Tuesday, March 02, 2021

Diário do futuro - 9

 Diário do futuro – dia 53

Notícias provincianas (da edição de hoje do Libertà, o jornal de Piacenza e província)

— Durante o fim de semana, a polícia efetuou uma ostensiva operação de controle em todo o território. Visava não apenas a prevenção e repressão em áreas sensíveis, aumentando a segurança percebida, como verificar a obediência às medidas de contenção do vírus.

— Um jovem de 24 anos foi parado na Strada Provinciale 412, em Fiorenzuloa D’Arda, a bordo de uma Mini. Foi constatado que guiava com duas vezes a taxa de álcool e denunciado por guiar completamente beubo.

— Rodando por Piacenza como passageiro do veículo de um amigo, um cidadão de origem marroquina, sem residência fixa, foi levado à delegacia por não ter respeitado o mandato de expulsão. Foi levado à delegacia e aguarda a providência da justiça local, em audiência prevista para hoje.

— Um jovem de 18 anos foi notificado às autoridades como consumidor de drogas, após ter sido flagrado com alguns gramas de haxixe, em Trevozzo.

— Em Monticelli D’Ongina a polícia prendeu um cidadão egípcio de 23 anos por tráfico de drogas. Foi surpreendido no momento que entregava um papelote de cocaína a uma feirante de 41 anos. Após registrar o boletim de ocorrência, o jovem foi acompanhado à própria habitação, onde aguarda a audiência prevista para hoje.

— A polícia de Bettola multaram quatro pessoas que consumiam (o que tinha pra ser consumido) dentro de um bar, às 19h30 de sábado, contrariando o decreto que estabelece o funcionamento de bares e restaurantes até às 18h00. O proprietário também foi multado.

— Ainda em Bettola, mas no domingo, quando toda a região passou à zona laranja e, portanto, bares e restaurantes não podem servir comida e bebida para consumo no local, mas apenas para viagem, a polícia multou o proprietário de um restaurante e os quatro clientes que almoçavam tranquilamente. Foi expedida uma solicitação para o fechamento temporário do local.

— Ainda no domingo, nas curvas da deliciosa Strada Statale 45, às margens do Rio Trebbia, nas proximidades de Bobbio, três motociclistas foram multados. Eram de outra região e não tinham justificativa para estarem ali.

 

Todas as multas partem de 400 euros.

 

Diário do futuro – dia 54

— E aí, Allan, quanto é?

— Bom, esse aqui é 70; aqueles dois, 20 cada um e já são 150.

— ...Hã?

— Tem mais aquele, que seria 30, mas pra você são 50. E já são 240...

— Ei!

— Hoje é dia 23 do 2 de 21, que somados dá mais 65. São 380, no total.

— Péraí, que matemática...

— Ah, ia esquecendo. Tem mais a idade do Papai Noel... Qual é a idade do Papai Noel, mesmo?

Ô. Ô...! Eu perguntei o preço, não os números da loto.

— Tá caro?

— Cê num tinha me dito que era 120, tudo?

— Se você lembra, perguntou pra quê?

*

Ô Allan, brigada! Você me salvou de fazer um papelão com o cliente. Já pensou eu entregar o carro pro cliente com o banco novinho que acabamos de substituir, com um furo de chave de fenda.

— Magina, tem nada de agradecer, não. Era só um furinho...

— Furo. E num lugar tão visível. Eu teria que trocar. Quanto é?

— Tá maluca?

— Não, Allan, fala aí. Quanto eu te devo?

— Mas se você já pagou?

— Não, sério mesmo. Cê me tirou dum apuro.

— Tô falando sério, você já pagou.

— ...Quando?

— Ontem. Ou depois de amanhã, num lembro.

— Allan...

— Claro que pagou! Eu lembro como se fosse hoje. Era quarta-feira de um sábado à tarde.

— ...Hã?

— Faz o seguinte, põe na conta. Quando chegar a um euro, eu pago.

— Você me paga?

— Tchau! Da próxima vez, traz um chá ou um copo de grappa.

*

Meus clientes sofrem, mas se divertem.

 

Diário do futuro – dia 55

Pelo jeito vamos ter um hiato entre o inverno e o verão. Há uma semana eu levava o Shiva para passear na hora do almoço, com casaco de capuz, que é pra evitar congelar as orelhas. Hoje, camisa polo de manga curta.

*

Comprei gnocchi com recheio de gorgonzola e um pedaço de gorgonzola para comer com a filha. Sabe como é, molho de gorgonzola e grana combina com gnocchi de gorgonzola. A filha foi para a casa do namorado e comi o gorgonzola com pão. A filha voltou e comprei mais gorgonzola e a novela se repetiu. Hoje abri a geladeira e vi o gnocco abandonado naquele frio. Vai só com grana e manteiga, mesmo. Ponderei que o gnocco, fresco, poderia estar além do prazo de validade. Melhor não conferir. Se tudo andar bem, amanhã vou bisbilhotar a embalagem no lixo para saber se estava vencido ou não. Mas estava bom.

*

—Allan, eu queria te preguntar uma coisa, mas não sei se você vai se ofender.

— Sou hétero, não faço nada de imoral ou ilegal, sou extremista fanático da oposição de qualquer e todo governo e não tenho dinheiro para emprestar. Fala aí.

