Thursday, April 30, 2020

Diário do fim do mundo - parte 7


Diário do fim do mundo – dia 43
Na Itália não existem casas lotéricas. Alguns bares fazem jogos de loterias, mas o grosso é feito nas tabacarias. É nesse estabelecimento onde todo artigo comercializado através de monopólio de estado está concentrado. Tabaco, loterias e sal, além de outros serviços e bugigangas livres, de concorrência mercantil, são oferecidos ali. Sim, sal, que deixou de ser monopólio do Estado depois de séculos. Foi na tabacaria da praça, onde compro meu charuto a mais de vinte anos, que vi (antes da pandemia) uma senhora com duas sacolas de supermercado entrar, pedir um quilo de sal, pagar e sair. Perguntei à proprietária – depois que a cliente saiu – por que a senhora não comprou o sal no mercado. Ela deu uma gargalhada e esclareceu que muita gente só confia no sal das tabacarias, apesar de ser exatamente o mesmo produto em qualquer estabelecimento, que velhas manias duram a vida toda. Acontece que Piacenza foi decretada zona vermelha, pelo alto número de contagiados, o que levou à decisão de fechar, também, as tabacarias, consideradas como serviço não essencial.
Pois bem, as tabacarias foram autorizadas a reabrir. Pode-se comprar de tudo, menos jogar nas muitas, mas muitas mesmo, loterias. A suspensão das loterias foi uma das primeiras medidas que o governo tomou quando iniciou a quarentena, para evitar que as pessoas saíssem de casa para jogar. A caducidade também foi suspensa, nenhum ganhador vai perder o prêmio. A saúde da população é mais importante que a avalanche de dinheiro arrecadada no país das loterias. Não estou pedindo comparações, como não estou impedindo ninguém de fazê-las.
E por falar em charutos, eu devo ser o único fumante que tem um cachorro que me pede para fumar. Às vezes – todos os dias – o Shiva vem me chamar. Ele para na minha frente e sai. Fica indo e voltando até que eu o acompanhe pra ver se está faltando água numa das duas bacias dele. Se uma delas estiver vazia, ele avisa. Também pode ter combinado alguma coisa que quer nos mostrar. Eu o acompanho e ele senta do lado de fora, no balcão. Esse é o sinal, quer que eu fique lá fora com ele, fumando. Não desiste até me convencer, ou fica de mau humor, deita no outro sofá (não o grande, da Eloá e dele, mas no menor) e vira a cara pra parede. E ai de quem chegar perto! Tô viciando meu cachorro.
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Dúvidas da quarentena: se a água não fosse líquida, mataria a sede do mesmo jeito?

Diário do fim do mundo – dia 44
Hoje foi um dia muito feliz. Sol, clima primaveril, um bando de passarinhos cantando, um pica-pau picando a árvore, lives de amigos, os servicinhos de casa completados... Tá bom, faltam alguns, mas concluí o que iniciei.
Teve laranja vermelha,
Teve tangerina doce,
Carinho no Shiva,
Carinho do Shiva,
Passeio tranquilo,
Passeio menos tranquilo,
Teve picadinho com batata,
Teve prosecco,
E sanduíche de mortadela com fatia fininha, fininha de limão.
Hoje perdi os óculos e o celular.
Achei os óculos mas não o celular.
Até sentar e descobrir ele no bolso. Que lugar estranho pra se esconder, celular. E pensar que eu ria do meu pai procurando os óculos com eles na testa. Eu perco os meus umas cinco vezes por dia. Só não os deixo na testa pra vergonha não ser maior.
Hoje eu e o Shiva cantamos e dançamos.
Agora tá rolando uma cervejinha com pedaços de grana.
E tá bom assim.

