Thursday, April 09, 2020

Diário do fim do mundo - parte 4


Dia 22
Aqui em casa tá cheio de vírus. Vírus no sofá, vírus na cama, vírus na cadeira do balcão, vírus no tapete com o Shiva e até vírus na geladeira. Aliás, principalmente na geladeira. Hoje mesmo vírus algumas latas de cerveja. Tô começando a torcer pra essa quarentena virar uma oitentena ou centena. Se o governo decidisse manter a suspensão das contas (aluguel, luz, água, gás, impostos...), além do subsídio econômico, poderia até considerar ficar em permanentena.
Tem dias que preferimos comidas leves, saladinhas, muçarela e legumes. Noutros, feijão gordo, polenta com rabada, quilos de sorvete. Com mais tempo livre, variamos bastante o cardápio. E tem os dias de preguiça, de sanduíches mirabolantes, desde que não precisemos cozinhar. Se a minha nutricionista me visse agora... Inda bem que a quarentena impede um encontro ocasional. Ah, e aproveitamos para provar outras cervejas, vinhos, uma grappa ou conhaque, ocasionalmente. Por isso é muito importante organizar bem a lista de compras.
Minha sobrinha mandou uma avalanche de links para cursos gratuitos. On line, é claro. Vou avaliar com atenção pra não ficar ocupado o dia inteiro. Afinal, preciso de tempo pra fazer nada, certo?
Me sinto cada dia mais leve, mais relaxado e tranquilo. E mais pesado (de quilos, mesmo). Pra falar a verdade, tô aqui escrevendo, enrolando e espremendo a memória. Não consigo mais lembrar porque estamos em quarentena.

Dia 23
Escova os dentes. Vai fazer a barba hoje? Qual barba? Eu nunca tive barba, lava a cara que tá bom. Barba, duas vezes por semana tá bom demais. Cadê minha meia, onde você colocou a minha meia? É o que sempre digo, não adianta procurar as coisas onde elas não estão. Precisa procurar onde elas estão. Aí você acha. Ah, táqui, em cima do cesto de roupa suja. Viu, num falei? Bora sentar no sofá e esperar o pilantra chegar. Bom dia, Shiva! Dormiu bem? Vem cá que eu te faço um carinho, vem Preto. Isso. Bom dia! Nossa, que espreguiçada gostosa! Vamos colocar o colete, a jaqueta, pegar as tuas coisas, vem, vamos passear. Peraí, deixa eu vestir você. Mas sossega, né! Como vou te vestir se tu num fica quieto? E para de bater o rabo na porta. Quer acordar o prédio todo a essa hora, é? Devagar, Shiva. Devagar. Lembra que eu já escorreguei e caí na escada, vai devagar. Também, por que diacho a senhora da limpeza vem lavar a escada às cinco e meia da manhã? Inda bem que não quebrei uma perna. Puta merda, que frio! Vamos, não se preocupe, vamos passear até que o primeiro cachorro apareça, lá pelas sete.
Vamos ver se dou sorte no site do INPS. Droga, esqueci que é só depois das quatro da tarde. Vou passar a massa no batente da porta, amanhã lixo e dou a primeira mão de fundo. Adivinha quem destruiu, pilantra safado? Ops! Ia esquecendo a tua comida e o remédio. O lixo, tenho que jogar o lixo fora. Acho que deixei o e-mail do contador aberto. Melhor fazer um café, antes. Não, comer agora, não. Bora fazer um pouco de exercício, ou mês que vem não consigo sair pela porta nem empurrado. Botei água pro Shiva? Melhor ligar o celular e controlar a meteorologia. Cadê o celular? Já sei, “para achar o que perdeu, precisa procurar onde está e não onde deveria estar”. Cadê meus óculos? Putz! Não, Preto, brincar de morder agora não. Vai pegar o brinquedo que te canso um pouco, vai.
Lavar o balcão. Antes, preciso mandar pra Bia as fotos que ela pediu. Cadê aquela dela com o Yuki, que eu tanto gosto? Quantas vezes a Emiko puxou minha orelha por não chama-lo de Yukio? Agora é tarde. Tarde mesmo, são mais de nove da noite. Vídeo chamada do Cássio. Agora sim que vai ficar tarde. Peraí, viu Shibu? Depois que eu falar com o Cássio eu te acordo e nós saímos, tá?
Puta merda, que frio! Gente, o e-mail do contador!
Vocês também têm consultado a meteorologia, como se isso fizesse alguma diferença? Eu, hein.


