Dia 15
Uma impressora não pode existir na
mesma casa que o Shiva. Burocracia de merda, é o terceiro modelo de autorização
para sair nas ruas sem ser multado desde que a quarentena começou. Sim, gosto
de chamar de quarentena. Não gostou? Me denuncie.
[Observo o
silêncio nas ruas, me esforço para escutar a cidade. Nada. O inverno voltou
quando pernilongos e rinites anunciavam a primavera.]
O modelo está disponível em todos os
sites. É só baixar o PDF, converter em algum lugar na rede para Word, descobrir
que, para desestimular a quebra da quarentena (olha ela aí de novo), a
conversão nunca fica boa, procurar outro site, xingar toda essa tecnoburocracia
e resolver digitar o formulário diretamente no Word.
[Por volta
das oito da manhã, no horário do almoço e no final do dia, alguns carros,
poucas bicicletas e dois ou três pedestres giram pela cidade fechada. Têm os
rostos marcados por um sofrimento geral, próprio e alheio. Alguns com as
máscaras afrouxadas feito gravatas. Outros, com ela ali, cobrindo o rosto de
pedestres e motoristas solitários, escondendo lágrimas que já não caem.]
Pego a conta de luz para aproveitar a
ida à tabacaria e fazer tudo em um só lugar. Charutos pros próximos dois anos,
imprimir a autorização, pagar a conta atrasada e respirar o ar de um passado
muito, muito longe, de três semanas atrás. Três semanas atrozes. Chave USB,
autorização velha, a conta e dinheiro.
[A neve está
caindo nos arredores. O cheiro e a umidade da neve são inesquecíveis. Oito da
noite ou duas da madrugada, a cidade é sempre a mesma, imóvel, insensível,
concreta. Não há nada, nem medo, nem nada. Só uma sensação de ausência.
Chora-se baixinho sobre a mortalha.]
Na porta da tabacaria um aviso informa que a normativa regional
determinou o fechamento. Um senhor conversa com a mulher lá dentro através das
grades. Ela fecha a porta de vidro e ele aguarda. Atrás dele, uma senhora com
máscara espera a dois metros de distância. Me entusiasmo ao descobrir que ela
está vendendo pelo vão da porta e entro na fila, dois metros mais atrás e dois
metros à frente do que acaba de chegar. O carro da polícia diminui a
velocidade, encosta e uma dupla vai descendo quando a mulher na tabacaria abre
a fresta e manda todo mundo embora. Cada um vai para um lado e a polícia vai
averiguar. Não fiquei pra ver, fui pagar a conta nos correios. Melhor voltar
pra casa, todas as tabacarias estarão fechadas.
[Apesar da
temperatura amena das últimas, o frio permanece. Não só no silêncio, na
ausência e nos olhos, mas no respiro de cada um. Equipes médicas que dormem em
quarteis fechados, improvisados para que eles não tenham que voltar pra casa e
contaminar a família. Tudo isso gela as mãos e soluços. Tudo fica imóvel.]
Aliviado por não ter tomado uma multa, ligo pra tabacaria e descubro que
estão oferecendo delivery. Por que não telefonei antes? É efeito da quarentena.
Amanhã recebo minha encomenda de charutos e cópias da autorização já
parcialmente preenchidas e isso me deixa mais tranquilo. Até que eles decidam
mudar outra vez.
Dia 16
Nós, que vivemos na era digital,
acostumados às amizades virtuais, aos serviços que nos poupam tempo ao nos
entregar a mercadoria que antes deveríamos ir buscar ou consumir. Nós, que
saímos das tvs em branco e preto (não sabia? Era assim) para a comodidade de
assistirmos o que quisermos na palma das nossas mãos, que lemos bibliotecas sem
tocar os livros, que nos comunicamos com pessoas muitos quilômetros distantes.
Nós, que inventamos e reinventamos ofícios e profissões que nos permitem trabalhar em casa, que compramos e vendemos
sem usar notas, moedas ou cheques, que somos operados sem cortes enormes, por
máquinas manobradas pelo médico em outro país, como estaremos quando essa
pandemia passar?
Quem está isolado não vê a hora de
poder voltar a tocar as pessoas de carne e osso. De sentir o cheiro da rua,
ouvir o barulho da cidade, tocar uma árvore ou, simplesmente, de continuar
cutucando o celular nalgum ônibus, metrô ou trem cheio de gente. Porque a
liberdade não é fazer, mas poder fazer. Mesmo que não faça nunca.
