Diário do futuro – dia 39
Um fiapo de Lua suspenso na velha e escura manta da noite; o senhor que espera o entregador de jornal, fumando na porta do prédio; o caminhão do lixo esvazia os latões com barulho demais para as cinco e meia da manhã; termômetros que marcam incomuns seis graus. É primavera. Foi o que ouvi os melros cantarem no nosso passeio. Vai nevar ainda, sei disso, mas até lá, a primavera chegou.
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Acho muito curioso que o uso de motosserras seja liberado aqui. Ao contrário da limpeza de córregos e canais, que deve ser autorizada pela delegacia e acompanhada pela polícia. Quer dizer, a polícia vai, conversa com quem está limpando, volta umas vezes para verificar se vai tudo bem e passa no final. Sabe quanta gente tem esconderijo de artefatos da guerra achados?
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A formação do novo governo? Uma hora sai o resultado. Parece até eleição americana. Mas posso adiantar que o separatista e antieuropeísta Salvini já anuncia uma mudança radical. Formalizou o apoio a Draghi, topou participar da base do novo governo com aqueles que eram inimigos até anteontem e vai defender a moeda. Mais uns dias e pode acolher algum refugiado africano.
Diário do futuro – dia 40
Alguém precisa vacinar o futuro novo governo. Os inimigos estão se juntando “pela responsabilidade de todos e amor à pátria”. Vai dar merda.
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Ontem contei sobre a limpeza de córregos e canais sob vigilância policial. Esclarecendo: toda a Itália esteve envolvida na Segunda Guerra. A quantidade de armas, explosivos, projéteis, veículos e todo tipo de equipamento do evento perdidos ou escondidos no território da bota foi enorme. Vira e mexe esvaziam cidades ou bairros para recuperar alguma bomba encontrada em escavações. Já passamos um domingo fora de casa para que uma dessas bombas fosse transportada para fora da cidade e feita explodir em campo seguro. Estava a duzentos metros de casa e o exército evacuou tudo num raio de 1,5 km. Mas e quando não é uma bomba? Quantas pistolas, capacetes, munição e outros etcéteras foram escondidos? Já ouvi histórias de cavernas com jipes e tanques. Nunca fui conferir. Com o fim da guerra, algumas trincheiras viraram canais de irrigação, paióis cobriram esconderijos, entradas de cavernas foram camufladas. Tem muito material bélico entocado, não é folclore.
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Preço da gasolina.
Semana passada: € 1,41
Hoje: 1,53
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A matéria “Guerra all’Amazonia” (guerra à Amazônia), apresentada ontem pela RAI 3, foi um soco no estômago. Bem feita, mostra o percurso da carne “certificada” que entra na Europa com documentos falsos. Os grandes agricultores compram a terra dos pecuaristas, empurrando-os mais adentro da Amazônia, desmatando para criar o pasto. “Agricultor não desmata. Usa a terra que já foi desmatada.” Explica como a política de retirar recursos dos órgãos fiscalizadores para permitir o garimpo, desmatamento, comércio clandestino de madeira e outros crimes ambientais. “O presidente tá certo, toda a Amazônia deve ser terra agrícola!”. A reportagem foi dividida em partes e está à disposição no link que deixo nos comentários. É preciso estômago para assistir tudo, mas pode-se ver aos poucos, um vídeo de cada vez.
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Começo a ler um post e entendo que é sobre o BBB. Pulo. Leio o jornal e dou de cara com BBB. Pulo. De tanto ler as primeiras palavras nos posts dos amigos, sei que tem treta. Começo a cantar alto “lariiii larááá”. Aí a filha resolve visitar a gente (ela mora aqui nesses tempos, mas quem disse que para em casa? O apartamento de Londres está trancado) e ela o que faz? Assiste e comenta sobre o BBB? Errou. Ela assiste, com a mãe dela, e comenta sobre o Grande Fratello, o Big Brother italiano. Dinossauros, se vocês estão presentes nesse recinto, deem um sinal.
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Paguei hoje o seguro do Shiva.
