Diário do fim do mundo – dia 50
Ah, Seu Zé! Cinquenta dias de quarentena, mais uma semana de restrições
e eu aqui pensando no que faríamos numa situação dessa. Conhecendo bem o
senhor, sei que teria fechado a prestigiosa 1020 logo no início dessa história, pra proteger a
família e os clientes. Teríamos juntado a tropa, enganchado o barco na fiel
Veraneio e ido pralgum rancho na beira do ‘Panema. E lá estaríamos, comendo
churrasco, muita laranja, bebendo uma fábrica de cerveja, capinado o mato e
jogado muita conversa fora. Com sorte (muita sorte, na verdade) teríamos até
pescado uns barbudinhos. Notícias? Uma ou outra pelo rádio umas duas vezes por
semana.
Pescar sem hora, sem compromisso, sem peixe, que os peixes do ‘Panema
num gostam da gente. Pescar de madrugada, dormir à tarde, subir e descer o rio
sem rumo. Só com isca e um pouco de prosa. Pescar de dia sem saber das horas,
comer “estalazói” no bar do João e conversar com as estrelas. Acho que o senhor
nem ia se incomodar com o meu charuto.
O bom da quarentena é saber que não adianta se preocupar e, se não
podemos fazer nada, vamos fazer nada com vontade. Tem que fazer algum remendo
no bote? Lubrificar o motor? Tomar banho de água fria? Rir em volta da fogueira
e dormir no beliche? E a graça não é essa mesmo?
— Peraí, Seu Zé! Beliscou alguma coisa aqui.
Diário do fim do mundo – dia 51
O cachorro dorme na almofada que eu trouxe pro balcão, ouvindo uma
sequência interminável de música indiana. Talvez os ouvidos dele sejam mais
aptos que os meus para perceber todas as nuances das ragas, mas eu também
gosto. Fumo, leio, escrevo e surfo na rede. Vinho e dia nublado, com chuviscos
esparsos.
Um primeiro de maio diferente. Feriado que não faz diferença neste
período.
Enquanto ficamos em casa quarentenando no sofá, me divirto com a
peraltice do Shiva, com as piadas bobas do nosso cotidiano e com os memes nas
redes sociais. É um modo para distrair, esquivar-me das tantas preocupações
nessa desarrumação temporal. Tem muita coisa que nos amargura, nos faz sentir
impotentes. Uma questão tem ocupado a minha alma nos momentos de divagações
distraídas: como sobreviverão os profissionais da saúde, futuros veteranos de
guerra?
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Não, hoje não tem final engraçado pra amenizar. Sinto muito.
Diário do fim do mundo – dia 52
Sabadão de sol, dia 2 de outembro do ano que nem lembro mais e que
também não faz a menor diferença. O Shiva tá evitando a gente, vive se
escondendo. Quando o achamos, ele rosna e mostra os dentes. Pra distrair, tenho
passado até lenço de papel e colorido os gibis coloridos da Mônica. Matei todas
as plantas afogadas, acho que regar três vezes por dia não foi uma ideia
genial, como pensei. Outra coisa, descobri que não adianta nada plantar
sementes de feijão e cuidar. Passei duas horas olhando e não brotou droga
nenhum. Tô irritado com a tal da Sky. Tem tanto canal que chega a dar enjoo.
Inda bem que veio numa promoção e não tive que pagar. Quando acabar o período
grátis, devolvo essa merda.
Parei de ler jornais. Agora sou eu quem escrevo as minhas próprias
notícias. Uma delas informa que a construção da escada rolante até a Lua fica
pronta até o fim do ano. Serão construídos dois shoppings e cinco hotéis. Todos
os quartos terão janelas para a Terra, wi-fi, dezoito mil canais de tv e
frigobar só com água. Os banheiros químicos serão dotados de duchas secas e
todo o sistema elétrico funcionará a energia solar. O oxigênio terá uma taxa
extra. Na descida de volta à Terra, obrigatoriamente, cada visitante trará de
volta todo o lixo produzido, devidamente separado e empacotado pelo serviço
sanitário local. Isso para evitar aumentar as dimensões do nosso querido
satélite e para impedir que espalhemos merda pelo Universo. Já basta a que
fazemos por aqui.
Uma outra notícia informa que merda será o alimento do futuro. Não,
pera. Isso é piada velha.
Diário do fim do mundo – dia 53
Um super domingo de sol de primavera. Isso levanta tanto o astral que
chego a esquecer o mundo por alguns momentos. O Shiva está ora serelepe, ora
calmo. Deve ser o ar. Ou a seleção de música indiana que tomou conta do balcão.
Não sei se é uma posição de yoga, mas passou a tarde deitado no colchão da
varanda, com o queixo apoiado no meu pé. Levantava quando ouvia algum cachorro
na rua, choramingava, latia e voltava pro meu pé. Isso depois de me morder todo
até cansar.
