Diário do futuro – dia 60
Que segunda-feira corrida! Depois a gente não entende como não consigo arrumar tempo para tomar vergonha na cara e emagrecer.
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Pelo andar manco da carruagem (carruagem com roda quebrada manca), vou acabar tomando vacina quando sair de moda. Fizeram a maior história no fim de dezembro pela chegada da vacina e no fim vai muito devagar. Fico feliz por quem já tomou. Vou repetir para não parecer frase feita: fico feliz por quem já tomou, só acho que a Itália podia acelerar um pouco as coisas e nos vacinar também. Minha mãe tomou a primeira dose e aguarda pela segunda. Fico feliz pela minha mãe. Pelas mães que já se vacinaram e pelos filhos. Dá um alívio... Não resolve tudo, mas o peso que tira...
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“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
Diário do futuro – dia 61
O gato, para arranhar o coração, presenteia com flores.
That’s all folks!
Diário do futuro – dia 62
Uma meia é uma meia, coisa de pouca importância. Mas se não dobrar a costura da meia para baixo do dedo mindinho, o mau humor vai tomar conta do dia. Pior: no final do dia a dor vai estar matando. O problema é esquecer de dobrar a costura da meia para baixo do dedo mindinho e ficar procrastinando a reparação, botando a culpa na correria do dia, na mão de obra de desamarrar o sapato, na vergonha de tirar o sapato no local de trabalho.
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Vacina, cadê você?
Diário do futuro – dia 63
Lucio Dalla completaria anos hoje. Claro que você já ouviu alguma música dele! Algumas canções dele estão entre as minhas favoritas, no universo musical italiano, como Piazza Grande, Canzone, Caruso, Anna e Marco. Esta última, aliás, tenho certeza de ter sido influenciada pelo Verismo, um movimento literário italiano da segunda metade do século XIX. Curiosamente, a música de Dalla mais conhecida no Brasil não me agrada. Prefiro a versão de Chico Buarque, sob o título Minha História. O título original em italiano seria Bambino Gesù, mas a censura o fez modificar parte da letra e o nome. 4 Marzo 1943 é como ela foi apresentada ao público e é a data de nascimento dele. Nos deixou de presente uma obra deliciosa. Comemore ouvindo uma música dele.
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Esta manhã ouvi uma entrevista surpreendente. A jornalista Daria Bignardi conversou com o professor Giorgio Vallotigara, titular da cátedra de neurociência da Universidade de Padova. Autor de diversas publicações acadêmicas e do livro “Pensieri dela mosca com la testa storta” (Pensamentos da mosca com a cabeça torta). O prof, entre tantas experiências, mostrou a abelhas algumas gravuras de Picasso e Monet. Quando a abelha se dirigia a uma obra de Picasso, ganhava um pouco de água açucarada. Com a de Monet, não recebia nada. O treinamento deu resultado e o inseto escolhia sempre Picasso. O curioso foi quando substituíram as obras por outras duas que ainda não tinham sido mostradas à abelha e ela, mesmo assim, escolhia Picasso. O resultado foi a conclusão de que os insetos reconhecem alguns mecanismos psicológicos que normalmente só atribuímos aos humanos, como a capacidade de se reconhecer como indivíduo em si. Sinto-me tremendamente aliviado. Conscientemente não gosto de caminhar nem mesmo sobre plantas (mato, grama...), imagine fazer mal a uma vida, pernilongos à parte. Deixo o link da entrevista – em italiano – nos comentários.
https://www.capital.it/articoli/tutti-hanno-una-coscienza-anche-le-api-e-le-farfalle/
Diário do futuro – dia 64
“Metade da Itália passará à zona vermelha a partir de segunda-feira.”
Lascô!
“O ministro assinou o decreto e somente a região Campania passa a zona vermelha. Lombardia, Emilia-Romagna e demais zonas laranja permanecem como estão, mantendo os focos vermelhos inalterados. Dessa forma, permanecem em zona vermelha Bolonha, Modena...”
Ufaaa!
“Olha a chuva!
Uhhhhh!
