Thursday, April 16, 2020

Diário do fim do mundo - parte 5


Dia 29
É.
Parece que a primavera resolveu voltar para ficar, dessa vez. Eu acho. Quer dizer, pelo menos não caio mais na armadilha de confiar só na temperatura antes do primeiro passeio com o Shiva. Hoje, apesar do termômetro marcar oito graus positivos, o que, convenhamos, não é quente nem aqui, saí só com uma camisa polo e um gilet. E não me arrependi. Os primeiros minutos servem para habituar a pele a não sentir o frio do termômetro e deixar o sol fazer a parte dele. É um alívio não ter que tirar o casaco e a malha e descobrir que faltam mãos para carregar tudo.
Depois de vinte anos descobri que a percepção do frio depende muito da atitude. Quem sai na rua no inverno encapotado e encolhido vai sofrer mais de quem veste somente o necessário e se comporta naturalmente. Duvida? Experimente e depois me conte. Claro que quem vive em países mais frios tem maior resistência ao frio e, mesmo nesse caso, existe frio e frio pra dedeu, que não poupa ninguém.
Uma infinidade de pássaros vem tomando conta dos rumores diurnos. Os melros são os primeiros a cantar, muito antes do sol nascer. Entre todos os cantos, chiados e silvos, reconheço o das rolinhas, as gralhas bagunceiras, as gaivotas (sim, gaivotas de cidade, que são as mesmas do mar que descobriram o lixo urbano), pombos e as batidas inconfundíveis dos pica-paus. E, é claro, os diferentes cantos dos melros. Dentre estes, o Caruso, que vive há anos no telhado dos fundos e um novo amigo, o Pavarotti, que vive no jardim onde levo o Shiva. Como cada um tem um canto diferente é possível reconhecer cada um dos vizinhos pelo canto.
Lembrei de uma coisa importantíssima: as notas de quinhentos euros sairão de circulação. Em breve não serão mais aceitas – como se agora o fossem em todo lugar. Como sou colecionista, peço aos amigos que não sabem o que fazer com as notas na carteira, que me doem à minha coleção. Pretendo ser o maior colecionista de notas de quinhentos euros. Conto com vocês! Serei grato a todos os que doarem.

Dia 30
Discutir, brigar, reclamar, são, também, uma forma de comunicar. Não tendo saído de casa desde o início da quarentena, com quem a vizinha do terceiro andar podia se comunicar? Com ninguém, é óbvio. Reclama do barulho (um gato miando, crianças que brincam no quintal, a conversa animada de algum vizinho...), da limpeza das escadas, do preço do aquecimento, dos problemas de saúde, da manutenção do elevador... Reclama e basta. Até a porteira, que tinha paciência para ouvir suas críticas, faleceu no ano passado. E disso ela não reclamou. Pois bem, depois de um mês trancafiada, ela hoje resolveu sair. Pecado que se esqueceu que, com a bicicleta parada e a mudança do clima, os pneus estavam quase completamente vazios. Ofereci-me para enchê-los, mas ela fez de conta que não ouviu. E lá foi ela, usando a magrela como muleta para seus passos inseguros, resmungando.
À tarde fui pro balcão tentar desenvolver a nova ideia para um conto que tive noutro dia. Nem bem abri o arquivo e tive uma outra ideia para um novo conto, mais curto que o primeiro. Não perdi tempo e comecei a colocar tudo no preto no branco do monitor. O clima estava mais pra cerveja que grappa, tanto que já tinha tomado umas, mas optei pela grappa. Depois outra, mais outra e umas duas saideiras. O Pancho Sansa estava esticado no colchão dele, num relax de fazer inveja. A pragga subiu mais do que devia e botei minhas almofadas no chão, ao lado dele, acendi um charuto, abaixei o volume da música e me acomodei comodamente cômodo, para evoluir a história na fumaça e meditar. Vou morrer de rir quando escrever. Que não vai ser hoje, pois anoiteceu e por hoje basta.
Sim, eu ronco enquanto medito.

