Estive lendo a respeito do tratamento reservado à nova ocupante do Palácio do Planalto. Muita controvérsia e muitas bandeiras foram levantadas. Há quem prefira continuar usando o termo sem flexão, Presidente Dilma, com a mesma veemência de quem encontrou argumentos para adotar o termo flexionado, recém criado, Presidenta Dilma.
Uma língua é como um ser vivo, que se modifica e se adapta. Contudo, é preciso buscar a etimologia e evitar criar modismos ou expressões pouco convincentes. Mesmo assim, às vezes, basta a convicção de que uma nova expressão deve ser criada para suprir uma falta. Dos textos que andei lendo, cito apenas dois, ambos interessantes e escritos por mulheres, como a Dilma. O da
Denise Arcoverde defende o uso de presidenta, enquanto o da
Cláudia Antonini não deixa claro (mas sugere) o termo que adotou.
Decidi perguntar ao oráculo, que responde pelo nome de Aldo Pereira, jornalista, ex-editorialista e colaborador especial da Folha de São Paulo, com muitos, mas muitos anos de jornalismo sério, além de excelente redator. A resposta do Aldo à minha pergunta veio em um e-mail, que reproduzo abaixo:
“Meu caro Allan
Em minha opinião (que não vale nada), presidenta é extravagância desnecessária, mas -- que fazer? -- já acolhida em dicionários. Paciência.
Presidente deriva do latim, præsidens "[aquele ou aquela] que senta adiante, à frente"; "o/a que vigia"; "o/a que guarda". Por sua vez, præsidens é particípio presente do verbo præsideo, "presido". (Embora exista præsidere, flexão válida nos modos imperativo e infinitivo, os verbos são convencionalmente referidos, em latim, na flexão da primeira pessoa do presente do indicativo, e não, como os do português, no modo infinitivo.) Præsidens virou presidente porque, em geral, substantivos e adjetivos originários do latim entraram no português a partir da flexão do acusativo, caso correspondente ao objeto direto dos verbos transitivos. Ou seja, a rigor presidente não provém de præsidens, mas de præsidentem (forma do acusativo).
Lembro-me (um tanto vagamente, já faz aí uns 65 anos) de ter visto o "particípio presente" reconhecido numa gramática, se não me engano o Português Prático do Marques da Cruz, uma das edições da década de 1940, quando era bíblia gramatical de muitos ginasianos. Não me lembro tampouco de todos os paradigmas; apenas que, nessa gramática, ou nalguma outra da época, tenente era o particípio presente de ter, assim por diante. O particípio presente figurava ao lado do "particípio passado" (hoje meramente "particípio") e nada tinha a ver com gerúndio. (Gerúndios e gerundivos são duas outras urticárias da complicadíssima gramática do latim.) Mas os exemplos corresponderiam decerto, respectivamente, a "presidente", "presidido" e "presidindo".
Voltando ao latim, veja como seria declinado o particípio presente de præsideo (sim, particípios presentes dos verbos eram formas nominais, e, nessa condição, declinados como se fossem adjetivos da terceira declinação, com a importante diferença, note, de não ter formas de gênero distintas para o feminino e o masculino, apenas flexões correspondentes a gênero neutro, a caso e a número).
Número | Singular | Plural |
Caso\Gênero | Masc. e fem. | Neutro | Masc. e fem. | Neutro |
nominativo | præsidens | præsidens | præsidentes | præsidentia |
genitivo | præsidentis | præsidentis | præsidentium | præsidentium |
dativo | præsidenti | præsidenti | præsidentibus | præsidentibus |
acusativo | præsidentem | præsidens | præsidentes | præsidentia |
ablativo | præsidente | præsidente | præsidentibus | præsidentibus |
vocativo | præsidens | præsidens | præsidentes | præsidentia |
Quod erat demonstrandum.
