Tuesday, February 02, 2021

Diário do futuro - 5

 Diário do futuro – dia 25

25 de janeiro. Pronto, daqui a pouco é Natal.

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Hoje fiquei emocionado e morri de medo, um mixer de sensações numa mesma cena. Passeando com o Imprevisível, chegamos em frente a um dos jardins que ele gosta de entrar. O caminhão do serviço de podas estava para entrar e parou a um metro do portão fechado. O funcionário desceu e constatou que estava trancado, segurou nas grades do portão e chamou um dos operários que estão trabalhando na substituição da tubulação da galeria (aquele de onde roubaram o Klimt que reapareceu misteriosamente), que fica nos fundos do jardim. O senhor Curioso de Sá ficou em pé com as patas nas grades, quase encostado no sujeito do caminhão. Depois de uns segundos o outro percebeu e virou assustado: “ô...!” Para dizer em seguida: “mas você é muito lindo”, que o Charmoso retribuiu com uma olhada e um abano de cauda. O cidadão não se segurou e abraçou a cabeça do Doutor Estranho e repetia “você é muito lindo, você é muito lindo...” Eu gelei. O Sexto dos Inferno não gosta de ser abraçado. Dessa vez, para o meu alívio e sorte do cara, ele abanou a cauda, desceu do portão e fomos continuar o passeio.

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Vai dormir que amanhã é sempre uma surpresa.

 

Diário do futuro – dia 26

A Pfizer vai ser processada por ter atrasado a entrega de parte das vacinas. Disseram que a ampliação da linha de produção, necessária para dar conta da demanda, causou o contratempo. O que se ouve é que o valor da multa não assusta. Uma cláusula que um gigante como a farmacêutica em questão está cansado de inserir.

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É falsa a notícia de uma senhora idosa encontrou em casa um título público de 1986, que teria sido resgatado por 475 milhões de euros. Sempre me pergunto o que se ganha criando esse tipo de notícia. Não responda, por favor, é um pensamento retórico. Prefiro morrer na ignorância. Pra mim é excesso de falta do que fazer.

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Ao contrário, é verdadeira a notícia da queda do governo italiano. Bem no meio duma pandemia e colocando em risco a ajuda econômica da União Europeia. O que acontece agora? O mesmo governo pode voltar ao poder com uma aliança maior, com a mesma de antes, com os inimigos, um outro governo que exclua o primeiro-ministro demissionário, novas eleições, um governo técnico, o Presidente Mattarella ficar de saco cheio e optar por um golpe de estado, chamaremos marines, pizza de calabresa. “Tá cada vez mais down no high society”.

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Felizmente recebemos a boa notícia de mais um prêmio no AVN Awards (uma espécie de Oscar). Aliás, dois: um por melhor ator estrangeiro e outro por melhor cena a dois. É isso. Como sempre, quem mantem alta a bandeira da Itália, mais uma vez é o veterano ator Rocco Sifredi.

 

Diário do futuro – dia 27

A História registra os acontecimentos e nós a usamos como experiência. O passado passou e deixou marcas. É necessário aprender com ele, melhorar o que deu certo e evitar repetir erros. Alguns fatos não podem e não devem ser esquecidos. Precisam ser recordados e servir de advertência sobre as atitudes humanas. Foi assim naquele 27 de janeiro de 1945. É assim nesses dias de hoje.

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Fiquei sabendo, hoje, que o querido e simpático Mambo partiu na semana passada. Poucos dias após completar não 21 anos como acreditava o casal ancião que cuidava dele, mas 22, como informou o filho e antigo tutor. Mambo e Shiva eram amigos, caminhavam lado a lado, tranquilos no jardim. Menos calmo era quando passeavam juntos a caminho de casa, com o nosso Júpiter Encapetado agitado com cada motor acelerando ou o pressentimento de outro cachorro num raio de dois quilômetros. Mambo o adorava e Shiva abanava a cauda amigavelmente. O que não impedia o outro de se apavorar com as reações bruscas dele. Se houver um paraíso, deve estar cheio de pelos.

 

Diário do futuro – dia 28

Quem é que vai limpar essa porcaria quando tudo acabar? Não, camarada. Nada de tirar o corpo fora, nada de apontar o dedo. E nem pensar em dizer que o seu canto tá limpo, porque não está. Se as ruas, as praias, lojas, hospitais, escolas e o que mais for, tiver um grãozinho de pó, a responsabilidade é sua também. O Netflix não funciona sozinho. Tem ator, produtor e muito operário. O entregador tem família, não se esqueça. E a luz? Tem toda uma operação monstruosa pra levar luz, água, gás, telefone e esgoto até você. Vai arregaçando as mangas que vai ter trabalho pra chuchu. E você tá convocadíssimo. Bota a bandeira de lado que do ponto de vista do planeta não tem um “fora” (de “joga fora”, sabe). Não adianta reclamar, a limpeza vai precisar de todo mundo. Pode tratar de colocar o seu melhor sorriso e participar do mutirão. Ou você tá dentro, ou você tá dentro. E precisa ficar tudo brilhando, visse?

