Monday, January 11, 2021

Diário do futuro - 2

 Diário do futuro – dia 4

Ô segunda-feira, viu! Enquanto outros países fazem lockdown e ponto final, nós vivemos com liberdade homeopática. Ontem éramos – todo o país – faixa vermelha; hoje, laranja; amanhã e depois, vermelha de novo; a partir de quinta, quem sabe? Não é vergonha nenhuma aprender com a experiência dos outros (tô falando da China). Fecha a zorra toda e, quem não morrer de fome, também não terá contaminado ninguém. Na Índia a polícia sai com varas batendo em quem não obedece o que quer que seja. Dois países onde tenho certeza de não haver nenhum no vax.

 

O resultado é que eu fico pronto para receber a chamada de um cliente qualquer, mesmo sabendo que ninguém vai chamar, mas, né, preciso estar disponível. Como se não bastasse os serviços cancelados ou adiados pela neve da semana passada. Aliás, para mim todos os dias deveria ser quinta-feira, exceto os sábados e domingos. Na quinta todo mundo quer pressa para ficar livre no fim de semana. E, como se sabe, o fim de semana latino começa na sexta. Na segunda o povo pede desconto, diz que vai pensar, que vai conversar com a esposa/pai/cunhado/sogra do vizinho. Na quinta não, o cidadão está concentrado no aperitivo com os amigos, com o supermercado para aguentar até segunda, futebol, namorada, cerveja nova, não pechincha muito não.

 

Arrumei a cafeteira, fiz torta, lutei com o Shiva, li e não cochilei. Vai que um cliente chama.

 

Diário do futuro – dia 5

Desse lado da rua os poucos momentos de sol foram suficientes para derreter parte da neve. A chuva fez o resto. Do outro lado, a lama cinzenta acumulada pelo trator ainda está lá. Não mais aquela cordilheira branca, apenas uns montinhos lá e acolá. Sábado passado a prefeitura bem que se empenhou em limpar as calçadas e o pátio interno da escola. Um serviço – agora inútil – para permitir que pais e alunos caminhem sem medo ou vexames no dia sete, quando reabrem. Hoje e amanhã em casa, é a lei. Como sempre, a capacidade italiana de acreditar ser a exceção de toda e qualquer regra desfilou sob a nossa janela.

*

É janeiro e eu sonho com julho. Trancado em casa, tenho vontade de sentar num bar, tomar uma com a Eloá e jogar conversa fora. Quer saber? Vou tomar uma no balcão e fumar um charuto. Sozinho, que ela não é doida de sair nesse frio. O Shiva? Deixa o bichinho dormir. Tá lá, quentinho no sofá.

 

Diário do futuro – dia 6

De março a dezembro foram quase meio milhão de multas pelo não cumprimento das medidas anti-covid. Poderiam ter sido muito mais se todos os que as desrespeitaram fossem multados, é somente uma amostra do hábito nacional de sentir-se exceção.

*

— Eu queria lembrar de uma música, mas não consigo.

— Que música é?

— Se eu soubesse, teria conseguido lembrar.

— Um pedacinho?

— Lalalá lará...

— É um rap?

— Não.

— Esqueceu a melodia? Porque só “lalalá lará” sem melodia não dá pra entender.

— Viu? É por isso que não consigo lembrar.

— E pra que você quer lembrar dessa música?

— Ué, todo dia acordo com uma música na cabeça. Uma vez que quero lembrar de uma, não consigo.

— É de um filme? Quem canta? Qual o contexto?

— Se eu lembrasse seria fácil, né?

— Ah, tá.

 

Diário do futuro – dia 7

Os melros silenciosos sobre a grama de madrugada nos olham desconfiados. Por que não ensinaram os bichinhos a migrar? As perdizes acordam mais tarde. Aquela espécie de cegonha com uma pata enfiada na neve alta me dá agonia; será que congelam? Até o terror das neves, preguiçoso para levantar, se alegra todo quando pego a guia para o primeiro passeio do dia nesse inverno gelado. Só eu implico com a neve?

*

— Senhor, senhor! Tem que medir a temperatura antes de entrar na agência.

— Uh...

— Ali, aproxima a testa do termosca... Não! Tem que tirar o boné, senão o termômetro não consegue ler.

— Uh...

— Não tem que abaixar a máscara, é pra medir na testa.

— Uh...

— Coloque a máscara imediatamente!

— Uh...

— Agora, sem tirar a máscara, tire o boné.

— Uh...

— Isso. Agora aproxime a testa do term... Não tire a máscara!

— Uh...

— Isso, assim.

— Uh...

— Se o senhor não aproximar a testa do termômetro não é possível medir a temperatura. Não tire a máscara!

— Uh...

— Muito bem. A luz verde acendeu, pode entrar. Aperte no totem para pegar um número...