Diário do fim do mundo – dia 45
Hoje, 25 de abril, é festa em Portugal e na Itália. Em Portugal comemora-se o fim da ditadura salazarista, em 1974, a chamada Revolução do Cravos. Na Itália a data marca a proclamação da insurreição geral em todos os territórios ainda ocupados pelo nazifascismo, pelo Comitê de Liberação Alta Itália, em 1945, criando o Dia da Liberação ou Dia do Partigiano. “Grândola Vila Morena” é a música símbolo em Portugal; “Bella Ciao” é a da Itália.
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Calendários, datas importantes, relógio, horas. O tempo dos bichos é diferente do tempo dos homens. Antes do sol nascer o Caruso, o melro que mora no telhado dos fundos, já começa a cantar. Não demora para que outros melros e não melros cantem junto. É o momento de mostrar-se forte, quando na realidade o corpo está debilitado pelas tantas horas sem alimento. Mas qual melra iria se apaixonar por um fracote? E eles cantam. Cantam pra avisar aos concorrentes que são fortes, logo de madrugada. Melhor não se meter.
O tempo desse Preto cada vez menos preto está ligado ao nosso. Só levanta da cama quando os dois se levantam. Se um de nós fica, ele não se mexe. Até perceber que eu estou me preparando pra sair com ele. Cochila quando está cansado, rosna quando quer algo (até pra pedir carinho ele rosna), brinca quando tem vontade e à noite abandona o reino dos vivos.
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Hoje fiz kafta pela primeira vez. Por ter sido a primeira vez, ficou ruim. Quer dizer, tinha sabor, tempero na medida justa, só faltou uma pimentinha porque não estou autorizado ainda. O problema foi a textura. Vou ter que me exercitar até descobrir como não deixar tão compacto.
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Perguntinha que uma criança me fez uns quarenta anos atrás: “pra onda vai o escuro quando a gente acende a luz?”

Diário do fim do mundo – dia 46
— Quem ligou?
— ...
— Quem ligou?
— Ninguém.
— E o que ele queria?
— Falar com você, mas eu disse que não estava.
— Inda bem, eu não queria falar com ele num domingo de manhã.
— ...Ah, tá.
— Que que você vai fazer de almoço hoje?
— Eu? Cozinhar? Tá maluco?
— Poxa, ontem eu fiz kafta, né.
— Eu sei. Ainda tô digerindo ele. A gente come uma saladinha com muçarela.
— ... (suspiro)
— Põe alguma verdura no vapor pra você, que eu vou comer salada crua.
— Você sabia que sabiá sabia assobiar?
— Sabiá não assobia, ele canta.
— E você sabe por quê?
— Nem quero saber. Basta que o deixem cantar em paz, livre.
— E você sabe...
— Aproveita que você vai na cozinha e pega uma cerveja pra mim.
— Ei, mas eu não vou preparar minhas verduras agora. Tá muito cedo.
— Claro que tá cedo! Eu não falei pra fazer almoço agora.
— Então! Eu não tenho nada pra fazer na cozinha agora.
— Tem sim.
— O que?
— Pegar minha cerveja, ué.
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A vida começa a mandar sinais. A rua onde moramos está no que chamamos “zona 30”, ou seja, existe um monte de placas de trânsito limitando a velocidade a trinta quilômetros por hora. Sempre foi. O fluxo de carros, bicicletas e pedestres, durante a quarentena, era quase inexistente, a não ser nos horários de início ou troca de turno, para os que não pararam de trabalhar. Mesmo assim, não chegava a cinco por cento do normal. A alguns dias o movimento vem aumentando, já passam alguns carros a sessenta, oitenta por hora, os quarentenados desesperados já saem para uma caminhada na rua. Timidamente, por enquanto. E o controle da polícia reduziu o rigor. Outra coisa, o som das tevês evade dos apartamentos pelas janelas outrora fechadas. Segundo uma teoria que acabei de inventar, a principal causa da perda da audição na terceira idade é o tom da voz, principalmente quando se fala ao celular. Considerando a quantidade de lojas de aparelhos para surdez da cidade, suponho que existem muitos clientes. Quem tiver interesse, já é possível saber da vida dos vizinhos simplesmente colocando a cabeça pra fora da janela. A fofoca é garantida.