Do particípio presente das quatro conjugações de verbos regulares do latim provieram muitos substantivos e adjetivos do português. De particípios presentes da primeira conjugação latina (desinência do infinitivo presente ativo, are) temos adjetivos e substantivos terminados em ante. Da segunda e da terceira conjugações (desinências respectivas: ēre, no qual o mácron do primeiro e indica sílaba longa, e com isso torna o infinitivo paroxítono, e ĕre, no qual a braquia do primeiro e indica sílaba breve, o que torna proparoxítono esse infinitivo) provêm substantivos e adjetivos terminados em ente. E da quarta conjugação, desinência ire, provêm os poucos terminados em inte. Há exceções, porque, no passar dos séculos, as linhas de evolução etimológica se entrecruzaram, especialmente a da 2ª com a da 3ª, mas até mesmo na primeira: por exemplo, apesar do sufixo ente, demente e consulente derivam de verbos da 1ª conjugação, dementare e consultare. Mesmo nos derivados da primeira conjugação, portanto, a correspondência não é perfeita.
Não conheço tentativas de diferençar os gêneros de adjetivos que descendem do venerável particípio presente latino. Que eu saiba, ninguém ainda tentou dizer que Fulana não fica *eleganta em sua roupa aliás *chocanta" etc. Entre substantivos, o neologismo especioso presidenta talvez tenha tido inspiração no vernáculo e necessário infanta. Mas não me lembro de outras analogias afora essa e, ainda, governanta, e parenta. Afora isso, a língua parece dar-se muito bem sem *gerenta, *comandanta, *almiranta etc. E, que eu saiba, ainda não há lugar para uma *centro-avanta no futebol feminino.
Veja na listinha que preparei abaixo como predominam substantivos de dois gêneros terminados em ante, ente e inte (muitos deles também adjetivos, quando o contexto determina). Nenhum deles requer flexão anta, nem enta e nem inta. Tanto faz dizer o adolescente ou a adolescente, assim por diante.
adolescente, agente, almirante, amante, ambulante, assaltante, assistente, atacante, atendente, comandante, combatente, concorrente, confidente, consulente, convalescente, correspondente, crente, crescente, delinquente, demente, dependente, descendente, diletante, dirigente, dissidente, docente, estudante, figurante, fumante, gerente, ignorante, infante, informante, manifestante, militante, mutante, nubente, ouvinte, palestrante, participante, pedinte, penitente, pretendente, regente, remanescente, remetente, repetente, representante, residente, retirante, simpatizante, sobrevivente, suplente, tenente, tripulante, viajante, vidente, vigilante, visitante, volante.
E como foi que aprendi todo esse latim? Ora, nunca aprendi, juro, mea culpa, mea culpa.
Por fim, você me perguntará se não tenho mais o que fazer de meu tempo. Tenho sim, uma lista de tarefas que, acabei de rever, está em 132 itens, e que continua espichando, enquanto o tempo disponível encolhe preocupantemente. Mas estudar ainda não saiu da lista. Nem divertir-me com gracinhas como estas. No lado sério, que toda piada tem, /.../ acredite em quem vive de escrever há umas cinco ou seis décadas: conhecer a língua ajuda, mesmo que não baste nem se esgote.
Abraço avuncular*,
A.
*(avuncular: "referente a tio ou tia"; avunculus, "irmão da mãe", era diminutivo de avus, "avô").”
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Acho um absurdo que em italiano os títulos e tratamentos sejam quase todos sem flexão e no masculino: avvocato, medico, arbitro, etc. (o meu “advogado” é uma mulher), mas confesso que não gosto do termo “presidenta”. Vou continuar usando “presidente”, a não ser num eventual e nada provável encontro com a Sra. Dilma Roussef, quando usaria “presidenta” sem nenhum problema. Respeito a vontade dela em ser tratada assim e prefiro tratar as pessoas como elas gostam. Os argumentos do Aldo, porém, me fazem sentir aliviado. Afinal, oráculo é oráculo.
:)
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