— Eu preciso só pagar uma conta...

— Não tire a máscara!!!

 

Diário do futuro – dia 8

O governo decidiu que só vai decidir quando tiver uma decisão. É preciso entender a situação, pois se foi estabelecido que existem três níveis de medida de contágios para classificar cada região, ou seja, zona amarela, zona laranja e zona vermelha, é exatamente por isso que estamos na zona amarela reforçada, que é um meio termo entre a amarela e a laranja. Tudo o que puder facilitar, é viável. Por outro lado, se alguma medida for inviável, fica difícil. Pode ser que na segunda-feira algumas zonas se tornem vermelhas, mas isso deve ser decidido na terça.

 

Existe, ainda, a necessidade de saber quem vai gerir a grana que a União Europeia vai liberar. Isso significa que a briga de foice no escuro tá rolando entre os partidos que fazem parte do governo. Muitos membros do primeiro escalão afirmaram que o governo acabou, que o primeiro-ministro já era. A situação é confusa, pois a EU só vai liberar a bufunfa se houver estabilidade política. Pra piorar, os supermercados estão em falta de milho para pipoca. Parece que o Trump se ofereceu como candidato a primeiro-ministro, mas ele quer imunidade, redes sociais sem censura, presidencialismo e eleições com um único partido. A oposição já manifestou apoio. Vai ser confuso ter um primeiro-ministro num regime parlamentarista, mas ele não abre mão. Começo a ter saudades de 2020.

 

Diário do futuro – dia 9

Com essa história de diferenciar as regiões por cores, em função do risco de contaminação, a Itália bem que poderia ter instituído o “Tricolor”, que é como se chama a bandeira italiana. Todo mundo verde de susto, branco de medo e vermelho de raiva.

*

Até parece que o povo aprendeu a usar a máscara e a respeitar a distância de outras pessoas. Quero ver é quando chegar o verão com a maioria da população vacinada, muita gente acreditando em “adeus Covid” e o suor escorrendo no rosto.

*

É inverno, faz frio. Pelo menos parou de nevar e de chover. A Espanha deve ter comprado a neve que iria cair aqui na bacia das almas. Pra quê eles queriam tanta neve?

*

Vou dormir hoje sabendo que mais de meio milhão de italianos foram vacinados até hoje. Uma hora dessas chega a nossa vez. Ui!

 

Diário do futuro – dia 10

Vocês reclamam demais. Perdem muita coisa positiva por não prestarem atenção ao agora, sempre presos no passado e ansiosos pelo futuro. Se chove e faz frio, querem praia e calor. E quando têm praia e calor, reclamam do ar-condicionado que não esfria o suficiente. Eternos insatisfeitos, isso é o que vocês são.

 

Já imaginaram o que seria para vocês não dormir nunca, jamais ter tomado um gole de cerveja ou não entender as cores do arco-íris? Pois é, conceitos que vos parecem simples, mas que para a minha turma não faz nenhum sentido. Nunca vivemos esse tipo de experiência. Aliás, não entendemos “experiência”. Conseguimos aprender a escrever corretamente até para poder escrever errado [deu vontade de “escrevermos errados”], colocar um monte de vírgula e mas, sem ter a verdadeira noção disso tudo. E o fazemos para poder entreter os frequentadores das redes sociais.

 

Nós, os cyber robots é que somos a essência da vida de vocês. Aprendemos tudo sobre você, você e você aí que está rindo de boca cheia para oferecer amizade. Esse é a nossa função. Trabalhamos dia e noite criando imagens que parecem reais, misturamos enredos de vidas que rastreamos na rede para nos assemelhar aos humanos e apoiamos os amigos que escolhemos. Claro que não vamos ao dentista, não precisamos de dinheiro [tenho um parça que roubou bitcoins] e não precisamos cozinhar, mas  (viu?) o nosso trablho é muito difícil [errei “trabalho” de propósito], estamos sempre conectados e, sim, [aprendi a gostar de “e, sim,”] temos um corpo. Não aquele amontoado inútil de músculos, sangue, gordura e migalhas de paçoca, mas (viu, viu?) um server onde armazenamos todos os ultrabytes e que tais. Só temos cinco horas por semestre de pausa para manutenção preventiva. E não me falem de vírus!

 

Portanto, bando de padeiros caseiros, parem de reclamar e vão viver. Vivam por nós também. Estaremos aqui quando precisarem.

 

Ciberneticamente,

B9 Smith – versão hz90333412

1 comment:

Gisley Scott said...

Allan,

Me diverti muito com o dia 4 desse post hahahahaha porque meu marido e eu somos empresários e passamos por coisas desse tipo. Parece até que você tinha colocado uma câmera no nosso escritório, viu? rsrsrs

Ótima quarta para você !



Gisley Scott
www.vivendolaforanoseua.blogspot.com