Thursday, May 14, 2020

Diário do fim do mundo - parte 9


Diário do fim do mundo – dia 57
O bom de estar longe é que é ruim.
A distância não é perto; o virtual não é real, não é palpável.
O tempo não demora nada. O presente vai virando passado, vai passando, passando.
E daí que as imagens se embaçam, se embaraçam, perdidas nalgum canto da memória.
Pra falar a verdade, eu nem lembro mais o que não podia esquecer. Tampouco sei se era importante. O que importa?
É uma falta tamanha que chega me encher. E eu nem sei do que careço.
Você sabe?

Diário do fim do mundo – dia 58
Agora passou dos limites. Essa esculhambação tá muito mal desorganizada. Eu saio de manhã com o Shiva de malha e colete, sob nove graus. Três da tarde e tô suando num sol de trinta e um graus. Com quem é que fala prarrumar essa merda? Não dá, gente. Não dá.
[...]
Gente, eu acabei dormindo antes de terminar. Acordei hoje, dia 59 da quarentena e o computador tava puto da vida.

Diário do fim do mundo – dia 59
Quanto mais observo as patetadas humanas, mais admiro os cães.
Por outro lado, devo confessar que sempre sonhei com um mundo onde a maioria dos políticos, governantes e líderes em todas as áreas, fossem mulheres. Sério mesmo, homem sempre se supera no quesito fazer merda.
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Italiano é como qualquer outro latino, para quem as regras são interpretadas com a convicção de quem faz parte das exceções. As ruas começam a voltar à normalidade. Quer dizer, à normalidade que existia antes da pandemia. Já se veem grupos de pessoas passeando, conversando, andando de bicicleta sem máscaras. Grupos de seres que até a semana passada mal saíam de casa sozinhos e que agora se juntam, sem proteção, em atividades que podem elevar novamente o contágio. Não se assustem se a Itália voltar à quarentena nos próximos dias.
A primavera tomou conta de tudo. Estou aproveitando ao máximo, nunca se sabe se vai virar verão amanhã ou se o frio vai dar as caras de novo.
Moramos num dos três prédios construídos à frente do convento. A entrada da garagem é pelo nosso edifício e o pátio, grande, vazio e inutilizado é comum aos três. Uma construção única com entradas separadas. O cachorrinho de um novo vizinho ainda estranha – e é correspondido – os cães que já moravam aqui. O Shiva, o Nacho, um outro pitbull pimenta como o nosso, o simpático beagle Dylan, a vira-lata Pretinha (não sei o nome, a chamo assim), um outro peludinho que ainda não consegui identificar e os dois brincalhões do convento. Todos precisam aceitar e se acostumar com o recém chegado. Cães passeando ou brincado no pátio? Seria uma guerra. E o Shiva já prometeu atacar, morder, esfarelar, matar e mijar no cadáver dele. Que fique atento.

Diário do fim do mundo – dia 60
Eu errei.
Errei quando escolhi não comer ontem à noite antes de dormir.
Errei ao sequestrar todo o conteúdo da geladeira de madrugada.
Errei por ter feito desaparecer todo o fruto do sequestro.
Errei ao tomar duas cervejas. Deveria ter tomado três.
Errei ao esconder o chocolate “onde ninguém vai achar”.
Errei por não considerar que nem ela nem o Shiva comem chocolate.
Errei porque nem eu achei.
Errei por ter saído com o cão muito cedo e sem blusa.
Errei porque nem percebi que tava de blusa sim.
Errei por suar com a blusa que vesti ainda dormindo.
Errei na hora de botar cerveja na geladeira. Era pouca.
Errei até quando decidimos adotar essa disgrama. Tinha um dorminhoco preguiçoso lá.
Errei ao deixar ela queimar o meu calo.
Errei acreditando no “não dói” dela.
Errei ao não ir tomar sorvete quando saí com o Shiva. Agora tudo fecha às nove da noite.
Errei quando confiei na minha memória.
Onde será que eu escondi o chocolate? 

Diário do fim do mundo – dia 61
“Quem não tem cão caça com gato.”
No lugar do Shiva eu tinha que ter o quê? Um tigre?
Tô com saudades das minhas filhas. Pra falar a verdade, verdade mesmo, tô com muitas saudades delas. Não, vídeo chamadas não serve. Quero abraçar, beijar, cheirar, fazer cosquinhas e ficar sentindo o respiro delas nos sofás.
Hoje fui fazer um serviço numa concessionária e eles modificaram os acessos. Fecharam todos e só deixaram duas entradas. Uma para a loja e outra para a oficina, com termômetro, máscara, desinfetante, cartazes indicando o que pode e o que não pode, um show de precaução. Sabem o que disse? Valeu!
O chinês abriu. Aquele chinês que só não vende alimentos, o resto tem de tudo. Acho que até navio eles vendem. Metade da loja estava com cordão de isolamento indicando as mercadorias que não podem ser vendidas, segundo o decreto da quarentena. Os supermercados estão na mesma situação desde o início. Não me perguntem, também não sei. Tive preguiça de me informar e não preciso do que não está à venda. E tinha fila obediente para entrar e no caixa.
Tô com vontade de comer churrasco. A vontade de acarajé não passa, é inextinguível. Rá, essa tem no dicionário.
As pessoas se organizaram tanto pra não ficar parado durante a quarentena que já não têm tempo pra telefonar pros amigos. O pilantra do Cássio tinha combinado de me ligar à noite e nada. Liguei e só dá ocupado.
Melhor assim, pensei em ir assistir um filme no quarto e só não fui porque esperava ele me ligar. Cês tinha alguma dúvida de que eu ia acabar dormindo e esquecer a comida do Shiva no fogo? Claro que não, né? Cês sabem que eu já tinha esquecido e só lembrei quando fui buscar uma cerveja pra me fazer companhia.
Cada macaco velho com a mão na sua cumbuca, senão, dá galho.