Dia 31
Não, tá tudo bem por aqui, fiquem tranquilos. O dia foi igual a tantos outros, com um pouco mais de calor. Ela fez bife à parmegiana, que não tem nada de italiano, mas tem de saudade. Shiva passou um tempão tomando sol, brincou, me mordeu, passeou e pediu mais comida (isso é inusitado). O resto do dia gastei pensando, fumando charuto, lendo e bebericando umas besteirinhas. Lembrei que meus maiores problemas vêm dos meus momentos de divagação. Decidi não me demorar mais que alguns minutos no exercício de hoje.
Divagando rapidamente, concluí que preciso descobrir a qual campo pertenço. Esclareço: se cada campo tem a própria elite – econômica, política, artística, sanitária, industrial, esportiva, intelectual e mais um monte de et ceteras – e, assim sendo, são muitas, as elites. Como é possível que eu não faça parte de nenhuma? Sim, eu sei, não basta ser parte de um grupo, é preciso ser reconhecido como excelente por esse mesmo grupo. Pelo que ouço e leio, a elite está sempre muito bem, obrigado. E é assim que eu deveria estar, mesmo sem ter planejado sê-lo. Daí que fiquei pensando em que sou realmente bom. Acho que ser campeão de chapinhar pedras na água não basta; inventar desculpas esfarrapadas não é exatamente um campo no qual eu possa pleitear ascensão. Sem contar que tenho visto muita gente melhor do que eu; talvez tomar cerveja, mas o tempo passou e já não sou aquele de antes. Meu único orgulho nesse campo é ter passado o copo à minha filha, que defende bravamente as glórias de família. Enfim, não descobri em mim nenhuma qualidade especial que possa produzir ou ser incluída em alguma elite.
Conclusão: quando me convidarem para algum evento, não esperem uma participação muito ativa da minha parte. E já aviso que gosto de cerveja gelada e carne mal passada.


Dia 32
Ainda é Páscoa, época de ressurreição, renascimento, reconstrução, mudança de ciclo. Chame como preferir. O importante é ter consciência de que mudamos e continuaremos a mudar. Quando a mudança é uma escolha, uma Páscoa acontece dentro de nós.
Aproveite esse período de recolhimento para refletir, estreitar relacionamentos, mesmo que virtuais, expor os seus sentimentos e rever os próprios valores.
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Domingo de Páscoa e de sol. O coelho passou por aqui, Shiva correu com ele. Brindamos com vinho e peixe. E ração. Passeamos – eu e o Shiva – para conferir que o calor veio pra ficar, mesmo que ainda não dê pra chamar de calor, calor mesmo, sabe? Descobrimos que alguém levou embora a lata enfeitada que tinha sido deixada ontem em um banco na frente da escola, com algumas moedas, ovinhos de chocolate e um cartaz feito à mão: “ajuda para os nossos amigos de rua”. Tomara que tenha sido um dos dois clochards que ainda vejo por aqui, ou a alma abençoada que teve a iniciativa, para distribuir aos mais necessitados.
O Shiva deu uma demonstração de mudança agora pouco. Depois do nosso passeio noturno, de barriga cheia e abanando a cauda, foi encontrado deitado no tapete do banheiro, no escuro. Resmungou quando ela acendeu a luz. Enquanto eu, inabalável, decidi sair sem máscara nesse último passeio do dia. A minha alergia de primavera – que aqui ninguém chama de rinite alérgica – me lembrou que o vírus não deve ser o único motivo para me cuidar. Sim, eu tomo “levocetirizina” todos os dias, nesse período. Acontece que com menos gente nas ruas (não tinha sinal de vida ainda pouco), o pólen tem que aproveitar cada ocasião. E eu vacilei. Tomei um copão de grappa com limão e mel. Não sei se isso melhora, mas gostei.

Dia 33
Hoje é feriado na Itália, oba! “A Segunda-feira de Páscoa (Pasquetta ou Lunedì dell’Angelo) é feriado na Itália e comemora-se o encontro do anjo com as mulheres (Maria, Maria Madalena, Maria Salomé, Maria de Cleófas e Maria de Betânia) no Santo Sepulcro. Dia de comer fora – restaurante ou picnic – de festejar com os amigos, de digerir o almoço de Páscoa e o chocolate.” Aproveitamos para preguiçar e descansar. A vida tá indo assim, não fazer nada e descansar, estamos cansando dessa rotina. A tradição manda comer fora, mas estamos em quarentena e engordando. Melhor não. Até o Shiva está entrando em um regime. Como bicho fica de mau humor quando tá com fome, não? Já me mordeu duzentas vezes, hoje.
Muita gente tentou viajar para a casa de veraneio ou pra algum churrasco em algum bosque. A polícia aumentou o controle, multou um bocado de infrator e ainda contou com a colaboração da população, que denunciou os veranistas. Quem estava na casa de praia antes da quarentena, pode permanecer, mas quem é que vai pra praia no fim do inverno? Então, né.
O dia esteve nublado, ao contrário do sol dos dias anteriores. E nem eram nuvens de chuva, não, só aquelas nuvens de sombra, mesmo. A alergia vai bem, obrigado. A fome e o desespero pela abstinência quase completa, idem. Afinal, eu só devo ter consumido umas duas mil e quinhentas calorias, hoje. Quem é que vive com duas mil e quinhentas calorias por dia, gente? E tome abacaxi e água pra aguentar.