 

Diário do futuro – dia 29

O Grande Caçador segue à procura da sua presa. Luvas brancas e uma obstinação sem igual o caracterizam mais que outras habilidades. Nunca pegou um animal e, não obstante, não desiste (falei que é obstinado). Os gatos observam de longe, protegidos por alguma grade; os ouriços, bem, são ouriços. Ele é teimoso, não estúpido. Segue rastros como ninguém, abana a cauda quando enfia o focinho em algum buraco no muro de arbustos e me olha orgulhoso. A caça prossegue.

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Cidades menores como Piacenza e tantas outras chamadas “de província” têm característica semelhantes, difíceis de se encontrar nos grandes centros urbanos. Uma delas é o costume de algum cliente amigo entrar na oficina, funilaria/lanternagem/chapista com uma garrafa de vinho e uma focaccia para agradecer por um bom serviço, ou simplesmente para ter uma desculpa para passar o tempo batendo papo. Claro que desde que começou a pandemia essa prática diminuiu muito, mas não desapareceu. Hoje trouxe para casa um pão que ganhei de um amigo do mecânico que me pediu um orçamento. Por precaução – mais pelo medo de ser multado que por prevenção sanitária – o mecânico colocou o pão fatiado, o vinho e uns copos descartáveis sobre o móvel fora da oficina e comemos distanciados. Não que tenha movimento na frente, a oficina fica no que seria a garagem do pequeno prédio, escondida na parte de trás, num nível abaixo da rua. A precaução só se explica pelos vizinhos. Voltando ao pão, ganhei um depois de ter elogiado. Só recusei o vinho. Não bebo, ou raramente o faço, quando estou trabalhando. E a máscara me obrigaria a passar o resto do dia sentindo hálito de bêbado.

 

Diário do futuro – dia 30

Fico indignado com a incoerência de alguns profissionais de saúde que recusam a vacina. Escolheram a profissão errada, é como se o mecânico se recusasse a instalar os freios no automóvel porque acredita que carro foi feito para correr.

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Não uso amaciante para lavar as minhas roupas, uso uma quantidade muito menor de vinagre. A Eloá sucumbiu e voltou a usar amaciante nas dela, gosta do perfume. Como tenho grandes problemas com cheiros fortes e, para mim, cheiro forte pode ser até mesmo mais de duas gotas de perfume, evito até desodorante que não seja neutro. Se esse é o seu problema – cheiros fortes – vá por mim, não lave máscaras com amaciante.

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Tenho descoberto inúmeros negacionistas até então insuspeitáveis. É preciso ser muito zen, às vezes. Na Itália não existe a figura jurídica do réu primário.

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Anotado: comprar goiabada segunda-feira.

 

Diário do futuro – dia 31

29, 30 e 31 de janeiro são “i giorni dela merla” (os dias da melra), tradicionalmente os dias mais frios do inverno italiano. Cada região tem uma própria lenda e aqui diz-se que a melra era branca e foi se esconder do frio na chaminé, saindo de lá preta de fuligem. A verdade é que os dias mais frios costumam ser em fevereiro e a melra é cinza ou marrom. O macho é que é preto. O inverno também não dá a mínima para as tradições e assim esses dias até que estão mais quentes que os anteriores e as estatísticas.

 

Cada um reage aos estímulos de modo diferente, inclusive ao frio. Quem se encolhe e resmunga costuma sofrer mais com as baixas temperaturas. Aprendi a manter uma postura normal, não me cobrir excessivamente e a não reclamar. A sensação de frio depende da atitude, acredite. Você pode até pensar que eu simplesmente me acostumei com o frio. Pois saiba que eu sofro menos durante o inverno de quem nasceu e cresceu aqui. Em Londres, em dias de vento e frio, só quem usa casaco pesado são os forasteiros. Eu, no caso. Camiseta por baixo da camisa é o máximo que eles usam. Na City, và là, paletó, mas nada pesado. Humilhante é quando o frio daqui combina com a brisa que você tem que sair de casacão e cachecol e encontra um europeu balcânico sentado no bar tomando cerveja, ao ar livre e de camisa polo.

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