Thursday, April 23, 2020

Diário do fim do mundo - parte 6


Diário do fim do mundo – dia 36
Au au au au au au au au...
— Tocaram o interfone.
Au au au au au au au au...
— Amor, cê vai lá embaixo, por favor? Deve ser a minha encomenda.
Au au au au au au au au...
— Shiva, fica quieto! Que encomenda?
Au au au au au au au au...
— Ah, eu precisava fazer shopping. Shiva, para de fazer festa, não é visita, não.
Au au au au au au au au...
— Tá bom, eu vou. Segura o bicho aí.
Au au au au au au au au...
— Tá doido? Ele quer ir pular na visita, fazer amizade, quem segura?
Au au au au au au au au...
— Pronto, taí. Quê que cê andou comprando?
— Nada não, besteirinha.
— Tomara que não seja uma besteirinha a peso de ouro.
— Que nada, fique tranquilo.
Au au au au au au au au...
— Ué, será que o entregador esqueceu alguma coisa?
Au au au au au au au au...
— Não, deve ser a outra entrega que estou esperando. Desce, por favor?
Au au au au au au au au...
— Shiva, quieto! Outra besteirinha?
Au au au au au au au au...
— Huhum.
Au au au au au au au au...
— Tá bom. Segura... Deixa pra lá. Shiva!!!
Au au au au au au au au...
— Tó. Cabaram as besteirinhas?
— Sim, fique tranquilo, gastei pouquinho.
— No fim das contas, acho que nós gastamos menos com essa quarentena.
— Claro, tá tudo fechado!
— É, tem razão. Essas besteirinhas são pra nós?
— Não, só pra mim. Coisas de mulher.
— Hum...
— Coisas pra fazer o pé.
— Ah...
— Quer que eu faça o seu?
— Hum... Não, agora não.
Au au au au au au au au...
— De novo...?
Au au au au au au au au...
— Agora não é pra mim, não. Shiva, chega!
Au au au au au au au au...
— Ah, deve ser a impressora que comprei. Shiva, Shiva, Shiva!!!
Au au au au au au au au...
— Impressora?
Au au au au au au au au...
— É, a velha morreu faz tempo. Porra, Shiva, fica quieto!
Au au au au au au au au...
— É mesmo. Tinha esquecido. Vem cá, vem Shiva.
Au au au au au au au au...
— Pronto, quando acabar a tinta da impressora a gente compra outra.
— Como é?
— Brincadeira, é só pra dizer que as impressoras, hoje, custam menos que os cartuchos de tinta.
— Ah...
— Me daqui esse cabo, pilantra! Não é pra você morder, não.
— Ele só quer participar.
— Sei...
— Liga pra testar.
— Vou ligar.
— Grrrrrr! Au au au! Grrrr!
— Segura ele, ou ele vai destruir a impressora nova.
— Grrrr! Grrrr! Au grrr au...
— Tá doida? Esqueceu que ele odeia barulho de impressora? Quem segura?
— Grrr! Au! Au! Au!

Diário do fim do mundo – dia 37
Em 2012 tivemos uma epidemia de terremotos por aqui. “Por pura coincidência”, no mesmo período em que inventaram de fazer perfurações profundas em busca de gás, da ética política ou do Cálice Sagrado, sei lá. Desenvolvi a capacidade de advertir o menor tremor, mesmo aqueles distantes centenas de quilômetros. Levei uns bons anos funcionando como sensor sísmico: “uns 3.2 graus, 15h25”. Ia controlar no site do INGV (www.ingv.it) e não errava uma. O curioso é que as sensações nem sempre eram iguais. Eu sentia fisicamente o tremor, em alguns casos e uma ligeira tontura, em outros. E, não, não é uma sensação agradável. Mesmo para alguém com muito sangue frio, como eu. Foi passando aos poucos, com os anos.
Ontem teve um terremoto aqui na província (na verdade foram cinco, mas só o primeiro foi de 4.0 graus) que eu tive o prazer de não sentir. Como não senti o de anteontem, de 3.5 graus, no mesmo vilarejo de Cerignale, onde vivem pouco mais de 120 almas. Xô, terremotos! Queremos paz.
________________________________________________________________

Desde o início da quarentena tenho notado que a polícia não fiscaliza estrangeiros africanos. Imagino que a polícia saiba que eles estão nas ruas por trabalho, ou não se arriscariam. Mão de obra barata para empregos indesejados, são essenciais na manutenção da produção essencial, a que não pode parar. Espero estar certo. Seria o troco dos tempos normais, quando são os mais controlados.
____________________________________________

— Acho que esse fogo não está esquentando direito.
— Oi?
— Eu começo a tomar café e ele esfria rápido demais.
— ...Ah, tá.
_____________________________________________

