Dia 29
É.
Parece que a primavera resolveu
voltar para ficar, dessa vez. Eu acho. Quer dizer, pelo menos não caio mais na
armadilha de confiar só na temperatura antes do primeiro passeio com o Shiva.
Hoje, apesar do termômetro marcar oito graus positivos, o que, convenhamos, não
é quente nem aqui, saí só com uma camisa polo e um gilet. E não me arrependi.
Os primeiros minutos servem para habituar a pele a não sentir o frio do
termômetro e deixar o sol fazer a parte dele. É um alívio não ter que tirar o
casaco e a malha e descobrir que faltam mãos para carregar tudo.
Depois de vinte anos descobri que a
percepção do frio depende muito da atitude. Quem sai na rua no inverno encapotado
e encolhido vai sofrer mais de quem veste somente o necessário e se comporta
naturalmente. Duvida? Experimente e depois me conte. Claro que quem vive em
países mais frios tem maior resistência ao frio e, mesmo nesse caso, existe
frio e frio pra dedeu, que não poupa ninguém.
Uma infinidade de pássaros vem
tomando conta dos rumores diurnos. Os melros são os primeiros a cantar, muito
antes do sol nascer. Entre todos os cantos, chiados e silvos, reconheço o das
rolinhas, as gralhas bagunceiras, as gaivotas (sim, gaivotas de cidade, que são
as mesmas do mar que descobriram o lixo urbano), pombos e as batidas
inconfundíveis dos pica-paus. E, é claro, os diferentes cantos dos melros.
Dentre estes, o Caruso, que vive há anos no telhado dos fundos e um novo amigo,
o Pavarotti, que vive no jardim onde levo o Shiva. Como cada um tem um canto
diferente é possível reconhecer cada um dos vizinhos pelo canto.
Lembrei de uma coisa importantíssima:
as notas de quinhentos euros sairão de circulação. Em breve não serão mais
aceitas – como se agora o fossem em todo lugar. Como sou colecionista, peço aos
amigos que não sabem o que fazer com as notas na carteira, que me doem à minha
coleção. Pretendo ser o maior colecionista de notas de quinhentos euros. Conto
com vocês! Serei grato a todos os que doarem.
Dia 30
Discutir, brigar, reclamar, são,
também, uma forma de comunicar. Não tendo saído de casa desde o início da
quarentena, com quem a vizinha do terceiro andar podia se comunicar? Com ninguém,
é óbvio. Reclama do barulho (um gato miando, crianças que brincam no quintal, a
conversa animada de algum vizinho...), da limpeza das escadas, do preço do
aquecimento, dos problemas de saúde, da manutenção do elevador... Reclama e
basta. Até a porteira, que tinha paciência para ouvir suas críticas, faleceu no
ano passado. E disso ela não reclamou. Pois bem, depois de um mês trancafiada,
ela hoje resolveu sair. Pecado que se esqueceu que, com a bicicleta parada e a
mudança do clima, os pneus estavam quase completamente vazios. Ofereci-me para
enchê-los, mas ela fez de conta que não ouviu. E lá foi ela, usando a magrela
como muleta para seus passos inseguros, resmungando.
À tarde fui pro balcão tentar
desenvolver a nova ideia para um conto que tive noutro dia. Nem bem abri o
arquivo e tive uma outra ideia para um novo conto, mais curto que o primeiro.
Não perdi tempo e comecei a colocar tudo no preto no branco do monitor. O clima
estava mais pra cerveja que grappa, tanto que já tinha tomado umas, mas optei
pela grappa. Depois outra, mais outra e umas duas saideiras. O Pancho Sansa
estava esticado no colchão dele, num relax de fazer inveja. A pragga subiu mais
do que devia e botei minhas almofadas no chão, ao lado dele, acendi um charuto,
abaixei o volume da música e me acomodei comodamente cômodo, para evoluir a
história na fumaça e meditar. Vou morrer de rir quando escrever. Que não vai
ser hoje, pois anoiteceu e por hoje basta.
Sim, eu ronco enquanto medito.
Dia 31
Não, tá tudo bem por aqui, fiquem
tranquilos. O dia foi igual a tantos outros, com um pouco mais de calor. Ela
fez bife à parmegiana, que não tem nada de italiano, mas tem de saudade. Shiva
passou um tempão tomando sol, brincou, me mordeu, passeou e pediu mais comida
(isso é inusitado). O resto do dia gastei pensando, fumando charuto, lendo e
bebericando umas besteirinhas. Lembrei que meus maiores problemas vêm dos meus
momentos de divagação. Decidi não me demorar mais que alguns minutos no
exercício de hoje.
Divagando rapidamente, concluí que
preciso descobrir a qual campo pertenço. Esclareço: se cada campo tem a própria
elite – econômica, política, artística, sanitária, industrial, esportiva,
intelectual e mais um monte de et ceteras – e, assim sendo, são muitas, as elites.