Diário do fim do mundo – dia 47
Os passarinhos estão na maior algazarra, a paquera já começou. Logo, logo vai ter filhotinho aprendendo a voar, pais aflitos, o vai e vem pra encher o saco sem fundos que é bucho de filhote.
Passear com o Shiva às dez da noite é uma tranquilidade que espero dure bastante. Ele está se acalmando cada vez mais e já não late pra qualquer cachorro. Os labradores continuam na mira dele. Ele já pode ser apelidado de Bola 7. Preto e redondo.
O início da abertura gradual da quarentena cria mais ansiedade e os riscos aumentam. Máscara já virou moda faz tempo e vai ser de uso comum (obrigatório?) por muito tempo. As escolas só irão reabrir em setembro, início do ano escolástico. E o que acontece nesse ano? Não sei ao certo, ouvi dizer que a escola à distância vai continuar, com lições e trabalhos e coisas do tipo. Honestamente, não quero saber mais disso, já fiz a minha parte, as meninas estão em idade de doutorado.
O pobre do primeiro ministro italiano é sempre bombardeado, não importa o que ele faça, não importa o que ele diga. Os políticos que estão fora do governo precisam urgentemente aparecer e imagino que o melhor modo é criticar. Pessoalmente acho que ele está matando um leão por dia, lutando pelo isolamento social, programando a reabertura devagar e por setores, praticando braço de ferro com a Europa, tendo que prever o futuro e adivinhar estratégias, enfim. Além do leão por dia, ainda tem dois búfalos e duas jiboias por noite.
Abobrinha refogada no almoço (sim, só abobrinha) e torta de abobrinha e carne de panela no jantar. Frutas, café, suco, muita água, charuto.
Quando escrevo um e.mail em italiano, sempre coloco no rodapé uma fila de consoantes bbbbbcccccccddddffff... E os dizeres: muito provavelmente esqueci de colocar alguma consoante dupla. Por fineza, use essas em caso de faltas.
Pax Vobiscum!

Diário do fim do mundo – dia 48
O dia começou muito bem, obrigado.
Almocei lá pelas duas da tarde, legumes cozidos e peito de frango, mais uma colher de Nutella e duas barras de chocolate, nada de anormal. Resolvi dar uma cochilada no sofá. A dor de estômago que me acordou era tão forte que passei mais de uma hora sem força pra sequer abrir o olho. Não houve remédio que fizesse a dor passar.
Concluí que não foi um bom dia e vou dormir.
Fim.

Diário do fim do mundo – dia 49
Ontem, depois de passar mal com muita dor de estômago, fui levar o Shiva pra passear. Caminhamos quase meia hora. Voltei pra casa e a dor foi diminuindo até sumir. Malditos vegetais cozidos!
As ambulâncias já não se ouvem, os números diminuem, parte das atividades voltam a abrir segunda-feira. Bares, restaurantes, cinemas e qualquer lugar que tenha habitualmente aglomerações, permanecem fechados até dia 18 de maio. Meu receio é as pessoas acharem que liberou geral e ter uma recaída. Espero que o senso de civilidade fale mais alto.
Temos uma tv no quarto que raramente era usada. Nesse período de quarentena ela votou a funcionar. Para não incomodar a Eloá, coloquei um filme em língua espanhola com legenda e volume baixo. “vou ficar com sono de ler as letrinhas e vou dormir. A tv que se lasque e desligue sozinha”. Mas o filme era interessante e assisti inteiro. E depois outro. Isso, no primeiro dia. Já vi quase todos os filmes espanhóis, argentinos, um chileno, alguns mexicanos, um paraguaio e ontem, um colombiano. Em seguida, um holandês.
Hoje passei das 10h00 às 14h15 instalando o decoder da sky que veio numa promoção (vou devolver quando acabar o período grátis). Não, o problema não era meu, mas do decoder que não tinha a matrícula registrada. Tá funcionando agora, depois de exercitar a minha paciência e a da atendente. Mais um que não vou usar. Temos Netflix, Amazon Prime e uns quinhentos canais da tv aberta, dos quais só uns quinze servem pra alguma coisa e uns dois que realmente valem a pena. E livros. Ela vai pra cama e lê. Eu durmo ou assisto meus filmes o Shiva resmunga e ronca.
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