A Eloá, a Bianca e a Luiza estão bem. Vontade de fazer cosquinhas nas
minhas filhas. A Bia não deixou de trabalhar nenhum dia, mas ela trabalha a uns
oitocentos metros da casa dela e se cuida direitinho. A Lu avisou que deve
ficar em casa por mais um ou dois meses. Já disse que, pandemia permitindo,
virá em junho. Pra cortar o cabelo no cabeleireiro dela. Believe or not.
Os parentes estão nas mesmas condições de todos os que vivem no Brasil,
com alguns problemas de ordem cotidiana e sem vírus. Estamos tranquilos por
eles como estaríamos se estivessem amarrados, em pé, na prancha do navio do
Capitão Gancho. Creio que é o normal, não?
Diário do fim do mundo – dia 54
Hoje começou a segunda fase da quarentena. Algumas classes já voltaram a
trabalhar, inclusive eu. Muitas outras como bares, restaurantes e barbeiros, só
no dia 18. Um cliente me chamou para
restaurar os bancos de um automóvel e o volante de outro, coisa que eu tiro de
letra. Estou megalodontemente cansado.
Mas a quarentena ainda não acabou, apenas diminuiu. Só posso sair SE
algum cliente me chamar. Luvas, máscaras, proteção para os olhos, álcool... Tem
que levar tanta coisa que quase esqueci de mim em casa. O lança-chamas custou
uma fortuna.
A minha impressão é de que tem muito mais gente na rua que o permitido,
desde sexta-feira. Esse povo tá deixando a nossa oportunidade de passar essa
fase na boca da caçapa.
Lembrei de uma coisa, espero que entendam que não é indireta pra
ninguém.
Tenho certeza de que mulher nenhuma possa parir certos tipos de pessoas
(de onde vêm?):
Grandíssimo filhíssimo da putíssima!
Diário do fim do mundo – dia 55
Então é assim, né? Pouco mais de um mês atrás eu precisava de edredom ou
o aquecedor ligado para dormir. Hoje ao meio dia comecei a lembrar do
ar-condicionado. E tem gente achando que tá tudo bem, né?
Andorinhas, gente! Eu adoro andorinhas e elas chegaram. Lembro de um
serviço que fiz numa oficina que só trabalha com carros antigos. Na primavera
eles abrem as portas pra poder hospedar as andorinhas que têm ninho lá dentro.
Abaixo dos locais dos ninhos colocaram folhas de metal para proteger quem
trabalha embaixo e deixar as bichinhas em paz. Todo mundo ri quando uma delas
suja alguém. Dizem que dá sorte. Os carros são cobertos com lonas e, no final
do dia, todos ajudam na lavagem de tudo. Ninguém toca nelas.
Entre os estabelecimentos que puderam abrir desde ontem, todos os que se
organizaram para take away iniciaram. As sorveterias, por exemplo, deixam
entrar um cliente de cada vez, só não pode consumir lá dentro. Hoje almocei
kebab. Já comi muito kebab, perdi o hábito. E – maravilha das maravilhas – as
pizzarias começaram a fazer entrega. Num raio de duzentos metros de casa, tem a
pizzaria mais antiga da cidade, outras quatro que vendem pizza em pedaços, uma
focaceria, uma piadineria, cinco sorveterias e mais umas dez opções de comida.
A Pizza Del Sole é uma que vende pizza em pedaços. Está muito longe de ser a
melhor pizza da cidade, mas é tradição e nós gostamos. Além de ser um símbolo
de normalidade. Dentro só cabem umas oito pessoas espremidas, todo mundo pega e
vai comer fora. Pois eles entregaram há pouco uma pizza gigantesca de presunto
cozido. Acabou em dez minutos. Tem que comer enquanto está quente. As tradições
sobrevivem.
Diário do fim do mundo – dia 56
Se você varre a casa de manhã e à tarde tem a impressão de caminhar
sobre a areia da praia, então você tem um cachorro. Mas se a situação era a
mesma, mesmo antes de ter um cachorro, então você mora em Piacenza. Essa é a
cidade dos quarteis, das igrejas e do pó. E não confunda pó com Po [pô], o rio
que passa pela cidade. Tá certo, o Shiva tem muita culpa nesse cartório, mas
ele é ele, foi um deus que o fez assim, quem quiser que faça outro, se achar
que ele é ruim.
Lá se foi outra dose de conhaque.
Que clima delicioso, gente. Tô sentindo o ar mais leve, mais respirável
e brilhante. Tudo bem, o conhaque só tomei depois, tô bebo não.
Como um doente que se recupera aos poucos, a cidade vai experimentando
movimentos, tentando lembrar como era antes do coma, se esforçando para
recuperar o tônus dos membros, se adaptando à máscara na cara. A cidade,
embriagada, tenta levantar da cadeira e vacila. Decide não arriscar. Não agora.
Talvez em alguns minutos, ou talvez decida tomar outro gole comigo.
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