Como é possível que eu não faça parte de nenhuma? Sim, eu sei, não basta ser
parte de um grupo, é preciso ser reconhecido como excelente por esse mesmo
grupo. Pelo que ouço e leio, a elite está sempre muito bem, obrigado. E é assim
que eu deveria estar, mesmo sem ter planejado sê-lo. Daí que fiquei pensando em
que sou realmente bom. Acho que ser campeão de chapinhar pedras na água não
basta; inventar desculpas esfarrapadas não é exatamente um campo no qual eu
possa pleitear ascensão. Sem contar que tenho visto muita gente melhor do que
eu; talvez tomar cerveja, mas o tempo passou e já não sou aquele de antes. Meu
único orgulho nesse campo é ter passado o copo à minha filha, que defende
bravamente as glórias de família. Enfim, não descobri em mim nenhuma qualidade
especial que possa produzir ou ser incluída em alguma elite.
Conclusão: quando me convidarem para
algum evento, não esperem uma participação muito ativa da minha parte. E já
aviso que gosto de cerveja gelada e carne mal passada.
Dia 32
Ainda é Páscoa, época de
ressurreição, renascimento, reconstrução, mudança de ciclo. Chame como
preferir. O importante é ter consciência de que mudamos e continuaremos a
mudar. Quando a mudança é uma escolha, uma Páscoa acontece dentro de nós.
Aproveite esse período de
recolhimento para refletir, estreitar relacionamentos, mesmo que virtuais,
expor os seus sentimentos e rever os próprios valores.
_____________________________
Domingo de Páscoa e de sol. O coelho
passou por aqui, Shiva correu com ele. Brindamos com vinho e peixe. E ração.
Passeamos – eu e o Shiva – para conferir que o calor veio pra ficar, mesmo que
ainda não dê pra chamar de calor, calor mesmo, sabe? Descobrimos que alguém
levou embora a lata enfeitada que tinha sido deixada ontem em um banco na
frente da escola, com algumas moedas, ovinhos de chocolate e um cartaz feito à
mão: “ajuda para os nossos amigos de rua”. Tomara que tenha sido um dos dois
clochards que ainda vejo por aqui, ou a alma abençoada que teve a iniciativa,
para distribuir aos mais necessitados.
O Shiva deu uma demonstração de
mudança agora pouco. Depois do nosso passeio noturno, de barriga cheia e
abanando a cauda, foi encontrado deitado no tapete do banheiro, no escuro.
Resmungou quando ela acendeu a luz. Enquanto eu, inabalável, decidi sair sem
máscara nesse último passeio do dia. A minha alergia de primavera – que aqui
ninguém chama de rinite alérgica – me lembrou que o vírus não deve ser o único
motivo para me cuidar. Sim, eu tomo “levocetirizina” todos os dias, nesse
período. Acontece que com menos gente nas ruas (não tinha sinal de vida ainda
pouco), o pólen tem que aproveitar cada ocasião. E eu vacilei. Tomei um copão
de grappa com limão e mel. Não sei se isso melhora, mas gostei.
Dia 33
Hoje é feriado na Itália, oba! “A
Segunda-feira de Páscoa (Pasquetta ou Lunedì dell’Angelo) é
feriado na Itália e comemora-se o encontro do anjo com as mulheres (Maria,
Maria Madalena, Maria Salomé, Maria de Cleófas e Maria de Betânia) no Santo
Sepulcro. Dia de comer fora – restaurante ou picnic – de festejar com os
amigos, de digerir o almoço de Páscoa e o chocolate.” Aproveitamos para
preguiçar e descansar. A vida tá indo assim, não fazer nada e descansar,
estamos cansando dessa rotina. A tradição manda comer fora, mas estamos em
quarentena e engordando. Melhor não. Até o Shiva está entrando em um regime.
Como bicho fica de mau humor quando tá com fome, não? Já me mordeu duzentas
vezes, hoje.
Muita gente tentou viajar para a casa
de veraneio ou pra algum churrasco em algum bosque. A polícia aumentou o
controle, multou um bocado de infrator e ainda contou com a colaboração da
população, que denunciou os veranistas. Quem estava na casa de praia antes da
quarentena, pode permanecer, mas quem é que vai pra praia no fim do inverno?
Então, né.
O dia esteve nublado, ao contrário do
sol dos dias anteriores. E nem eram nuvens de chuva, não, só aquelas nuvens de
sombra, mesmo. A alergia vai bem, obrigado. A fome e o desespero pela
abstinência quase completa, idem. Afinal, eu só devo ter consumido umas duas
mil e quinhentas calorias, hoje. Quem é que vive com duas mil e quinhentas
calorias por dia, gente? E tome abacaxi e água pra aguentar.
