Sunday, February 21, 2021

Diário do futuro - 8

Diário do futuro – dia 46

Sim, eu sei. Errei de novo os dias desse diário. Consertei nesse. E vou deixar o resto como está.

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Pessoal [falso tom de entusiasmo para chamar a atenção], começou um novo governo na Itália. [Arregale os olhos como se fosse uma novidade, vai.] Draghi é o novo primeiro-ministro e juntou serpentes, raposas e gaviões num balaio de gatos que nem te conto. Se antes não tinha poltrona pra todo mundo, agora todo mundo tem poltrona. O país p r e c i s a  de um governo estável, só que o mau humor já começou. Pode demorar um pouquinho ou um poucão, é só uma questão de tempo. Vai dar merda.

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Shivinha zen só durou um dia. Domingo já estava botando fogo na praça. Adoramos a Dafne.

 

Diário do futuro – dia 47

Brasil e Itália são duas obras de arte. A Itália é “A tentação de Santo Antônio”, de Dalí, pintada por Picasso. O Brasil é o rascunho de “Guernica”, de Picasso, rabiscado por Dalí.

 

Diário do futuro – dia 48

— Duas xícaras de açúcar.

— Duas? Vou colocar quatro, eu gosto bem doce.

— Vai ficar muito doce, ninguém vai aguentar comer.

— Três, então.

— …Ai! Vai ficar muito doce.

— Eu gosto, ué! Que mais?

— Quatro ovos.

— Ovos? E o colesterol?

— Não, já passou. Agora ovo faz bem, tá na moda.

— Então coloco cinco.

— Cê tem certeza que quer eu continue falando a receita?

— Ué, e vou fazer como? Quanto de queijo?

— Queijo? Tem nenhum queijo nessa receita não.

— Como não? Toda receita tem queijo. Queijo é vida, pode colocar até em receita de sorvete que fica bom. Vai ter queijo sim.

— Desisto.

— Desiste do que? ‘Xa de besteira e vai lendo essa receita aí.

— Num é melhor fazer da sua cabeça? Cê tá bagunçando toda a receita...

— Na-na-ni-na-não! Vai lendo que eu te sigo. Olha, tenho mel no armário.

— Mel, não. Cê já colocou açúcar demais, se puser mel também vai virar um grude doce pra cacete.

Ôxe! Mel é bom, dá sustança.

— Cê vai morrer de diabetes.

— Todo mundo tem que morrer de alguma coisa. Pelo menos vou morrer doce. E com uma pitada de canela.

— Pra quê canela?

— Pra dar um gostinho, ora. Eu coloco canela e pimenta do reino em tudo.

— E se eu pedisse pra doceria entregar...

— Que isso? Confia na minha capacidade culinária não, é? Já tô com a mão na massa, daqui a pouco a gente saboreia essa “diliça”. Abre uma gelada aí pra nós.

— Abro sim, mas vou tomar cerveja não.

— Com esse calor? E vai tomar o que?

— Uma caca-cola ou um sal de frutas; o que achar primeiro.

 

Diário do futuro – dia 49

Uma menina brasileira, adotada por um casal italiano, foi acompanhada pelo pai até a estação, mediu a temperatura, que era normal e, de máscara, subiu no trem para ir à escola. Infelizmente espirrou duas vezes e uma passageira reclamou dizendo que eram os negros, como ela, a trazer o vírus para a Itália. Saiu à procura do fiscal do trem, voltou com um senhor com o uniforme que a fez descer na estação seguinte. Não era o fiscal, mas a menina teve que esperar meia hora pelo próximo trem. Chamou a família chorando. Vai terminar em pizza.

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Um em cada cinco profissional de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) italiano escolhe não ser vacinado. Além do absurdo e do fato que não existe uma lei obrigando à vacinação, os administradores sanitários não sabem se os mantém na condição de acidentes de trabalho ou se simplesmente doentes. Plantar batata ninguém quer.

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A treinadora da seleção iraniana de esqui não pode viajar para o campeonato mundial que acontece em Cortina, na Itália. Uma lei do Irã estabelece que o passaporte é fornecido pelas autoridades do país, mas a autorização para a mulher viajar tem que ser dada pelo marido e ele recusou. Não reduz o mal-estar, mas a seleção italiana sempre teve treinador homem. “País que vai, costume que encontra” (ditado italiano).