Estamos mudando. Nesses dias tenho
acompanhado as reações mais diferentes por causa do vírus. Montadoras de
automóveis britânicas constroem equipamentos médicos, estilistas famosos
produzem máscaras e guarda-pós descartáveis sem grife, restaurantes caros
preparando marmitas para moradores de rua, gente humilde inventando modos de
ajudar, famosos e anônimos doando dinheiro para combater o inimigo, minúsculo,
coitado, mas que está promovendo uma solidariedade gigantesca. Estamos em
guerra. O número de profissionais de saúde que sucumbiram em batalha assusta.
Os governos tomam medidas impopulares e, muitas vezes, incompreendidas. E não
poderia ser diferente, o líder de cada país precisa fazer todas as alianças
possíveis para que o número de vítimas seja o menor possível. O isolamento é a
nossa trincheira. É tudo o que nossos melhores generais médicos nos pedem. Se
sairmos e nos contaminarmos, pode não haver uma maca disponível.
Na Itália, diz-se “se passou
Napoleão, isso também passará”. E nós? Quem entre nós estará aqui? Que mundo
encontraremos e o que faremos com ele? O que tudo isso ensina a você? Vale a
pena mudar?
Dia 17
Tínhamos um amigo que morava em casa.
Éramos em quatro: Dawidson, Cecil, Allan e Bruce, meu pai nem notava os
agregados ocasionais. Luiz era mais conhecido como Pantera, magro como aquela
famosa, a rosa. Morávamos numa casa enorme em Cotia (SP), no meio do mato.
Acordo um domingo de manhã cedo e dou de cara com ele sentado numa
espreguiçadeira no pátio, fazendo nada, olhando pro ar.
— Acordado a essa hora, sócio?
— É, sócio. Acordei mais cedo pra ficar mais tempo sem fazer nada
Acordo cedo desde sempre, mesmo que vá dormir tarde. E acordo sempre bem
humorado, com alguma música na cabeça. Porque, se eu cantasse, teria deixado
uma viúva na cadeia. O Shiva, como qualquer cachorro, sempre acorda feliz,
abanando o rabo, se espreguiçando, fazendo alongamentos invejáveis e bocejando
continuamente. Conhecendo a rotina, só se levanta depois que saio do banheiro
de roupa trocada, rosto lavado, dentes escovados. É hora do primeiro passeio, o
mais longo e mais tranquilo. Nenhum outro cachorro nas ruas às cinco, cinco e
meia da manhã.
É o dono do mundo. Analisa cientificamente odores que só ele descobre,
escolhe que postes e árvores precisam ter o pipi anterior coberto pelo seu.
Fuça tudo e todos, quando cruzamos com alguém. Às vezes, me deixa em situações
embaraçantes, como quando enfiou a cara dentro da bolsa de uma das meninas que
esperavam o ônibus sentadas no chão. Ou quando ficou em pé, sobre as patas
traseiras, para cheirar o casaco de pele da senhora que o olhava indignada.
Pior é quando ele cheira a bunda de alguma pedestre desconhecida. Pois hoje eu
poderia ter sido preso. Eu acho. Eram duas da tarde, estávamos perto de casa, a
polícia tinha parado e multado um senhor – que bufava ódio – por ele estar na
rua sem necessidade. Duzentos e seis euros de multa. Como estávamos próximos e
o cidadão esperava pra ver se eu seria abordado, o casal de agentes
perguntou-me, muito educadamente, se eu morava nas imediações. Respondi que
sim, dei o documento que me pediram e aguardei enquanto o agente foi com a
viatura verificar se meu sobrenome estava na campainha (aqui é lei). Voltou, me
agradeceu e se despediram sem multa nem sermão – para aumentar a baba hidrófoba
do senhor multado. Acontece que, enquanto o colega foi verificar minha residência,
a agente que aguardava comigo, fez festinha pro Shiva, que retribuiu como
retribui sempre. Num momento em que a agente da polícia virou para observar a
viatura que voltava, o nosso querido “dono do mundo” enfiou a cara na bunda da
policial. Congelei na hora. Talvez roxo, sei lá. Apesar do susto, ela virou
rindo e disse:
— Não se preocupe, os meus também só me dão vexame.
Dia 18
Rotinas da casa
Eu: levanto cedo. Não se trata de
querer, mas de hábito.
Ela: levanta cedo quando tem que
trabalhar. Em tempos de quarentena, “me deixa dormir”.
O cão: levanta só depois que me ouve
sair do banheiro, se espreguiça, boceja duzentas vezes, abana o rabo.
Eu: suco com torradas ou pão com
queijo, presunto ou speck. Às vezes, o que sobrou da janta. Duas xicronas de
café.
Ela: café. Vez ou outra, yogurt.
O cão: ração para estômagos
delicados. Duas vezes por semana, frango ou carnes cozidas com verduras.
Eu: saio pra trabalhar lá pelas 8h30.
Ou mais cedo, em caso de necessidade de algum cliente. Restauro bancos de couro
de automóveis de revendedores, carros antigos, sofás. Estou sempre em lugares
diferentes.