Já passou!
Ahhhhh!”
E assim vamos vivendo. Pra falar a verdade, nem lembrava que zona é essa. Isso tá uma zona.
Tenho sempre cópias da auto certificação preenchida com os meus dados. A ponte sobre o rio Po, aqui na cidade, separa as regiões Emilia-Romagna e Lombardia. Por motivo de trabalho eu posso passar de uma região a outra, mas quem se lembra que cor é essa ou a outra?
Escolas fecham. Não, não fecham mais. Quer dizer, Milão decidiu, ontem à tarde, não abrir as escolas hoje. Assim, sem pré-aviso.
Isso tá uma zona. Só não me perguntem de que cor.
Diário do futuro – dia 65
Clima doido.
Um dia me assusto com o calor de vinte graus, dia seguinte um vento gelado corta a carne. Três anos atrás, nevava. Um ano atroz, ninguém ligava pro tempo. Tínhamos coisas piores ocupando a nossa atenção.
Por que esse vento não dá as caras no verão?
Clima doído.
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Sobre o gaveteiro dos talheres, na cozinha, existe uma cesta – às vezes tigela de aço – onde deixamos alho, cebola, batata e louro. Fui guardar o saca-rolhas na gaveta de baixo e praticamente enfiei o nariz na cesta. Certifiquei-me que a minha falta de olfato é sarcástica e seletiva quando descobri a confecção de cebolas descascadas que ela trouxe. Levei alguns segundos para descobrir de onde vinha aquele cheiro de lixo apodrecido no inferno.
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Sabadão e eu correndo pra lá e pra cá, dançando entre um cliente e outro. As ruas do centro, observei de longe, estavam lotadas. Todo mundo de máscara, sem dúvida, mas a distância entre a gente permitia beijar. Beijos trágicos.
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Se eu tivesse uma banda de rock, poderia ter esse nome: Beijos Trágicos.
Diário do futuro – dia 66
Fui membro do blog “Faça a sua parte”, lá pelos anos 53.000 a.C. Dava uma ,trabalheira danada esculpir as pedras para os posts que publicava. Não tanto pela dureza do material, mas porque tinha um monte de gente fera ao meu lado. Cientistas, jornalistas, ambientalistas sérios, que estudaram anos, se formaram, fizeram doutorado e estavam constantemente se atualizando. Postava e saía correndo. E lia tudo, absorvia o conhecimento que a turma partilhava com uma fome de conhecimento que vocês nem imaginam. Eu era o pinguim que escapava das orcas naquele iceberg de conhecimento. O Faça me deu a noção do quanto eu não sabia, do quanto precisava aprender. Foi com aquela turma que a Lua começou a ruir.
“Esse menino vive no mundo da Lua”, dizia minha mãe. “Esse cara vive no mundo da Lua”, diz ela agora. Pois a minha Lua acabou, se desfez. Fico apavorado com a quantidade de gente que acredita em conspirações (Elvis e Michael Jackson estariam vivos? De verdade que você faz parte dessa turma?), que negam a situação e que – arre! – “normalizam” a morte de milhares de pessoas. E não me refiro a quem nunca passou pela porta de uma universidade, que esses se protegem e se desculpam na ignorância. Mas aos que estudaram, que leem ou leram mais que a média, que são competentes nas áreas que atuam e que têm acesso a informação. Confesso que eu não sei a diferença entre sangue venoso e arterial. Claro que poderia agora googlar e descobrir, mas é argumento que não domino, vou parecer presunçoso falando disso (e se Noel Rosa, ex-estudante de medicina também não sabia e não tinha Google pra consultar, não chega a ser um escândalo). Quando eu não sei nada do assunto, calo a boca e aprendo.
Já não me reconheço nos meus sonhos, esqueci meus projetos, abandonei meus planos. Estou focado em sobreviver, em proteger quem me está próximo, em torcer pelos outros. Espero que essa situação acabe. Assim como espero que os pinguins reconheçam os poucos icebergs e se protejam. Somos todos pinguins. E as orcas são reais.
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