— O que a gente come hoje, hein?
— Tem uma linguiça...
— Hum, tinha pensado em alguma coisa...
— Light? Tem razão, umas batatas, vagem...
— Não, alguma coisa mais substanciosa, tipo lentilha e cotechino.
— Ah! Mas aí é um exagero, nós precisamos dar um tempo. Que tal uma amatriciana? Se você quiser carne, pode comer um bife.
— Tá bom, então. Mas deixa o bife pra noite.
— Ai, se bem que eu volto a trabalhar na segunda. Não, vamos de cotechino.
— Faz o seguinte: hoje a amatriciana, amanhã fazemos o cotechino.
— E a linguiça?
— Domingo. Bora aproveitar esse final de semana.
— Combinado. Tintim!


Diário do fim do mundo – dia 38
Está aberta oficialmente a temporada 2020 da primavera. Favor não reclamar dos pernilongos. O pólen é cortesia da casa.
__________________________________

- Neve, huski siberiana beeem velhinha, mora na esquina. Dificilmente deixa o Shiva chegar perto pra cheirar, só aconteceu duas vezes. Cruzamos com ela dia sim e outro sim. Ele fica doido pra fazer amizade mas ela tem muito medo.
- Dylan, beagle de uns seis, sete anos, mora no prédio ao lado, conversam pelo balcão da cozinha. Amigão dele. Adoram se encontrar e brincar. Jogo rápido, que eles têm mais o que fazer. Se encontram pelo menos uma vez por dia.
- Mambo, vira-lata de vinte anos, completados em janeiro, mora do outro lado da rua, em frente ao prédio da Neve. Adora ele, mas tem um pouco de medo. Se cheiram, abanam o rabo e o Shiva passa a ignorá-lo.
________________________________

— Experimenta essa máscara qu’eu fiz.
— Hum, confortável, hein?
— Gostou? Fiz três pra você passear com o Shiva
— Ah, que legal! Brigado. Esse tecido... Tá parecendo aquela minha camisa de cangurus.
— Que camisa...?
— Peraí, você usou a minha camisa dos cangurus pra fazer máscaras?
— Ué, já tava rasgada. E, depois... Só usei uns pedacinhos.
— A minha camisa!
— Que tava no saco pra jogar fora. O elástico ficou na medida certa? Num tá apertado demais?
— Que saco?
— Ué, aquele saco de roupa velha pra jogar fora.
— E como é que a minha camisa de cangurus foi parar nesse saco?
— Porque tava rasgada? Porque era velha e nem pra doação servia mais? Porque era pra jogar fora?
— A minha camisa...
— Reciclada. Virou máscara. Melhor que jogar fora, né?
— A minha camisa...

Diário do fim do mundo – dia 39
O cão (é um cão) levanta e eu já sei que ele vai fazer pipi no balcão, ou não teria abandonado a almofada macia sob o sol que ele tanto gosta. Mas antes, se coça. Na volta se coça de novo, fazendo questão de que eu o veja. Volta pra almofada e se coça outra vez. Levanto e vou lavar o pipi lá fora e ele se coça na minha volta. Shampoo delicado, escova macia e água morna. Pego o cão no colo e dou aquele banho, dentro da banheira. “Esfrega mais pra cima... Mais pra esquerda... Isso, não para, por favor. Não para!” Cheiroso e enxugado, vai rebolar pra ela na sala. Seco a piscina, volto pra sala, olho o cão roncando no sofá, feliz da vida.
Avisaram sobre um outro terremoto. Dessa vez, na província de Pavia, na divisa com a província de Piacenza. Sorri tranquilo, não senti nada. Ao meio dia os sinos de todas as igrejas da cidade tocaram juntos. Lembrei que o bispo celebraria uma missa na catedral no domingo, mas só no domingo. Olhei no calendário e descobri que é domingo. Quando soube que voltaria ao trabalho amanhã, ela jogou as peças do quebra-cabeça quase pronto dentro da caixa. Ouvi um suspiro aliviado. Em compensação, terminou hoje de restaurar o pinguim como deu. Faltavam alguns cacos, como em todas as histórias.