Dia 24
Antes que a desorganização me imobilizasse empurrando-me ao ócio, decidi montar uma lista de coisas a fazer. Passei o dia revisando meus protocolos de trabalho, medidas para recuperar o faturamento atualmente parado, alternativas de serviços que posso oferecer, o ampliamento da clientela, relação com fornecedores, solicitar a consultoria do meu contador, providenciar nova publicidade, elaborar certificados, fichas de controles dos clientes, comprar talões de notas fiscais e mais um mundo burocrático a ser atualizado.
Alternava com a lista de afazeres domésticos, aquelas pequenas tarefas adiadas para o semestre seguinte durante anos, como pequenos consertos,  ou organizar a limpeza de primavera, buscar soluções que substituam ações simples impossíveis de executar nesse período, ir láááá no porão pegar a tinta dourada pro pinguim dela, além de uma coleção atrapalhada e espalhada de lugares a serem arrumados e coisas pra fazer.
Eis que, no meio da tarde, fui abduzido por uma nova ideia para um conto. Não, não tem nada a ver com vírus ou pandemia, sosseguem. Deixei o caderno no chão do balcão, acendi um charuto, fechei os olhos e deixei que a história viajasse dentro da minha mente e da fumaça do charuto. Não só passei dois charutos vendo o ir e voltar do conto, como descobri que imaginar o trabalho futuro cansa mais que o próprio trabalho. Entrei e tomei um banho. Levei o Shiva pra passear e lembrei do caderno lá fora, no chão. Quase meia noite, eu é que não vou agora ver se o pilantra mijou em tudo. Já sei a resposta. Amanhã vai ser outro dia.

Dia 25
Não gosto de domingo. Ou, não gostava. Domingo era legal porque tinha gente na rua, sorvete e pizza, futebol e os gols da rodada. Domingo era uma merda porque tinham as mesas redondas depois dos gols da rodada, aqueles programas chatos que não terminam nunca. Acho que a mesa redonda do último domingo de futebol, dia oito de março (é verdade, teve a partida entre Sassuolo e Brescia na segunda, dia nove), ainda não terminou. Não vou conferir, mas aposto que sim.
Domingo era a noite dos desesperados que não saíram na sexta e no sábado e tentavam compensar. Barulho de escapamentos e motores, gargalhadas forçadas, camisas abertas no inverno, cervejas ou drinks ostentados e disputas de imbecilidades de machos alfa. Um horror.
Como moramos na única avenida do centro – na verdade, uma rua pouco mais larga que as demais, no centro histórico – e que é principal via da cidade, acompanhamos tudo de perto. Tem lá suas vantagens, como os cinemas a três, cinco minutos a pé, a sorveteria quase em frente, a mais antiga pizzaria da cidade ao lado da sorveteria, uma travessa a vinte metros que tem o maior fluxo de pedestres da província, teatros, restaurantes, mil bares e um comércio muito movimentado. Por outro lado, aprendemos a conviver com as sirenes das ambulâncias e da polícia. O hospital e a delegacia são na continuação da rua de casa. E, é claro, as carreatas de todas manifestações populares. Como a vitória de qualquer time ou o casamento de algum filho de alguém. Gosto do movimento, não dos excessos.
Domingo, hoje, é como segunda-feira. Que eu acho que é amanhã, mas não faz a menor diferença. Se me disserem que daqui três dias será domingo outra vez, nem vou ligar. Domingo tá fazendo falta.