Diário do futuro – dia 41
O uso da máscara:
– Defende de Covid, gripes, resfriados e outras doenças
– Reduz crises de rinite alérgica
– Protege do frio e da poluição
– Reduz o mal estar com mau-cheiros corporais alheios
– Não deixa engolir moscas
– Permite bocejar sem precisar colocar a mão à frente da boca para a alma não fugir
– Economiza maquiagem e barbeiro
– Ampara o olho no caso de tosse improvisa do vizinho
– Dificulta o fumo ativo e passivo
– Dá segurança para falar “Pfizer” sem cuspir nos outros
– Obriga a uma regular assepsia dental contra o mau hálito
– Facilita o ventriloquismo
– Melhora a aparência (própria e alheia)
– Salva do apuro de conversar com o chefe bafo-de-onça
– Modera o ímpeto de beliscar entre as refeições
– Livra do espetáculo de babar em público
– Impede de roer unha
– Preserva tampas de caneta
– Dificulta o feio hábito de palitar dentes pelas ruas
– Esconde palavrões mímicos
– Facilita ignorar chatos com a desculpa de não ter reconhecido
– E, como se não bastasse, ninguém vai achar estranho se você precisar pagar as contas e entrar no banco para fazer uma retirada forçada, de máscara
Vai por mim, use máscara.
Pra sempre.
Diário do futuro – dia 42
Muitas vezes esqueço que a Itália é somente um pedacinho da Europa. A neve que andou caindo por lá – na Europa – não chegou com a mesma intensidade por aqui. Deu um pouco de trabalho no centro-sul, é verdade, mas por aqui, nem sinal. E como pode, uma península tão pequena com climas tão diferentes? Claro que pode, cansei de ver. Uns meses atrás estava num cliente e observava que a estrada dividia o tempo. Do lado de cá, sol; do outro lado da estrada, chuva. E o dia 3 de março de 2016? Almoçava com a Lu no Poppie’s Fish & Chips num dia de muito sol quando começou a nevar. As duas chinesas da mesa ao lado largaram tudo e foram filmar a neve no sol. Lembrei da Lucia Malla e do Andre Seale contando que ele trabalha do lado da ilha que chove temporais assustadores, enquanto a Lucia trabalha no sol, do outro lado da ilha. Toda essa lenga-lenga para dizer que estou pressentindo neve. E o meu tornozelo falha muito pouco. Os melros terão que fazer uma breve pausa na primavera canora.
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E daí que damos sempre um jeito de sujar o mundo. Trago na memória a lembrança assustadora da periferia de Luanda, com ruas de terra e garrafas plásticas compactadas pela passagem de carros e caminhões. Mercúrio e resíduos de pneus fazem parte da carne dos peixes (você achava que as partículas dos pneus evaporavam, né?). As máscaras cirúrgicas são as fraldas descartáveis dessa pandemia. Volta, meteoro.
Diário do futuro – dia 43
Sexta-feira tem cara de festa, não é mesmo, minha cara ouvinte? Então, pode ir se preparando, bote aquela roupa legal, calçado da moda – tem sempre um calçado da moda que cabe direitinho no seu orçamento, não é mesmo? –, planejando só o início da noite e deixando o melhor por conta do acaso. Hoje é sexta-feira! E de Carnaval! Vamos fazer a festa e vestir nossas fantasias ou roupas de gala, o importante é nos sentirmos bem, não é mesmo? Aproveite que a vida é uma só! Quero ver todo mudo de máscara de dormir, pantufa e pijama, hein! Vou dormir no sofá até babar e só vou pra cama de madrugada. Aêêê, sextou!
Diário do futuro – dia 44
A melhor notícia desses últimos anos eu recebi ontem. Minha mãe foi vacinada. Vacina é uma coisa comum, ninguém festejava. A situação pandêmica e negacionista mudou tudo. Estamos comemorando felizes e vamos comemorar cada vez que alguém for vacinado. Sim, ela foi vacinada com a vaChina do Butantã, motivo a mais para celebrar.
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E hoje, depois de mais de cinco anos, Shiva reencontrou a sua mãe. Dafne e Shiva se separaram quando ele tinha um ano e meio. Em abril completa sete anos. A tutora de Dafne, com o apoio incondicional da mãe, está travando uma luta para manter Dafne viva, vítima de ataxia cerebelar, uma doença degenerativa que tira o controle dos movimentos. O tratamento está tendo bons resultados, contradizendo o parecer de veterinários. Caminha em modo descoordenado, mas lúcido. Além disso, é uma doce beijoqueira. Descobrimos que a agressividade de Shiva foi herdado dela. Ficaram muito felizes ao se reencontrarem na rua, mas quando entramos na casa dela, tornou-se ciumenta e agressiva. Ele, ao contrário, estava calmo e se sentindo em casa. Reconheceu a casa da sua infância, babou dez litros de água por todos os lados, usou a saída dos cães para ir fazer pipi no jardim e – pasme! – não deu a mínima quando Dafne me enchia de lambidas e eu a acariciava. Não ficou pasmo? Eu fiquei. Ele não admite que eu sequer cumprimente os amigos dele. Voltamos para casa e ele passou o dia mais calmo e tranquilo desde que está conosco.
