sistema sanitário funciona melhor que na maioria dos outros países que compõem o globo habitado; a educação é gratuita e obrigatória; o país é pequeno e coberto pelas malhas rodoviária e ferroviária; toda prefeitura ajuda financeiramente aos mais necessitados; diversas instituições amparam as classes marginalizadas; as empresas disputam a tapa operários e empregados de categorias mais baixas. Pra quê dar mais que o mínimo?

Um amigo argentino, após ouvir minhas suposições para justificar a apatia do trabalhador italiano, que se reflete, também, no cotidiano caseiro, elaborou uma teoria. Ele acredita que o italiano médio perdeu, há muito, a capacidade de empenhar-se em qualquer área. A vida seria muito fácil para ele (o italiano do Norte) e nada justificaria qualquer empenho. Um dos efeitos seria a timidez que se pode notar na geração que se apresenta nas discotecas. São grupos de homens entre os vinte e os trinta e cinco anos que saem em grupo, olham, comentam, riem, mas não têm coragem de tentar uma aproximação ao grupo de mulheres, do outro lado do bar. Ou, quando tentam, fogem na primeira dificuldade. Resultado: qualquer extra-comunitário mais descolado faz a festa das italianas. Não deixa de ser engraçado o efeito bumerangue: enquanto os machos italianos fazem turismo sexual em Cuba, no Brasil, na Europa Oriental e em países africanos, a Itália está se tornando o paraíso sexual dos extra-comunitários. O hábito de querer ganhar no grito e o refúgio no álcool seriam apenas mecanismos de defesa.

Pessoalmente, acredito que a timidez seja fruto da insegurança coletiva, da falta de perspectivas e do efeito do consumismo desenfreado, o que torna a vida mais cômoda e menos excitante. A busca da própria identidade e o questionamento dos valores vigentes pode levar à introspecção, o que pode ser confundido com timidez. Mas um dado serve de alerta: o italiano médio gasta sete horas e meia por dia diante da televisão.

A piada acima não esclarece, mas acredito que na rede ao lado tenha um italiano. E que o diabo ocupe avidamente a cabeça dele, na busca de um equipamento que balance a rede…

Ciao.

terça-feira, agosto 03, 2004

Trópico de Câncer

Caros e Caras,
Paz e saúde!

A Terra gira em torno de si mesma, presa a um eixo imaginário. Perpendicular a esse eixo, ela é dividida por uma linha, também imaginária, a que chamamos Equador. Na parte que se convencionou ser a parte de cima do globo terrestre, está o hemisfério norte; na de baixo, o hemisfério sul. Latitude 45º 2’ 49’’ Norte; Longitude 9º 41’ 44’’ Leste. Esta é a localização geográfica de Piacenza. Diante de tal informação, a estatística dos últimos vinte anos indica que aqui, hoje (terça-feira), estamos vivendo um pacato início de verão, com temperaturas amenas; longe do calor sufocante do mês de agosto.

Aprendi que as estatísticas devem ser cuidadosamente consideradas. Não basta confiar nos números: é preciso saber o que eles informam e o que fazer com os dados fornecidos. Ou, como diz minha ex-professora de italiano: “A estatística é uma coisa muito perigosa; eu não gosto dela! Ela ensina que, se nós dois entrarmos em uma pizzaria e você comer duas pizzas e eu ficar olhando, teremos comido uma pizza cada um. Mas o meu estômago continuará vazio…!”

Realmente, neste caso (o do primeiro parágrafo) as estatísticas não servem a coisa alguma. O clima nesses dias está um calor dos diabos – gostaria de ter encontrado um superlativo de quente mais apropriado. Fico devendo. O consumo de ar-condicionado começou a provocar racionamento de energia em alguns pontos. Milão corre o risco de ficar sem eletricidade e repetir o blecaute do ano passado.

Assim como Fidel Castro aproveitou o inferno em Bagdad para varrer a sujeira cubana para baixo do tapete, o nosso (deles!) Umberto Bossi aproveitou o inferno daqui para sugerir tiros de canhão nos barcos que transportam emigrantes clandestinos; clandestinos que vêm desembarcado nas costas da Sicília à média de mil por semana, aproveitando-se dos dias claros e mar calmo. O mesmo Bossi que hoje se encontra em recuperação hospitalar.