Ela: vai trabalhar às 7h30, de
bicicleta. É a chef do refeitório da agência da Banca d’Italia (o banco central
italiano). Cardápio pra lá de refinado, tudo orgânico e controlado.
O cão: trabalha 24 horas por dia
tomando conta da casa. Late até pros pernilongos que atravessam a rua, coisas
que só ele ouve. Mastiga caixas de papel, computadores, chinelos esquecidos,
controles remotos... (a lista é longa). Faz pipi no balcão da cozinha (salva de
palmas, por favor).
Eu: volto pra casa entre meio dia e
14h00. Levo o cão desesperadamente feliz pra passear, arrumo a bagunça que ele
fez, limpo o que tiver que limpar (quando dá tempo) e até almoço, mas não
sempre. Volto pra rua.
Ela: teoricamente volta pra casa às
14:30, que nunca é antes das 15h00. Se lava. Troca de roupa, abre uma cerveja e
se acomoda no sofá.
O cão: mastiga alguma coisa não
comestível até ela chegar. Abana a cauda desesperadamente feliz quando ela
chega, sobe no sofá e fica aguardando-a se acomodar. Deita em cima dela e
dorme.
Eu: posso chegar às 18h00 como às
21h00. Vai depender de onde é o cliente, se o serviço é longo e do tamanho da
minha fome. Levo o cão pra passear.
Ela: já chegou, lembra? Arruma a
casa, trabalha de casa fazendo pedidos, verificando um mundo de exigências da
empresa. Dá comida pro cão.
O cão: abana a cauda desesperadamente
feliz quando chego. Pede pra sair logo.
Eu: tomo banho, faço o meu trabalho
burocrático, janto e bato papo com ela, verifico e-mails, notícias, talvez um
vinho, desligo o celular por volta das 20h30, vou dormir quando me der sono.
Ela: nem sempre janta, vai ler na
cama por volta das 21h30.
O cão: vai pra cama antes de nós. Se
ninguém vai com ele, volta depois de uns 20 minutos, de mau humor e deita no
sofá pequeno, bem longe de todos. Rosna se alguém fala com ele ou se aproxima.
Volta pra cama com o último a ir dormir. Às vezes dorme no sofá. Se for pra
cama mais cedo comigo, ameaça matá-la quando ela vai dormir e quer o lugar
dela.
Claro que a nossa rotina mudou,
estamos em quarentena. O cão está desconfiado e de saco cheio da nossa
presença.
Dia 19
“O rádio é um eletrodoméstico
sentimental.” (Anônimo)
Eu ouço muito rádio. Durante o dia,
enquanto trabalho, estou sempre com um fone auricular em uma das orelhas. No
carro, ele está sempre ligado. Mesmo em casa, não gosto de perder meus
programas favoritos. Normalmente são transmissões temáticas com algumas canções
do momento ou notícias. Já mudei muito de estação, mas como trabalho com as
mãos e estas podem estar sujas de tinta e outros produtos, costumo deixar fixo
numa mesma estação durante todo o dia. Depois de um tempo, acabo me
familiarizando com os apresentadores, cria-se uma ligação e permaneço fiel. Até
decidir trocar de rádio.
Atualmente – e há alguns anos – ouço
a Radio Capital [capital.it]. Meus programas favoritos são “Master Mixo”,
“Cactus – basta poca acqua”, “TG Zero”, “Circo Massimo” e “Le Belve”, nessa
ordem. Durante todo o dia a programação musical é bem variada, conta com
condutores de primeira linha e segue o esquema da rádio, e não dos condutores.
O que é uma pena, pois Paolo Mixo e Alex Paletta são duas enciclopédias
musicais presas na linha editorial da rádio. Outros programas da mesma rádio
que gosto muito, mas ouço pouco por causo dos horários: “Vibe”, “Whatever”,
“Capital Records”, “Extra” e “Black or White”.
Nesse período de quarentena, a rádio
é uma ótima companhia. Mais que naquele tempo que até poucos dias atrás eu
considerava como normal. A televisão pode ser boa companhia, mais envolvente,
mas é, ao mesmo tempo, mais asfixiante. Com a rádio me sinto livre, posso
continuar com a minha rotina profissional ou privada e, ao mesmo tempo, ouvir
boa música e informação, além da enorme encheção de saco que é o aumento
abrupto do volume, que a tv adora fazer.
Curioso como prefiro as rádios mais
generalistas às rádios temáticas. Sim, algumas vezes gosto de ouvir Xangai ou
Bach, por exemplo, mas só quando estou em casa, no computador. Nesse caso é
melhor o Youtube, que não tem interrupções. Aliás, tenho andado sem paciência
para ouvir notícias, considerando que os dois argumentos do momento são
desagradáveis. E pra você que está me chamando de dinossauro, confesso que vou
pedir pras minhas filhas me ensinarem como se usa esse diacho de espótifai.