— Calma, eu só queria saber se você é argentino!

— Por quê?

— Porque eu sei que entre argentinos e brasileiros não corre bom sangue e não queria levar um soco no nariz. Você é argentino, né?

— Tira a máscara.

 

Diário do futuro – dia 56

Daí que o bode escorregou e ficou pendurado no abismo. Situação muito estranha, pois bode que é bode não escorrega nem fica pendurado em abismos. Além disso, o bode conhece bem a região, está acostumado a fugir da onça e a beber água no rio quando o jacaré não está por perto. O bode é – digamos assim – macaco velho. E sofre de vertigens; nunca se aproximou do abismo. Como aconteceu dele estar pendurado no abismo, eu não sei. Eu só sei que foi assim.

 

O sol esquenta a moleira do bicho. Olhos estalados, boca fechada, que bom cabrito não berra. No caso, bode. Mas tá lá, na beira do abismo. Ninguém sabe, ninguém viu como foi; coisa estranha mesmo. Não dá pra subir, pra baixo tá muito longe e também não dá pra ficar ali. E o bode que nem é de filosofar, quer apenas sair dali. Aguçando bem as orelhas, sente um respiro e farejar logo ali em cima. Mudo estava e mudo permaneceu.

 

Lá em baixo a água tem movimentos suspeitos. O bode estala os olhos e elimina definitivamente a alternativa de mergulhar lá de cima. Jacarés também não fazem escândalo. Nem quem ronda ali em cima. Presas e predadores são sempre silenciosos. Até a grama do bode cresce sem barulho. Um mundo mudo de armadilhas e escorregões, o importante é não dar na vista. E disso o bode sabia muito bem. Só não sabia como tinha ido parar numa situação daquelas, como iria sair e se escaparia de ser devorado. Em todo o caso, o silêncio é ouro. Matutar quieto. A torcida para ele tomar a decisão errada e deixar a pele é só o que existe. Matutar quieto.

 

A tardinha ameaça a virar noite, quando todos os gatos são pardos. Bode, onça, jacaré e a plateia espreitam o escuro para adivinhar o futuro, mas o futuro ainda nem é madrugada. Quando o Sol despontar, nem bode, onça ou jacaré estarão lá. O presente será passado e o bode – se sobreviver – não vai se gabar. Nem fazer escândalo. Só a grama vai saber se deu bode na cabeça, que nem tem no jogo do bicho, só no jogo de vida e da morte. Sem Severina, sem nada.

 

Como aconteceu de o bode estar pendurado no abismo, eu não sei. Eu só sei que foi assim.

(Domingo, 15 de junho de 2014)

 

Diário do futuro – dia 57

Às cinco da manhã a Lua estava indo embora. Inchada, cheia de luz, silenciosa, no finzinho do firmamento. Os melros, menos tímidos, anunciavam o fim da noite. Logo eles cantarão até às oito, oito e meia, mas agora só fazem barulho até o Sol clarear o céu, empurrando o escuro para longe.

 

A primavera parece ter chegado sem avisar as árvores, secas e preguiçosas. Como acontece quase sempre, o frio deve voltar. Aproveitamos a temperatura mais agradável para passear mais cedo, eu e o Shiva. O resto da cidade dorme, os caminhões de lixo passam um pouco mais tarde, um ou outro carro passa silencioso e não há mais o vento frio que congela as orelhas.

 

Ele caminha relaxado, cheirando os cheiros que só ele identifica. Talvez ele preferisse viver fora cidade, ter outros cheiros trazidos pelo vento, poder correr livre e ganhar o mundo. O fujão. O mundo, definitivamente, não estaria preparado. Ele lê meu pensamento e abana a cauda. Caminhamos.

 

Diário do futuro – dia 58

Sobre o gnocchi de outro dia, não fui controlar a data de validade no lixo. Controlei no outro pacote que ainda estava na geladeira. Mas antes, almocei gnocchi outra vez e só depois fui verificar: estava vencido a dez dias. Bem que eu achei mais saboroso que os anteriores.

*

A Sardenha é a primeira região a ser classificada como zona branca, na Itália. Isso não significa que podem se aglomerar ou abandonar as máscaras, mas que as restrições foram relaxadas, os restaurantes podem reabrir à noite e as demais atividades como cinemas, teatros, museus, serão reabertos gradualmente. A partir de segunda-feira, 1º de março, os sardos voltarão a circular mais livremente, apesar de algumas pequenas cidades da região estarem em lockdown. Tomara que sirvam de exemplo e que em breve todo o país possa gozar de mais liberdade.

 

Enquanto isso, um amigo brasileiro me manda uma mensagem dizendo: “Coronavírus é igual chifre. Você explica, mostra, avisa, mas o cara não acredita.”

 

Diário do futuro – dia 59

Quando o domingo de sol pede passeio, o Shiva responde imediatamente. Ele nos faz acreditar que passaria o dia inteiro na rua, mas chega uma hora que o que ele quer mesmo é o canto dele, a água fresca da bacia dele e carinho. Só voltamos para casa quando ele pediu arrego. Não sem antes correr atrás de lagartos, cheirar tocas, amassar muito mato e mijar dois hectolitros.

*

Nada é difícil quando tudo é fácil.

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