Acima do Trópico de Câncer, a vida se cansa de enfrentar o verão, que o calendário insiste estar longe do fim. Diariamente, os telejornais informam a temperatura e o índice de calor (IC) – que é a combinação de altas temperaturas e humidade relativa do ar; também chamada “Temperatura Aparente”. A premissa para a medição deste índice é que a pessoa esteja ao nível do mar, à sombra e com vento de 10 km/h. Exposições ao sol podem aumentar o IC entre 3 e 8 ºC. Montando uma tabela, verifiquei que nesta semana Piacenza atingiu 36 ºC e 60% de humidade relativa, chegando à Temperatura Aparente (IC) de 49,3 ºC! …Essa é a minha idéia de “um calor dos diabos”.

As piscinas públicas (verdadeiros clubes que todos podem frequentar) abrem cedo, mas ficam lotadas a partir das duas da tarde. Faz-se pic-nic sobre os gramados; futebol e vôlei nos campos e quadras de areia; sorvetes nos quiosques; cerveja “fresca” (sic) nas mesas do bar; duchas; mergulhos dos pequenos na piscina grande e baleias que frequentam a piscina pequena. Nada, mas nada mesmo, ajuda a diminuir a humidade que torna o clima mais sufocante a cada número cancelado no calendário.

Em Piacenza, os imigrantes oriundos do Equador reaparecem em massa. Na realidade eles sempre estiveram presentes, mas evitam as ruas no período mais frio. São pessoas de um metro e meio, mais ou menos; as feições são típicas dos índios do norte da América do Sul, mas sem o mesmo garbo. Devem pertencer a uma mesma tribo, uma vez que todos (ou quase todos) foram privados de pescoço; quanto à linha, à silhueta, parecem-se com modelos dos quadros de Botero. Mas, de resto, são um povo unido e aparentam felicidade, vestindo-se de forma espalhafatosamente colorida. Mas não admitem a aproximação nem mesmo de outros imigrantes. São um povo à parte. Mas as suas cores também não tornam os nossos dias mais amenos.

Me rendo a uma estatística local: 60% dos consumidores de Piacenza, que fazem compras no Auchan (rede de hipermercados), deixam para fazê-las nos horários mais quentes do sábado. No período de verão, o tempo gasto dentro do supermercado é acrescido de uma hora, graças ao ar-condicionado excepcional da loja. O valor das compras diminui, pois neste período as pessoas evitam consumir salames, carnes e outros produtos de difícil digestão ou com alto teor de gorduras; substituindo-os por saladas e frutas, que são mais digestíveis, mais frescos e custam menos. Por outro lado, o gerente do hipermercado me informa que o consumo de produtos para jardinagem, carros e outros supérfluos, chegam a vender 180% a mais que no período de frio (cáspita!!!), quando as pessoas compram o “essencial” e passam pouco tempo na loja.

Tá um calor dos diabos… Na semana passada, duas estátuas desmaiaram por causa do calor e uma delas entrou em coma profundo, que os escultores julgam irreversível… As pombas já não conseguem voar; utilizam uma das asas para se abanarem… O calçamento das ruas deve ser de pedra, pois o asfalto derrete fácil… O sol nasce às cinco e meia, seis da manhã e só nos abandona próximo às nove da noite. O calor, também. Quem consegue dormir assim? …Amanhã vou comprar um ar-condicionado para instalar na varanda de casa.

…Delirando, eu???

Ciao.

domingo, agosto 01, 2004

Aparências

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Velha piada dos tempos da Guerra-fria: Dois operários trabalham em uma avenida de Moscou. O primeiro faz um buraco de meio metro de profundidade com uma cavadeira. O segundo espera dois minutos e tapa o buraco com a terra que o outro havia retirado. Caminham três metros e repetem a operação. Um passante pergunta o que eles fazem e um dos operários esclarece: “Somos os responsáveis pela arborização de avenidas: um cava, outro coloca a muda da árvore e o terceiro fecha o buraco. O sujeito que coloca a árvore ficou doente, mas nós continuamos a fazer a nossa parte.”

Me dá a sensação do dever cumprido, quando coloco o lixo a ser reciclado no saco de coleta diferenciada. Apesar disso, não consigo esquecer a reportagem que mostrava os caminhões coletores de lixo despejando tudo no mesmo local para o mesmíssimo tratamento. Necas de reciclagem!