Minha mãe vacinada e Shiva que revê a sua. Que semana.
Diário do futuro – dia 44
Cronologia de Carnaval
1961 – é provável que estivesse fantasiado de índio, de fraldas e com uma pena na cabeça, no Rio. A foto mais próxima que tenho é da época do Natal de 1960, sentado no colo de um Papai Noel num banco de cimento, com meus irmãos Dawidson e Cecil, que o Bruce ainda não tinha nascido.
1971 – não lembro, mas acho que estava em alguma matiné na Sede ou na churrascaria Princesa do Embu, quando o Embu da Artes ainda era simplesmente Embu.
1981 – Marquês de Sapucaí com a minha Portela. Ficamos em 3º lugar, atrás da Imperatriz e da Beija Flor, mas... E lá vou eu.
Deixa me encantar, com tudo teu, e revelar, lalaiá lá
O que vai acontecer nesta noite de esplendor
O mar subiu na linha do horizonte, desaguando como fonte
Ao vento a ilusão desceu
O mar, ô o mar, por onde andei mareou, mareou
Rolou na dança das ondas, no verso do cantador
Dança que tá na roda, roda de brincar
Prosa na boca do tempo e vem marear ( Eis o cortejo... )
Eis o cortejo irreal, com as maravilhas do mar
Fazendo o meu carnaval, é a vida a brincar
A luz raiou pra clarear a poesia
Num sentimento que desperta na folia ( Amor, amor ... )
Amor, sorria, ô ô ô, um novo dia despertou
E lá vou eu, pela imensidão do mar
Nessa onda que corta a avenida de espuma, me arrasta a sambar ( E lá vou eu... )
E lá vou eu, pela imensidão do mar
1991 – Trabalhando durante o dia e aproveitando à noite. Enquanto aguentava. Sabe lá o que é trabalhar na Brahma, durante o Carnaval, em Salvador? Tínhamos que supervisionar a distribuição dos produtos no circuito do desfile (Praça Castro Alves – Campo Grande) a partir da 5h00h, que às 10h00 fechavam tudo. Barraqueiros dormindo em pé e a concorrência disputando a unhas cada espaço; o nosso plano tinha que começar antes. Para ajudar os barraqueiros, enchíamos os freezers de cerveja. A nossa. Deixávamos uma boa quantidade da cerveja dos concorrentes por cima, nas últimas três filas e só uns 20% da nossa, trabalho divinamente executado pelos vendedores, repositores de supermercado e ajudantes de entrega. Quando os outros chegavam, ficavam felizes com o que viam e os barraqueiros podiam cochilar ali mesmo. O resto do dia coordenávamos a pesquisa de mercado no circuito, enquanto os caminhões voltavam às revendas para as entregas aos clientes de todo dia. A nossa participação, pilotada pelo capitão Mário Filho, surpreendentemente aumentava a cada ano. A diretoria vibrava e nós nos questionávamos quando o Mario não estava por perto: “Que porra acontece quando chegarmos a 100%?”
2001 – me indignava com o sotaque das “passistas” entrevistadas nos desfiles de Carnaval em Viareggio e outras cidades italianas. A maioria era sul-americana sim, mas no Brasil não se fala espanhol. Sempre achei aquelas meias grossas para proteger do frio, por baixo das plumas e paetês, de uma tristeza só. E nunca tive curiosidade em conhecer o Carnaval de Veneza.
2011 – já tinha me conformado com a pequena guerra de confete e serpentina entre princesas e caubóis, na faixa dos 5, 8 anos, no centro de Piacenza. Só lembrava da folia porque leio jornais brasileiros.
2021 – Tenho que lembrar de comprar um pacote de chiacchiere, o doce de Carnaval da região.
1 comment:
Oi, Allan!
Gostando de acompanhar o diário, passo aqui sempre que posso.
Não assisti ao especial sobre a amazônia mas irei procurar ver, já com tristeza no coração, como tudo que refere-se ao Brasil da atualidade tem provocado.
Que bom que tomaram a vacina, é uma tranquilidade a mais nesse momento de caos total em terra brasilis.
Que legal saber que também és portelense! Eu frequentei muito a quadra e a do Império serrano também, morava no RJ em um bairro praticamente vizinho a Madureira, Irajá.
Abraços :)
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