Diga não ao excesso de notícias, ouça
música.
Dia 20
Ah, a primavera, essa louca. Já foi e
voltou três ou quatro vezes e, com o inverno ainda por perto, é mais fácil cair
pra cima que prever o clima do dia seguinte. A única coisa boa desse
esconde-esconde é que cada vez que os pernilongos começam a chegar, o frio
volta e os congela todos.
Os dias são ensolarados, o horário de
verão mudou o fuso com o Brasil de quatro para cinco horas, o ritmo da vida vai
criando uma rotina sem hora marcada, sem compromissos, sem pressas. Só o cão
mantém os hábitos de sempre. Ou quase. A nossa presença contínua o confunde e
conforta. Está adorando ser amassado o dia inteiro, a ter um companheiro de
brincadeiras e lutas à disposição da menor provocação, ao primeiro latido, que
não termina antes da milésima mordida. Hoje ele pegou um inseto, daqueles que
parecem miniaturas de mariposas. Não sei pra quê servem, mas não matou, nem
machucou, eu acho. O bicho caiu de costas e não conseguia se virar. Ele
cheirava, curioso. Consegui levá-lo pra fora, aliviado por não ter sido um
pernilongo. Não gosto de pernilongos (você gosta, né?), é o único animal que
não sinto remorso por matar. O único.
A vida vai ganhando uma nova
cadência, começamos a nos questionar como será o cotidiano do amanhã, que
mudanças imporemos a nós mesmos, às nossas relações com os outros e ao cuidado
com o meio ambiente para evitar que novas pandemias atinjam o que chamamos
civilização. No final das contas, tenho a impressão de que uma consciência
coletiva levará a resultados mais harmoniosos com o planeta. O que era
importante, deixou de ser.
É só uma impressão, mas sou um otimista
cheio de esperança e sem conserto.
Dia 21
Tem uns anos que a cidade decidiu
melhorar a viabilidade para a população. Piacenza nem é uma cidade grande, o
que não impedia que alguns pontos da cidade ficassem estrangulados em certos
horários. Não, nada que nem de longe lembre a 23 de Maio em Sampa às seis da
tarde. De qualquer forma, tinha semáforo demais. A prefeitura fez um concurso
para escolher um projeto que melhorasse a situação. O vencedor foi um
engenheiro recém-formado que apresentou um trabalho onde a maioria dos
semáforos fosse substituída por rotatórias. E assim foi. Quase todos os
semáforos se transformaram em rotatórias, o trânsito ficou mais fluido, palmas
para a inovação.
Tendo acompanhado as duas situações,
pude aprender alguma coisa a respeito de rotatórias. [Tá achando prolixo, né?
Pra quê pressa? Cê tá de quarentena, mesmo.] Rotatórias não podem ser pequenas
demais, devem ser construídas onde há espaço, não deve ser grudada em outra
mini rotatória, nem deve ter placas, esculturas, árvores, chafariz e outros
objetos que prejudiquem a visão de toda a rotatória. Alguém deveria ter
ensinado isso ao nosso prefeito da época. Já passou e o que podia ser
melhorado, melhorou.
Acontece que não foi possível
eliminar todos os semáforos. Aqui na rua/avenida de casa tem dois. Um deles,
com sinal sonoro para cegos e um carnaval de luzes. O Shiva prefere passar
rápido por ali, talvez pelo piii piii piii a cada vez que o semáforo muda.
Inclusive de madrugada. Ainda bem que não é muito próximo de casa e não
ouvimos.
Sou uma pessoa muito reflexiva – vivo
no mudo da lua, como prefere minha mãe – e não posso deixar de pensar o que
eles, os semáforos, acham dessa situação, perenemente na rua, trabalhando. O
que será que eles fazem quando não tem ninguém na rua? Riem das nossas
bicicletas acorrentadas nos postes, criticam nossos cabelos quando venta,
reclamam do cocô de cachorro não recolhido, leem as placas de carro, se
bronzeiam no verão ou sentem frio sob a neve, piscam para o morador de rua que
dorme nos degraus da igreja, discutem soluções para melhorar os tetos dos
carros que passam?
Nahhh! Muita coisa pra pensar. Péraí
que vou pegar outro copo de conhaque.
.
1 comment:
Olá Allan, cheguei por aqui por acaso. Resolvi ler seus relatos e confesso que achei engraçado apesar de estarmos numa situação complicada no mundo todo. Que bom que tem um companheiro fiel para ajudar a passar o tempo! Tudo de bom por aí!
Post a Comment