Dia 34
uaaaa! fff fff fff. oi, jácordei. eu tiamo, viu? cê miama? cê tácordado? cê tácordado? cê tácordado? cê tácordado? eu tiamo, viu? cê miama? fff fff fff fff fff fff. ki chêro é esse no seu lariz? cê tá doente? lep lep lep lep lep lep... cê tácordado! cê tácordado! cê tácordado! cê tácordado! eu sabia ki cê tácordado! seu lariz tá ruim, eu tava lambeno ele procê milhorá, viu? cê tácordado! eu tiamo, viu? cê miama? cê tácordado! fff fff fff fff uaaaaa! podi í no banhêro ki quano cê saí nós vamo passiá. vô tomá conta delaqui, viu? ...oi, já vamo saí? vamo brincá? vamo lutá? eu tiamo, viu? cê miama? oba, vamo passiá! vamo passiá! vamo passiá! vamo passiá! isso, bota a colêra ni mim! vamo passiá! vamo passiá! vamo passiá! ...fff fff fff fff fff fff. tem um chêro di pipí di cachorro macho aqui. fff fff fff fff fff fff. pera, inda é meio fiote, tá dodói não. num conheço esse chêro, é novo puraquí. eu ki mando aqui! vô cobrí o chêro dele! fff fff fff. passô um bichim estranho agorinha, tô sintino u rastro dele. fff fff fff fff fff fff. vamo passiá mais! fff fff fff fff fff fff fff fff fff. pera, tenho ki fazê cocô. vô cubrí u cocô pra... vô cubri u cocô! tenho ki cubrí... fff fff fff. mim dêxa! tem um passarinho, tenho ki pegá u passarinho! vem cá! vô pegá tu, passarinho! vem cá! fff fff fff fff fff fff. eu tiamo, viu? cê miama? um cachorro fêmia fez pipí aki. vô marca meu chêro no dela. vamo passiá mais! fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff fff. pipí. purquê a gente tem ki volta pra casa? cês fica isquisitu di fucinhêra hehehe. vamo passiá mais! vamo passiá mais! não! num kero í pra casa! ...tira a colêra di mim! mim dá papá! quero água! grrrr, meu papá, viu? mim dá, mim dá u papá! quero água! papá! papá! papá! eu tiamo, viu? cê miama? vamo lutá! vamo lutá! vem ká, seu sapeco papeco! vem ká! eu mordu tudu tu! eu mordu! grrrrr eu mordu! sapeco papeco, eu mordu! mim dá meu brinquedinhu! mim dá meu brinquedinhu! mim dá! vem ká seu bestão! sapeco papeco! grrrr eu sô mau, vô ti mordê! vô ti mordê! vô ti mordê! grrrrr! vem ká! vem ká! vô ti mordê! onde cê vai? eu vô tamém! eu tiamo, viu? cê miama? eu vô tamém! ...pera, tô cum sono. vô durmí um poquinhu. eu tiamo, viu? ficaí bestona, vô durmí incima di tu! grrrrr! eu sô mau! faz carinhu ni mim! grrrrr! faz logo ki eu tô cum sono! grrrrr! eu sô mau! eu tiamo, bestona? cê miama? eu tiamo bestona! ...zzzzzzzzzzzzz grrrrrrrr zzzzzzzzzzzzzz grrrrrrrrrrr. oi, faz mais carinho ni mim. cê miama? eu tiamo, viu bestona? num dêxa ele mim mordê quanu ki eu tive durminu. grrrr depois eu passio mais cum ele, tá? grrrrrrrr zzzzzzzzzzzzzz grrrrrrrrrrr. eu tiamo. cê miama? zzzzzzzzzzzzzzz...  

Dia 35
Anos atrás minha sogra folheava um álbum de fotografia com um dos netos, filho de uma das irmãs da Eloá. Mostrava e comentava algumas fotos da tia que morava na Itália e ele, com aquela honestidade peculiar da infância, disse: “vó, quando a tia Eloá morrer eu acho que não vou sentir muita saudade dela, não. Eu mal conheço ela...” Dona Neza caiu na risada e mal conseguiu explicar ao garoto que era normal, que não sentimos falta de quem não fez parte da nossa vida. E que era muito cedo pra pensar naquilo, haveria tempo pra ele gostar da tia, pois ambos tinham muita vida pela frente.
É difícil perder quem gostamos, quem participou da nossa vida, mesmo quando a pessoa não tem conhecimento da nossa existência. Músicos, escritores, artistas, são sempre pessoas que entram na nossa história, que nos ensinam, nos inspiram e nos marcam, ainda que morem em outras itálias longínquas.
Às vezes o coração perde o passo, dá um suspiro tão profundo e longo que a alma fica sem ar. Só a companhia de quem está próximo, daqui ou de longe, ameniza o sentimento que queria entristecer. Hoje, um dia tão normal como qualquer outro domingo dessa eterna quarentena, tratamos de nos concentrar na diversão que foi festejar o aniversário do Shiva. Seis anos, dos quais, dois e meio em casa. A nossa casa, a casa dele. Logo cedo rimos com a percepção do bicho de que estávamos comemorando exatamente ele. Foi uma felicidade só. A reação alegre, a participação, a felicidade. Não tinha a menor ideia do que acontecia, estava apenas feliz por estar aqui. Estava feliz pela felicidade.

1 comment:

Unknown said...
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