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A partir de segunda-feira as cores das regiões, que estabelecem os tipos de medidas restritivas em função do vírus, vai mudar. Algumas que estão na faixa amarela voltam à laranja. Como a Emilia-Romagna, onde vivemos. Prevejo um fim de semana de orgia. Por outro lado, a região Valle D’Aosta, bem, mas beeeeeem no Norte, deve se tornar a única a ser classificada como “zona branca”, depois de três semanas com menos 50 novos contágios para cada 100 mil habitantes. Bom para eles, os valdostanos. Nenhuma pessoa de outra região poderá entrar lá.

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Se na Itália não existe uma lei que obrigue à vacinação, o Estado do Vaticano já avisou que os funcionários que se recusarem a tomar a vacina – que foi disponibilizada para todos os habitantes e dependentes – sofrerão consequências, que podem chegar à demissão. “País que vai...”

 

Diário do futuro – dia 50

Parei num semáforo e uma abelha pousou no para-brisa do carro. Fiquei com medo de a levar para longe ou dela desgrudar quando estivesse em movimento e se esborrachar no carro de trás. Virei à direita bem devagar e estacionei sob uma das árvores existentes, imaginando ser o bairro dela. A pequena permaneceu imóvel e desliguei o carro. Acho que dormiu. Desci com o cuidado de fechar o vidro para evitar que ela acabasse entrando, piorando a situação. Também não bati a porta para não assustar a bichinha. Não havia nenhuma outra abelha visível, as árvores ainda hibernam. Bom, pelo menos aquele tipo de árvore. Uns arbustos de um verde cansado devem ocultar a colmeia. Ou ela estaria dentro do telhado das casas, ou em alguma caixa de um apicultor das imediações, sei lá. Será que elas aguentam o frio? Migram? Mas migrariam coladas nos para-brisas, congeladas pelo vento?

 

Me imagino uma abelha, com baldes de madeira cheios de pólen. Baldes enormes e pesados. Mais pesados que todo o pólen recolhido e distribuído de planta em planta. O dia inteiro pra lá e pra cá, arrastando aqueles meio barris por sabe-se lá quantas horas. Acho que eu também escolheria descansar num para-brisa. Ufa, que cansaço!

 

Diário do futuro – dia 51

Tô aqui preguiçando nesse fim de sábado em família. Eu, Eloá, Luiza e Shiva, que a Bianca não pode vir a Piacenza. Ela mora na Lombardia e é proibido ir a outra região. Tudo muito tranquilo, temperatura de onze graus, cachorro passeado e mimado, etecetera e tal. Claro que a Lu saiu. Consequentemente, ela voltou, mas voltou com um sorvete. Era isso! Botei um sapato – dois, na verdade. Um em cada pé – e desci a escada vestindo o casaco e a máscara, atravessei a rua e fui comprar sorvete pra mim. Dois grandes. Chocolate amargo com creme crocante e chocolate amargo com tangerina e gengibre. Menos de um quilo de sorvete, que a essa é melhor não exagerar. Sábado terminando, ruas desertas, a turma dormindo e eu aqui, dando boa noite a você.

 

Diário do futuro – dia 52

Em 30 de janeiro de 2020 foram registrados dois casos de Covid em Roma. Um casal de turistas chineses testou positivo, foi isolado e curado em um hospital da capital. No dia 21 de fevereiro, a notícia de um primeiro caso em Codogno [kodônho], uma cidade da província de Lodi [lódi], na região Lombardia, a 12 quilômetros de Piacenza [piatchêndza], onde moramos. No dia seguinte, mais 60 casos foram registrados nas imediações de Codogno, com duas mortes confirmadas. Em menos de 72 horas da identificação daquele que foi considerado o “paciente 1”, Codogno foi isolada pelo exército.

 

Um ano se passou. O número complexivo de contágios é 2.809.246, com 2.324.633 pacientes curados e um total de 95.718 mortes. A catástrofe só não foi pior porque a Ciência fez um trabalho excepcional, os profissionais de saúde foram muito além do normal dia a dia, com sacrifícios exasperantes e pelas medidas restritivas impostas.

 

O cansaço de quem se isolou soma-se à frustração diante de atitudes negacionistas e do pouco caso de boa parte da população. A humanidade está perdendo a melhor oportunidade de aprender a se comportar como um único organismo. Estamos pagando caro pelas consequências e a conta ainda não acabou.

 

Negar a pandemia ou encontrar um culpado não fará com que ela desapareça. Irá, isso sim, nos deixar mais longe da lição que deveríamos ter aprendido e mais frágeis para as próximas.

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