Dia 34
uaaaa! fff fff fff. oi, jácordei. eu
tiamo, viu? cê miama? cê tácordado? cê tácordado? cê tácordado? cê tácordado?
eu tiamo, viu? cê miama? fff fff fff fff fff fff. ki chêro é esse no seu lariz?
cê tá doente? lep lep lep lep lep lep... cê tácordado! cê tácordado! cê
tácordado! cê tácordado! eu sabia ki cê tácordado! seu lariz tá ruim, eu tava
lambeno ele procê milhorá, viu? cê tácordado! eu tiamo, viu? cê miama? cê
tácordado! fff fff fff fff uaaaaa! podi í no banhêro ki quano cê saí nós vamo
passiá. vô tomá conta delaqui, viu? ...oi, já vamo saí? vamo brincá? vamo lutá?
eu tiamo, viu? cê miama? oba, vamo passiá! vamo passiá! vamo passiá! vamo
passiá! isso, bota a colêra ni mim! vamo passiá! vamo passiá! vamo passiá!
...fff fff fff fff fff fff. tem um chêro di pipí di cachorro macho aqui. fff
fff fff fff fff fff. pera, inda é meio fiote, tá dodói não. num conheço esse
chêro, é novo puraquí. eu ki mando aqui! vô cobrí o chêro dele! fff fff fff.
passô um bichim estranho agorinha, tô sintino u rastro dele. fff fff fff fff
fff fff. vamo passiá mais! fff fff fff fff fff fff fff fff fff. pera, tenho ki
fazê cocô. vô cubrí u cocô pra... vô cubri u cocô! tenho ki cubrí... fff fff
fff. mim dêxa! tem um passarinho, tenho ki pegá u passarinho! vem cá! vô pegá
tu, passarinho! vem cá! fff fff fff fff fff fff. eu tiamo, viu? cê miama? um
cachorro fêmia fez pipí aki. vô marca meu chêro no dela. vamo passiá mais! fff
fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff. pipí.
purquê a gente tem ki volta pra casa? cês fica isquisitu di fucinhêra hehehe.
vamo passiá mais! vamo passiá mais! não! num kero í pra casa! ...tira a colêra
di mim! mim dá papá! quero água! grrrr, meu papá, viu? mim dá, mim dá u papá!
quero água! papá! papá! papá! eu tiamo, viu? cê miama? vamo lutá! vamo lutá!
vem ká, seu sapeco papeco! vem ká! eu mordu tudu tu! eu mordu! grrrrr eu mordu!
sapeco papeco, eu mordu! mim dá meu brinquedinhu! mim dá meu brinquedinhu! mim
dá! vem ká seu bestão! sapeco papeco! grrrr eu sô mau, vô ti mordê! vô ti
mordê! vô ti mordê! grrrrr! vem ká! vem ká! vô ti mordê! onde cê vai? eu vô
tamém! eu tiamo, viu? cê miama? eu vô tamém! ...pera, tô cum sono. vô durmí um
poquinhu. eu tiamo, viu? ficaí bestona, vô durmí incima di tu! grrrrr! eu sô
mau! faz carinhu ni mim! grrrrr! faz logo ki eu tô cum sono! grrrrr! eu sô mau!
eu tiamo, bestona? cê miama? eu tiamo bestona! ...zzzzzzzzzzzzz grrrrrrrr
zzzzzzzzzzzzzz grrrrrrrrrrr. oi, faz mais carinho ni mim. cê miama? eu tiamo,
viu bestona? num dêxa ele mim mordê quanu ki eu tive durminu. grrrr depois eu
passio mais cum ele, tá? grrrrrrrr zzzzzzzzzzzzzz grrrrrrrrrrr. eu tiamo. cê
miama? zzzzzzzzzzzzzzz...
Dia 35
Anos atrás minha sogra folheava um
álbum de fotografia com um dos netos, filho de uma das irmãs da Eloá. Mostrava
e comentava algumas fotos da tia que morava na Itália e ele, com aquela
honestidade peculiar da infância, disse: “vó, quando a tia Eloá morrer eu acho
que não vou sentir muita saudade dela, não. Eu mal conheço ela...” Dona Neza
caiu na risada e mal conseguiu explicar ao garoto que era normal, que não
sentimos falta de quem não fez parte da nossa vida. E que era muito cedo pra
pensar naquilo, haveria tempo pra ele gostar da tia, pois ambos tinham muita
vida pela frente.
É difícil perder quem gostamos, quem
participou da nossa vida, mesmo quando a pessoa não tem conhecimento da nossa
existência. Músicos, escritores, artistas, são sempre pessoas que entram na
nossa história, que nos ensinam, nos inspiram e nos marcam, ainda que morem em
outras itálias longínquas.
Às vezes o coração perde o passo, dá
um suspiro tão profundo e longo que a alma fica sem ar. Só a companhia de quem
está próximo, daqui ou de longe, ameniza o sentimento que queria entristecer.
Hoje, um dia tão normal como qualquer outro domingo dessa eterna quarentena,
tratamos de nos concentrar na diversão que foi festejar o aniversário do Shiva.
Seis anos, dos quais, dois e meio em casa. A nossa casa, a casa dele. Logo cedo
rimos com a percepção do bicho de que estávamos comemorando exatamente ele. Foi
uma felicidade só. A reação alegre, a participação, a felicidade. Não tinha a
menor ideia do que acontecia, estava apenas feliz por estar aqui. Estava feliz
pela felicidade.
1 comment:
Post a Comment