Dia 26
Acordamos tarde. Eu e o Shiva, porque ela já tinha arrumado a casa toda e se preparava pra fazer o almoço. Ficamos acordados – eu, ele dormindo no sofá – até tarde, depois que levantei pra ver que barulho estranho era aquele dentro da geladeira. Voltamos pra cama sei lá que horas eram, depois da digestão.
Em tempos normais, deixamos a campainha e o interfone desligado. O Shiva faz o maior escândalo se alguém toca em casa, mas nesse período o interfone foi religado. E esquecido. Até hoje. Como não se ouve nada, olhei pela janela e vi que era o correio. Abri a porta e desci pra pegar a correspondência. Claro que o carteiro deixou na caixa de correspondência e deu o fora com a sua roupa de médico astronauta. O engraçado é que o Shiva fica excitado, querendo saber quem veio visitá-lo, se vão lhe fazer carinho, se querem ver os brinquedos dele, com quem vai trocar beijinhos. Ah, sim, era uma carta sem importância do departamento de trânsito informando que a minha habilitação caiu de 30 para 28 pontos, por uma multa do ano passado.
À tarde, enquanto fumava meu charuto com meu fiel escudeiro rosnando e latindo para algum dragão imaginário, ouvia notícias na rádio (Radio Capital, programa TG Zero, rubrica “sei um pirla”). As que mais me marcaram: uma ex-vice-ministra escocesa foi multada por burlar a quarentena enquanto passeava no campo; o cidadão foi parado na estrada por estar longe de Turim, onde mora. Alegou que tem residência em Turim, mas ser domiciliado em San Remo (praia). Seguiu para a casa de veraneio após aceitar pagar a multa de quatro mil euros; três jovens foram multados por fazerem windsurf; numa localidade de praia, multaram seis pessoas muito acima dos 60 anos em dois campers. Pior, foram obrigados a voltar pra casa; o padre rezou a missa com 20 pessoas dentro da igreja. Pecado (!) que a missa estava sendo transmitida em streaming e todos foram devidamente identificados. E multados; um grupo de jovens fez um churrasco num barco atracado no porto. A fumaça denunciou a festa à polícia; um impávido naturalista decidiu passear nas montanhas e se perdeu a 1.700 metros de altitude. Não teve outro jeito se não o de chamar o socorro alpino, com direito a hélio-ambulância e multa, além do custo do socorro; num lugarejo perdido em um canto italiano qualquer, um solitário ancião solicitou os serviços de uma senhorita, contactada em algum site. Como não faltam janelas por ali, todos estranharam o movimento e chamaram a polícia. Que multou a moça por ter desobedecido as regras da quarentena; quatro homens entediados decidiram ir jogar briscola (jogo de cartas) no bosque. Para a polícia foi impossível ignorar os gritos, palavrões e blasfêmias que ecoavam pela vizinhança.
Fique em casa. Se não pela saúde pública, pelo menos para não virar piada.

Dia 27
Um garoto de cinco anos, deixado a dormir por algumas horas num banco de uma estação na Índia, acaba entrando num trem vazio que não faz paradas por 1600 quilômetros, levando-o até Calcutá. Foi enviado à Austrália para ser adotado e lá vive por 25 anos. Com as poucas lembranças da infância, consegue, após muita persistência, localizar o lugarejo de onde saíra e encontrar sua mãe e a irmã. O irmão mais velho, infelizmente morreu na mesma noite em que ele se perdeu.
Durante os Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, um maratonista japonês tinha a certeza da medalha de ouro. Confiante, parou em uma residência para tomar um copo de suco de fruta, gentilmente oferecido pelo dono de casa. O tempo oficial da prova do corredor entrou para a história, com a incrível marca de 54 anos, 8 meses, 6 dias, 5 horas, 32 minutos e 20 segundos.
O mundo está cheio de histórias de encontros, desencontros e reencontros. Muitas dessas histórias não terminam nunca. As que terminam não têm que, necessariamente, ter um final triste. Depende de sorte, às vezes. E dependem muito do final que queremos dar a elas. Enquanto você lutar, não existirá derrota. Teremos sempre perdido algo, não será mais a história que gostaríamos que fosse, mas pode, sempre, terminar em vitória. Lute.

Dia 28
O dia amanheceu como todos os outros. Parece que sou a única pessoa do sistema solar a não controlar as redes sociais logo cedo. Não controlo mesmo. Só bem depois que saio com o Shiva, que dou comida a ele e de fazer algum movimento físico, quando ligo o fogo do café, é que vou conferir se tem algo de importante entre as milhares de mensagens de todos os tipos que recebo. E sair com o pilantra não ocorre imediatamente após de ter me trocado, escovado os dentes, olhar-me no espelho convencido que posso passar mais um dia sem fazer a barba, pensar na vida (o que tem me tomado um tempo que nem imaginava existir), não. Preciso brincar com ele antes. Ainda que eu ligue o celular pra ver a temperatura antes de sairmos, nunca controlo as mensagens nessa hora. Não é insólito que eu esqueça de vê-las até depois do almoço, quando alguém que aguardava uma resposta urgente de algo não lido, me liga.
Bem, hoje também foi o momento de rir muito com amigos no Facebook. Tem dias em que o pessoal está inspirado.
Agora, sem a participação da tecnologia que nos rodeia, o assombramento está sendo essa Lua incrível. A natureza supera sempre a invenção humana, não há nada tão espetacular quanto a vida.
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