Um dos meus instrutores de TQM (Total Quality Management) dizia que a diferença básica entre a filosofia americana nos programas de qualidade e aquela européia é a ênfase dada. Os americanos se preocupariam mais com os resultados, enquanto os europeus se fixariam na normatização. Jamais entendi porque ele fazia tanta birra com a preferência dos europeus pelas regras. O TQM instrui a testar, analisar e verificar os resultados de cada operação antes que essa venha a ser padronizada. E isso só ocorre se os dados positivos forem estatisticamente comprovados. Acredito ter descoberto o motivo da má vontade daquele filho da mãe do meu professor: ele deve ter morado na Europa. Aqui, o importante é existir uma regra ou norma. Se o resultado não for o esperado, eles saem à caça de um culpado. E quando o encontram, está resolvido!

Os ingleses acabam de aprovar uma lei que proíbe a circulação de menores de dezesseis anos desacompanhados pelas ruas de Londres, após às nove da noite. Aprovaram, também, uma outra lei, que permite às grávidas menores de dezesseis de abortaram, mesmo sem autorização dos pais. Ou seja, andar na rua à noite, não pode, mas fazer aborto sem o conhecimento dos pais, isso pode. Ainda não entendi porque se usa a expressão “pra inglês ver”.

Muita gente tem a equivocada impressão de que a Europa é um lugar onde as coisas se resolvem. Têm a fantasia de que os crimes são todos descobertos e punidos, que os culpados sempre pagam e que a honestidade impera como em um lugar de sonhos. Pois bem: é tudo aparência! A pobreza existe, mas vive escondida; a violência só é mostrada em parte; as informações vendidas aos jornais atendem a um padrão de auto-censura, que decide o que é bom e o que não pode ser mostrado à população. Que ninguém se iluda pensando que o esporte e as fofocas sobre vips assolam os jornais europeus apenas porque não acontece nada de mais interessante, ou porque a população vive alienada, preferindo notícias amenas. Segundo o último levantamento da polícia carcerária italiana, mais de oitenta e quatro por cento dos crimes na Itália são arquivados como insolúveis. O Ministério da Saúde informa que dez novos casos de aids ocorrem a cada dia, mas tal notícia é divulgada somente no site deles, e precisa ser craque de computador para encontrar tal notícia. É a guerra da manipulação da informação.

O jornalista Emilio Fede usa um expediente muito divertido no telejornal que dirige. Quando mostra os políticos aliados de Berlusconi (patrão de Fede) seleciona as melhores fotos, em que o agraciado aparece sorrindo, geralmente em alguma ação positiva, como em uma visita a alguma instituição filantrópica ou discursando em plenário. Já quando se trata de algum político adversário, o eficiente Emilio vasculha alguma foto do infeliz fazendo uma careta; de calção de banho, quando se trata de alguém gordo ou, em situações de desespero, o escudeiro Emilio amplia a única foto encontrada, dando um efeito distorcido à imagem, focando a careca ou as rugas do desafeto. Táticas de guerrilha.

“O que é bom a gente contabiliza. O que é ruim, a gente esconde.” Já ensinava Rubens Ricupero.

Perucas masculinas, toneladas de maquiagem, cintas abdominais e roupas de grife. Qualquer subterfúgio vale se for para mostrar o que não se é. Inclusive deixar, displicentemente, um livro dentro do carro, no estacionamento do trabalho. De preferência, com algum papel dentro, servindo como marcador. Juro que ainda vou bolar um meio de ganhar dinheiro vendendo aparências. Pecado não ter estudado cirurgia plástica…

Se cada um fizer a sua parte, separando o lixo para a coleta diferenciada dentro das normas estabelecidas, não haverão culpados. As fofocas da corte inglesa fazem mais sucesso por lá que o amarelo sorriso de Emilio Fede por aqui, enquanto os jovens herdeiros reais estarão protegidos à noite. A informação oferecida à população italiana (monopolizada por Berlusconi enquanto primeiro ministro – e, portanto, chefe das três emissoras estatais – e proprietário da rede Mediaset) irá depender sempre da orientação do que pode e não pode ser mostrado. Miséria e violência, só no país dos outros. E la nave và…

Por falar em Ricupero, ouvi dizer que ele foi visto na Rússia, contabilizando árvores.
…E de peruca!

Ciao.