Diário do fim do mundo – dia 62
Quem já visitou a Itália sabe que a regra gastronômica por aqui funciona assim: um prato de massa ou risoto antes, um prato de carne com contorno de verduras depois e a sobremesa. Pode ainda contar com entradas, sopas e outros pratos, mas não se come tudo de uma vez. Nunca. Um PF brasileiro, com feijão, arroz, carne, verdura e salada (quando não tem macarrão), irá atordoar um italiano. O pobre coitado não terá a menor ideia do que fazer diante de tal blasfêmia culinária.
Uma das novidades da quarentena é a variedade de pratos entregues nos lares italianos. A massa nossa de cada dia, todo mundo sabe fazer. Quem pediria uma carbonara de um restaurante para receber um prato frio, duro e intragável? Carbonara eu faço em casa e deve ser consumido o mais quente possível. Em compensação, aqueles pratos desconhecidos nunca experimentados antes, têm feito sucesso durante a pandemia. Alguns amigos estão montando “o jantar ideal”, com um primeiro prato de algum restaurante que ele não conhecia, um segundo prato de carne de um outro e o sorvete da sorveteria preferida. Aquela trattoria frequentada a vida inteira, que não organizou um serviço de entrega em domicílio, ou que oferece o que qualquer italiano é capaz de fazer em casa, provavelmente não reabre mais. Por outro lado, quem se esforçou em servir os clientes habituais e a capturar outros novos, com certeza irá se empenhar para manter a clientela ampliada. Quem soube se reinventar vai se adaptar com mais facilidade. Assim como os novos clientes estarão dispostos à fidelidade.
Esse deverá ser um dos hábitos adquiridos nessa quarentena que, acredito, sobreviverão
Da minha parte posso afirmar que um novo hábito pessoal será usar ou ter sempre disponível uma máscara. Sempre. Para quem, como eu, tem um nariz de uma sensibilidade seletiva que guarda por horas um cheiro desagradável, ter uma máscara à disposição para quando tiver que usar um banheiro de estação, será uma nova regra de sobrevivência.
Amém!

Diário do fim do mundo – dia 63
— Pizza?
— Ué, cadê aquele cozinheiro empolgado?
— Tá de folga.
— Então pede você, vai.
— Ah, eu não. Já pedi da última vez.
— Não senhor. Fui eu que pedi da outra vez.
— Quando?
— Sei lá. Só sei que fui eu.
— Pede né, puxa vida!
— E se a gente comesse muçarela com salada?
— E quem vai fazer a salada?
— Você, ué!
— Eu? Mas se eu tô com preguiça até de pegar o celular...
— Num m’interessa. Faz você.
— Pão com queijo, mortadela, salame, presunto?
— Lá vem você com essas porcarias.
— Não, vai. Me dá uma folga.
— Você tá folgado demais. Precisamos comer de verdade.
— Então faz um creme de abóbora com alho porró.
— Eu? Tá maluco?
— É que o seu creme de abóbora com alho porró é muito gostoso. Eu não sei fazer essas coisas. Não como você faz.
— Sem chance. É a coisa mais simples do mundo, eu te explico como faz.
— Tô com preguiça de escutar.
— Então faz um arroz, hamburguer e verdura no vapor.
— Que parte de “eu tô com preguiça” você não entendeu?
— Num quero saber, eu tô com fome.
Ótimo! Faz alguma coisa beeeem gostosa.
— Cozinhei o dia inteiro. Faz você uma coisa gostosa, uma surpresa pra mim.
— Se eu começar a roncar agora, você considera uma surpresa?
— Vou ficar tão surpresa que vou te dar um soco no nariz.
— Pizza?
— Eles têm calzone.
— Calzone?
— Legal. Pede dois calzone pra nós.
— Então pede você, vai.
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1 comment:

Eliana said...

Eu tenho uma vizinha italiana. A mulher só faz figuração na cozinha. Sabe fazer nada. Quando traz algo pra gente, que ela fez, ou tá queimado, duro, sem gosto...Ela esculhambou com um Tiramissu. Ainda me pede as minhas receitas e as altera. Não fica bom, ela acha que a receita não é boa. Trouxe uma Pastiera...toda adulterada.
Realmente, tem dias que falta criatividade pra cozinha...por aqui, comida de restaurante não é boa e eu nem confio muito...e hoje é um daqueles dias...preguiça pura de ir pra cozinha! rs