Diário do fim do mundo – dia 40
Francesco, pai de uma amiga das meninas, voltou pra casa depois de quarenta e cinco dias no hospital, vítima do COVID19. É uma notícia para se comemorar. Aliás, é a melhor notícia desses dias de quarentena, junto à vitória do amigo Giuseppe, que relatei no quarto dia, que já está em casa há alguns dias e que já nos telefonou com o mesmo humor de sempre.
Uma chuvinha fina e insistente nos faz companhia desde ontem à noite, o que deixa vocêssabemquem de humor mais ácido, sonolento, sem apetite. E de humor mais ácido, de novo. Não abanou o rabo uma vez sequer, hoje.
A Eloá voltou ao trabalho. Entrou em casa depois do horário normal, quebrada como macarrão pra cachorro. Depois de mais um mês fechado o lugar precisava de uma reorganizada e faxina geral. Sim, foi ajudada. Por outras pessoas macarrão pra cachorro.
Faxina geral: não fiz.
Comidinha gostosa: não fiz – almocei o resto da lentilha com cotechino.
Passar roupa: tá doido? São anos que abolimos.
Arrumar o porão: vai ficar pra outro dia.
Escrever: hum, ...quase.
Tretar: hoje não.
Ideias pra salvar o mundo: ...! (suspiro)
Fumar um charutinho lá fora com o Shiva: trocamos por uma cochilada juntos.
Levar o cão pra passear: e eu que não leve pra ver o que acontece.

Diário do fim do mundo – dia 41
O primeiro ministro italiano fez um pronunciamento hoje no Senado. O ponto crucial não foi o esclarecimento sobre a ajuda econômica do governo para os meses de abril e maio, argumento amplamente divulgado. Tampouco foi a batalha com a EU sobre o modo de ajuda – sempre econômica – aos países em dificuldade. Todo mundo sabe que a união ainda não pode ser escrita com uma “u” maiúscula, pelos interesses diferentes entre os países que a compõem. Não, o que mais chamou a atenção foi a explicação sobre o funcionamento da app que, em teoria, rasteará os possíveis contagiados e seus contatos. A app “Immune” é indicada para os smartphones e o objetivo é informar ao usuário se esteve em contato com um portador do vírus. A grande discussão do momento é o risco de controle para outros fins por parte dos governos e/ou empresas envolvidas. A legislação europeia é muito rigorosa com um argumento tão delicado e a pressão dos cidadãos não dá descanso, quando a própria privacidade está em jogo. O primeiro ministro garantiu que não há risco de identificar o usuário e, para alívio geral da nação, informou que a adoção não será obrigatória, mas voluntária, assegurando que nenhum tipo de discriminação sofrerá quem optar por não instalar a app.
____________________________________

O departamento de radiologia do hospital de Piacenza, desenvolveu um método para avaliar se um paciente com o COVID19 precisará de tratamento em terapia intensiva ou não. Ou seja, com o método é possível saber ANTECIPADAMENTE, como o paciente irá desenvolver a doença. O estudo foi publicado na revista Radiology.
Links nos comentários. Divulguem o link na página de vocês, se quiserem. Os médicos das tl de você vão agradecer.
_____________________________________

A chuvinha chata não parou, Nutella vai bem com café, as máscaras que a Eloá fez são confortáveis (mas ela terá que se virar pra me dar outra camisa de cangurus), cortei as unhas, fiz a barba, o cabelo ainda não cresceu, pendurei a roupa lavada, me telefonaram, eu telefonei, assisti lives e documentários, o Shiva fica muito preguiçoso com esse tempo e eu não vejo a hora de acabar a grappa pra abrir a garrafa de conhaque.
Querem saber? Vou abrir a garrafa de conhaque agora.

Diário do fim do mundo – dia 42
Parabéns a você, Terra!
Hoje é o dia Universal da Terra. E, sim, a Terra plana. Plana graças aos ventos alísios galácticos que sopram os cabelos dos cometas que visitam o sistema solar, num voo helicoidal há muito e muito tempo. Antes mesmo do tempo ser inventado. E porque não tem asas, por isso ela plana no pano escuro furado de ponta de estrelas. Perguntem aos xapiri e à Caipora do mato. Não a que vive na Taiga, a maior floresta do mundo, não, mas a Caipora que vive nas matas do interiorzão brasileiro, Brasil pandeiro das muvuca, que hoje é dia de festa.
Essa Terra aqui da terrinha tá fazendo festa. Destruíram a mata errada e fugiu um vírus aí que nem te conto. A bicharada tá alvoroçada dançando nas fontes artificiais das cidades, jardins das casas e prédios de observação. Só observando o resultado da estripulia que fizemos durante anos e anos. Até milênios, quem sabe. A Terra. A Terra sabe. Ah, ela sabe! Perguntem pra Marte. Ou pra Júpiter ou outros deuses qualquer, eles vão confirmar, lá do firmamento. Vão sim.
E você, já jogou seu plastiquinho fora hoje? Bituca de cigarro no chão? Já descartou a sua mascarazinha pelas ruas? A Terra sabe. Ah, ela sabe!
.

No comments: