Thursday, April 02, 2020

Diário do fim do mundo - parte 3


Dia 15
Uma impressora não pode existir na mesma casa que o Shiva. Burocracia de merda, é o terceiro modelo de autorização para sair nas ruas sem ser multado desde que a quarentena começou. Sim, gosto de chamar de quarentena. Não gostou? Me denuncie.
[Observo o silêncio nas ruas, me esforço para escutar a cidade. Nada. O inverno voltou quando pernilongos e rinites anunciavam a primavera.]
O modelo está disponível em todos os sites. É só baixar o PDF, converter em algum lugar na rede para Word, descobrir que, para desestimular a quebra da quarentena (olha ela aí de novo), a conversão nunca fica boa, procurar outro site, xingar toda essa tecnoburocracia e resolver digitar o formulário diretamente no Word.
[Por volta das oito da manhã, no horário do almoço e no final do dia, alguns carros, poucas bicicletas e dois ou três pedestres giram pela cidade fechada. Têm os rostos marcados por um sofrimento geral, próprio e alheio. Alguns com as máscaras afrouxadas feito gravatas. Outros, com ela ali, cobrindo o rosto de pedestres e motoristas solitários, escondendo lágrimas que já não caem.]
Pego a conta de luz para aproveitar a ida à tabacaria e fazer tudo em um só lugar. Charutos pros próximos dois anos, imprimir a autorização, pagar a conta atrasada e respirar o ar de um passado muito, muito longe, de três semanas atrás. Três semanas atrozes. Chave USB, autorização velha, a conta e dinheiro.
[A neve está caindo nos arredores. O cheiro e a umidade da neve são inesquecíveis. Oito da noite ou duas da madrugada, a cidade é sempre a mesma, imóvel, insensível, concreta. Não há nada, nem medo, nem nada. Só uma sensação de ausência. Chora-se baixinho sobre a mortalha.]
Na porta da tabacaria um aviso informa que a normativa regional determinou o fechamento. Um senhor conversa com a mulher lá dentro através das grades. Ela fecha a porta de vidro e ele aguarda. Atrás dele, uma senhora com máscara espera a dois metros de distância. Me entusiasmo ao descobrir que ela está vendendo pelo vão da porta e entro na fila, dois metros mais atrás e dois metros à frente do que acaba de chegar. O carro da polícia diminui a velocidade, encosta e uma dupla vai descendo quando a mulher na tabacaria abre a fresta e manda todo mundo embora. Cada um vai para um lado e a polícia vai averiguar. Não fiquei pra ver, fui pagar a conta nos correios. Melhor voltar pra casa, todas as tabacarias estarão fechadas.
[Apesar da temperatura amena das últimas, o frio permanece. Não só no silêncio, na ausência e nos olhos, mas no respiro de cada um. Equipes médicas que dormem em quarteis fechados, improvisados para que eles não tenham que voltar pra casa e contaminar a família. Tudo isso gela as mãos e soluços. Tudo fica imóvel.]
Aliviado por não ter tomado uma multa, ligo pra tabacaria e descubro que estão oferecendo delivery. Por que não telefonei antes? É efeito da quarentena. Amanhã recebo minha encomenda de charutos e cópias da autorização já parcialmente preenchidas e isso me deixa mais tranquilo. Até que eles decidam mudar outra vez.

Dia 16
Nós, que vivemos na era digital, acostumados às amizades virtuais, aos serviços que nos poupam tempo ao nos entregar a mercadoria que antes deveríamos ir buscar ou consumir. Nós, que saímos das tvs em branco e preto (não sabia? Era assim) para a comodidade de assistirmos o que quisermos na palma das nossas mãos, que lemos bibliotecas sem tocar os livros, que nos comunicamos com pessoas muitos quilômetros distantes. Nós, que inventamos e reinventamos ofícios e profissões que nos permitem  trabalhar em casa, que compramos e vendemos sem usar notas, moedas ou cheques, que somos operados sem cortes enormes, por máquinas manobradas pelo médico em outro país, como estaremos quando essa pandemia passar?
Quem está isolado não vê a hora de poder voltar a tocar as pessoas de carne e osso. De sentir o cheiro da rua, ouvir o barulho da cidade, tocar uma árvore ou, simplesmente, de continuar cutucando o celular nalgum ônibus, metrô ou trem cheio de gente. Porque a liberdade não é fazer, mas poder fazer. Mesmo que não faça nunca.
Estamos mudando. Nesses dias tenho acompanhado as reações mais diferentes por causa do vírus. Montadoras de automóveis britânicas constroem equipamentos médicos, estilistas famosos produzem máscaras e guarda-pós descartáveis sem grife, restaurantes caros preparando marmitas para moradores de rua, gente humilde inventando modos de ajudar, famosos e anônimos doando dinheiro para combater o inimigo, minúsculo, coitado, mas que está promovendo uma solidariedade gigantesca. Estamos em guerra. O número de profissionais de saúde que sucumbiram em batalha assusta. Os governos tomam medidas impopulares e, muitas vezes, incompreendidas. E não poderia ser diferente, o líder de cada país precisa fazer todas as alianças possíveis para que o número de vítimas seja o menor possível. O isolamento é a nossa trincheira. É tudo o que nossos melhores generais médicos nos pedem. Se sairmos e nos contaminarmos, pode não haver uma maca disponível.
Na Itália, diz-se “se passou Napoleão, isso também passará”. E nós? Quem entre nós estará aqui? Que mundo encontraremos e o que faremos com ele? O que tudo isso ensina a você? Vale a pena mudar?

Dia 17

Tínhamos um amigo que morava em casa. Éramos em quatro: Dawidson, Cecil, Allan e Bruce, meu pai nem notava os agregados ocasionais. Luiz era mais conhecido como Pantera, magro como aquela famosa, a rosa. Morávamos numa casa enorme em Cotia (SP), no meio do mato. Acordo um domingo de manhã cedo e dou de cara com ele sentado numa espreguiçadeira no pátio, fazendo nada, olhando pro ar.
— Acordado a essa hora, sócio?
— É, sócio. Acordei mais cedo pra ficar mais tempo sem fazer nada

Acordo cedo desde sempre, mesmo que vá dormir tarde. E acordo sempre bem humorado, com alguma música na cabeça. Porque, se eu cantasse, teria deixado uma viúva na cadeia. O Shiva, como qualquer cachorro, sempre acorda feliz, abanando o rabo, se espreguiçando, fazendo alongamentos invejáveis e bocejando continuamente. Conhecendo a rotina, só se levanta depois que saio do banheiro de roupa trocada, rosto lavado, dentes escovados. É hora do primeiro passeio, o mais longo e mais tranquilo. Nenhum outro cachorro nas ruas às cinco, cinco e meia da manhã.

É o dono do mundo. Analisa cientificamente odores que só ele descobre, escolhe que postes e árvores precisam ter o pipi anterior coberto pelo seu. Fuça tudo e todos, quando cruzamos com alguém. Às vezes, me deixa em situações embaraçantes, como quando enfiou a cara dentro da bolsa de uma das meninas que esperavam o ônibus sentadas no chão. Ou quando ficou em pé, sobre as patas traseiras, para cheirar o casaco de pele da senhora que o olhava indignada. Pior é quando ele cheira a bunda de alguma pedestre desconhecida. Pois hoje eu poderia ter sido preso. Eu acho. Eram duas da tarde, estávamos perto de casa, a polícia tinha parado e multado um senhor – que bufava ódio – por ele estar na rua sem necessidade. Duzentos e seis euros de multa. Como estávamos próximos e o cidadão esperava pra ver se eu seria abordado, o casal de agentes perguntou-me, muito educadamente, se eu morava nas imediações. Respondi que sim, dei o documento que me pediram e aguardei enquanto o agente foi com a viatura verificar se meu sobrenome estava na campainha (aqui é lei). Voltou, me agradeceu e se despediram sem multa nem sermão – para aumentar a baba hidrófoba do senhor multado. Acontece que, enquanto o colega foi verificar minha residência, a agente que aguardava comigo, fez festinha pro Shiva, que retribuiu como retribui sempre. Num momento em que a agente da polícia virou para observar a viatura que voltava, o nosso querido “dono do mundo” enfiou a cara na bunda da policial. Congelei na hora. Talvez roxo, sei lá. Apesar do susto, ela virou rindo e disse:
— Não se preocupe, os meus também só me dão vexame.

Dia 18
Rotinas da casa
Eu: levanto cedo. Não se trata de querer, mas de hábito.
Ela: levanta cedo quando tem que trabalhar. Em tempos de quarentena, “me deixa dormir”.
O cão: levanta só depois que me ouve sair do banheiro, se espreguiça, boceja duzentas vezes, abana o rabo.
Eu: suco com torradas ou pão com queijo, presunto ou speck. Às vezes, o que sobrou da janta. Duas xicronas de café.
Ela: café. Vez ou outra, yogurt.
O cão: ração para estômagos delicados. Duas vezes por semana, frango ou carnes cozidas com verduras.
Eu: saio pra trabalhar lá pelas 8h30. Ou mais cedo, em caso de necessidade de algum cliente. Restauro bancos de couro de automóveis de revendedores, carros antigos, sofás. Estou sempre em lugares diferentes.
Ela: vai trabalhar às 7h30, de bicicleta. É a chef do refeitório da agência da Banca d’Italia (o banco central italiano). Cardápio pra lá de refinado, tudo orgânico e controlado.
O cão: trabalha 24 horas por dia tomando conta da casa. Late até pros pernilongos que atravessam a rua, coisas que só ele ouve. Mastiga caixas de papel, computadores, chinelos esquecidos, controles remotos... (a lista é longa). Faz pipi no balcão da cozinha (salva de palmas, por favor).
Eu: volto pra casa entre meio dia e 14h00. Levo o cão desesperadamente feliz pra passear, arrumo a bagunça que ele fez, limpo o que tiver que limpar (quando dá tempo) e até almoço, mas não sempre. Volto pra rua.
Ela: teoricamente volta pra casa às 14:30, que nunca é antes das 15h00. Se lava. Troca de roupa, abre uma cerveja e se acomoda no sofá.
O cão: mastiga alguma coisa não comestível até ela chegar. Abana a cauda desesperadamente feliz quando ela chega, sobe no sofá e fica aguardando-a se acomodar. Deita em cima dela e dorme.
Eu: posso chegar às 18h00 como às 21h00. Vai depender de onde é o cliente, se o serviço é longo e do tamanho da minha fome. Levo o cão pra passear.
Ela: já chegou, lembra? Arruma a casa, trabalha de casa fazendo pedidos, verificando um mundo de exigências da empresa. Dá comida pro cão.
O cão: abana a cauda desesperadamente feliz quando chego. Pede pra sair logo.
Eu: tomo banho, faço o meu trabalho burocrático, janto e bato papo com ela, verifico e-mails, notícias, talvez um vinho, desligo o celular por volta das 20h30, vou dormir quando me der sono.
Ela: nem sempre janta, vai ler na cama por volta das 21h30.
O cão: vai pra cama antes de nós. Se ninguém vai com ele, volta depois de uns 20 minutos, de mau humor e deita no sofá pequeno, bem longe de todos. Rosna se alguém fala com ele ou se aproxima. Volta pra cama com o último a ir dormir. Às vezes dorme no sofá. Se for pra cama mais cedo comigo, ameaça matá-la quando ela vai dormir e quer o lugar dela.
Claro que a nossa rotina mudou, estamos em quarentena. O cão está desconfiado e de saco cheio da nossa presença.

Dia 19
“O rádio é um eletrodoméstico sentimental.” (Anônimo)
Eu ouço muito rádio. Durante o dia, enquanto trabalho, estou sempre com um fone auricular em uma das orelhas. No carro, ele está sempre ligado. Mesmo em casa, não gosto de perder meus programas favoritos. Normalmente são transmissões temáticas com algumas canções do momento ou notícias. Já mudei muito de estação, mas como trabalho com as mãos e estas podem estar sujas de tinta e outros produtos, costumo deixar fixo numa mesma estação durante todo o dia. Depois de um tempo, acabo me familiarizando com os apresentadores, cria-se uma ligação e permaneço fiel. Até decidir trocar de rádio.
Atualmente – e há alguns anos – ouço a Radio Capital [capital.it]. Meus programas favoritos são “Master Mixo”, “Cactus – basta poca acqua”, “TG Zero”, “Circo Massimo” e “Le Belve”, nessa ordem. Durante todo o dia a programação musical é bem variada, conta com condutores de primeira linha e segue o esquema da rádio, e não dos condutores. O que é uma pena, pois Paolo Mixo e Alex Paletta são duas enciclopédias musicais presas na linha editorial da rádio. Outros programas da mesma rádio que gosto muito, mas ouço pouco por causo dos horários: “Vibe”, “Whatever”, “Capital Records”, “Extra” e “Black or White”.
Nesse período de quarentena, a rádio é uma ótima companhia. Mais que naquele tempo que até poucos dias atrás eu considerava como normal. A televisão pode ser boa companhia, mais envolvente, mas é, ao mesmo tempo, mais asfixiante. Com a rádio me sinto livre, posso continuar com a minha rotina profissional ou privada e, ao mesmo tempo, ouvir boa música e informação, além da enorme encheção de saco que é o aumento abrupto do volume, que a tv adora fazer.
Curioso como prefiro as rádios mais generalistas às rádios temáticas. Sim, algumas vezes gosto de ouvir Xangai ou Bach, por exemplo, mas só quando estou em casa, no computador. Nesse caso é melhor o Youtube, que não tem interrupções. Aliás, tenho andado sem paciência para ouvir notícias, considerando que os dois argumentos do momento são desagradáveis. E pra você que está me chamando de dinossauro, confesso que vou pedir pras minhas filhas me ensinarem como se usa esse diacho de espótifai.
Diga não ao excesso de notícias, ouça música.

Dia 20
Ah, a primavera, essa louca. Já foi e voltou três ou quatro vezes e, com o inverno ainda por perto, é mais fácil cair pra cima que prever o clima do dia seguinte. A única coisa boa desse esconde-esconde é que cada vez que os pernilongos começam a chegar, o frio volta e os congela todos.
Os dias são ensolarados, o horário de verão mudou o fuso com o Brasil de quatro para cinco horas, o ritmo da vida vai criando uma rotina sem hora marcada, sem compromissos, sem pressas. Só o cão mantém os hábitos de sempre. Ou quase. A nossa presença contínua o confunde e conforta. Está adorando ser amassado o dia inteiro, a ter um companheiro de brincadeiras e lutas à disposição da menor provocação, ao primeiro latido, que não termina antes da milésima mordida. Hoje ele pegou um inseto, daqueles que parecem miniaturas de mariposas. Não sei pra quê servem, mas não matou, nem machucou, eu acho. O bicho caiu de costas e não conseguia se virar. Ele cheirava, curioso. Consegui levá-lo pra fora, aliviado por não ter sido um pernilongo. Não gosto de pernilongos (você gosta, né?), é o único animal que não sinto remorso por matar. O único.
A vida vai ganhando uma nova cadência, começamos a nos questionar como será o cotidiano do amanhã, que mudanças imporemos a nós mesmos, às nossas relações com os outros e ao cuidado com o meio ambiente para evitar que novas pandemias atinjam o que chamamos civilização. No final das contas, tenho a impressão de que uma consciência coletiva levará a resultados mais harmoniosos com o planeta. O que era importante, deixou de ser.
É só uma impressão, mas sou um otimista cheio de esperança e sem conserto.

Dia 21
Tem uns anos que a cidade decidiu melhorar a viabilidade para a população. Piacenza nem é uma cidade grande, o que não impedia que alguns pontos da cidade ficassem estrangulados em certos horários. Não, nada que nem de longe lembre a 23 de Maio em Sampa às seis da tarde. De qualquer forma, tinha semáforo demais. A prefeitura fez um concurso para escolher um projeto que melhorasse a situação. O vencedor foi um engenheiro recém-formado que apresentou um trabalho onde a maioria dos semáforos fosse substituída por rotatórias. E assim foi. Quase todos os semáforos se transformaram em rotatórias, o trânsito ficou mais fluido, palmas para a inovação.
Tendo acompanhado as duas situações, pude aprender alguma coisa a respeito de rotatórias. [Tá achando prolixo, né? Pra quê pressa? Cê tá de quarentena, mesmo.] Rotatórias não podem ser pequenas demais, devem ser construídas onde há espaço, não deve ser grudada em outra mini rotatória, nem deve ter placas, esculturas, árvores, chafariz e outros objetos que prejudiquem a visão de toda a rotatória. Alguém deveria ter ensinado isso ao nosso prefeito da época. Já passou e o que podia ser melhorado, melhorou.
Acontece que não foi possível eliminar todos os semáforos. Aqui na rua/avenida de casa tem dois. Um deles, com sinal sonoro para cegos e um carnaval de luzes. O Shiva prefere passar rápido por ali, talvez pelo piii piii piii a cada vez que o semáforo muda. Inclusive de madrugada. Ainda bem que não é muito próximo de casa e não ouvimos.
Sou uma pessoa muito reflexiva – vivo no mudo da lua, como prefere minha mãe – e não posso deixar de pensar o que eles, os semáforos, acham dessa situação, perenemente na rua, trabalhando. O que será que eles fazem quando não tem ninguém na rua? Riem das nossas bicicletas acorrentadas nos postes, criticam nossos cabelos quando venta, reclamam do cocô de cachorro não recolhido, leem as placas de carro, se bronzeiam no verão ou sentem frio sob a neve, piscam para o morador de rua que dorme nos degraus da igreja, discutem soluções para melhorar os tetos dos carros que passam? 
Nahhh! Muita coisa pra pensar. Péraí que vou pegar outro copo de conhaque.
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1 comment:

Eliana said...

Olá Allan, cheguei por aqui por acaso. Resolvi ler seus relatos e confesso que achei engraçado apesar de estarmos numa situação complicada no mundo todo. Que bom que tem um companheiro fiel para ajudar a passar o tempo! Tudo de bom por aí!