Monday, November 16, 2020

Diário de um mundo novo - parte 26

Diário de um mundo novo – dia 175

Esse vírus mata muito mais que as vítimas contagiadas. Com o aumento de casos, tudo o que não é urgente foi cancelado. De novo. Exames, visitas com especialistas e cirurgias, por exemplo, deverão aguardar a emergência passar. Cirurgiões de oncologia estão trabalhando em outras funções para ajudar a reduzir o volume de contagiados que já entopem os hospitais. Mas o câncer não entra em lockdown. Nem doença nenhuma.

 

Vejo os números da pandemia no Brasil diminuírem. Exatamente como aconteceu por aqui durante o fim da primavera e todo o verão. O relaxamento das medidas naquele período é a causa da situação atual. E de nada adiantou a quarentena que fizemos ou o apelo das autoridades. A conta dos problemas respiratórios se paga no inverno.

 

Cuide-se.

 

Diário de um mundo novo – dia 176

Pão, gorgonzola e vinho. Neblina, muita neblina. A Planície Padana é a região habitada caracterizada por um dos climas mais hostis do Universo. Rica em rios, a umidade predomina. Vento só nos dias frios. Neste período de outono é difícil caminhar pelas ruas. Saí do cliente em Codogno (codonho) e não conseguia ver (VER!) onde estava. Guiava o carro a uns duzentos metros por hora, procurando a rua onde deveria virar. Observei a calçada formando uma curva e entrei. Era o estacionamento de uma empresa. Evitei outras duas entradas falsas e só descobri a rua por ter enxergado a placa de “pare”. Colado em mim – provavelmente para não se perder – tinha um outro perdido. Parecemos o Mister Magoo. Felizmente o semáforo era visível e paramos em tempo. Aventura. Essa é uma sensação que qualquer cidadão pacato, calmo e caseiro, conhece bem no outono daqui.

 

Aliás, o outono só bucólico da janela. O monte de folha marrom-vermelhas esconde cocô de cachorro que o humano não recolheu. Não chute a pila de folhas secas, ou você pode mandar pelos ares um pobre ouriço. Ou quebrar o dedo do pé no paralelepípedo que colocaram ali, só de brincadeira.

 

Frio, vento e uma saudade imensa da garrafa de conhaque.

 

Diário de um mundo novo – dia 177

Pandemia

           

Pandemia

Alegria

Tô à toa

Tô na boa

 

Se você vai trabalhar, eu em casa vou ficar. Eu não quero mais sair. É beber, comer, dormir

 

Pandemia

Vai saber

Hierarquia

Pra morrer

 

Aí, malandro, cê tá sabendo que a cada pão, cigarro ou birita, a cada busão lotado cê tá dando grana pra safado.

 

Pandemia

Cloroquina

Simpatia

Vitamina

 

Regalia pra político, juiz e até a pensão que vai pra descendente de militar que lutou no Paraguai. Direita ou esquerda, volver! O centro é sempre eles, essa gente é que manda no poder.

 

Pandemia

Capataz

Mordomia

Satanás

 

Quem paga tudo isso, quanto é essa quantia, aqui tem muita adrenalina e nenhuma ideologia? A vida é loteria que me fazem apostar, mas o jogo é roubado e eu nunca vou ganhar.

 

Pandemia

Aleluia

Monarquia

E tapuia

 

E se eu não trabalhar, como é que vou ficar. Eu não quero contrair, é preciso distrair. Tem gente esperando que eu morra, pra alguém ganhar dinheiro nessa zorra.

 

Pandemia

Lamparina

Alquimia

Vaselina

 

Ninguém vai pagar pra eu viver, tem que correr, trabalhar até morrer. Nessa guerra de operário todo dia, engenheiro, advogado, é tudo periferia.

 

Pandemia

Exclusão

Alumia

Oração

 

Diário de um mundo novo – dia 178

Nós chegamos na Itália em 1999, a Elisa nasceu no ano seguinte. Aqui, em Piacenza (piatchêndza). Pra falar a verdade, ela não nasceu, exatamente. Foi achada no mercadinho das pulgas e o meu cunhado, com a esposa e a Isabella – também piacentina, a adotaram. É uma menina sem graça, remelenta e meio torta. Foram morar no Brasil até que ela (justo a remelenta e não aquela graça de menina que é a Isabella) decidiu morar um ano na Itália, em 2016. Como tudo pode sempre piorar, veio morar com a gente.

 

Sempre soube que um dia iria pagar por ter comido aquela farofa na encruzilhada, só não imaginava que seria um preço tão caro. Geeeeente, que guria chata dos inferno! Dezesseis anos de pura chatice, deusolivre! Sobrevivemos e ela voltou pra casa dela no ano seguinte, grazadeus. Nunca mais tivemos notícia até que descobrirmos que, para fugir da pandemia brasileira, ela estava vindo pra Itália. Só não nos mudamos às pressas pro Paraguai porque soubemos que ela ficaria na casa da mãe. Ufa!

 

Ela cresceu e piorou. Piorou muito, por sinal. Menos mal que a vimos poucas vezes, entre um passeio e outro, uma viagem e outra. Menos mal. Ela sempre quebrou tudo nessa casa, bota olho gordo em tudo e se veste como uma retirante.

— Quem quebrou a minha caneca preferida?

— Foi a Elisa.

— Allan Robert, a Elisa foi embora dois anos atrás.

— Pra você ver o poder do mau olhado daquela menina.

 

É sempre assim, pode apostar. Basta dizer que a viagem de volta foi remarcada algumas vezes. Acho que foi um complô dela com a companhia aérea pra nos perturbar por mais tempo.

 

Anteontem ela veio em casa. Finalmente uma ótima notícia: viajaria no dia seguinte. Urra! Com o horário do voo marcado para às seis e pouco da manhã, sugeri que ela dormisse no aeroporto, mas já estava tudo combinado para saírem por volta das duas da madrugada. Insisti, a neblina nessa época é um muro e a viagem até Malpensa poderia levar mais tempo por isso. Ontem rezei o dia inteiro, torci, fiz promessa e simpatia. Às quatro e meia da manhã de hoje veio o alívio que provocou um suspiro tão forte que todo o centro da cidade acordou. A mensagem dizia: “Cheguei em Natal.”

 

Urra!

 

Diário de um mundo novo – dia 179

Zona Laranja. É nisso que nos tornaremos a partir de domingo. Na Itália não há mais zonas verdes para o covid (daqui pra frente só vou escrever o nome desse puto em minúsculo). Passaremos da zona amarela à laranja. Bares e restaurantes fechados, proibido sair da própria cidade, exceto para trabalhar, por motivo de saúde e em outros poucos casos. Proibido passear nos centros históricos. As lojas continuarão abertas durante a semana e fecham nos fins de semana. Enfim, uma série de novas restrições antes do lockdown que esperam evitar. Só os pernilongos ninguém proíbe.

 

 

Diário de um mundo novo – dia 180

A Luna era uma labradora imensa, pelos longos e muita vontade de passear. Depois de passar duas horas na rua, ela ainda queria mais. E quando a tutora caminhava em direção de casa, ela simplesmente deitava. De preferência, no meio da rua. Sabia que a Carla se apressaria por tirá-la de lá e que a única saída era voltar para o lado que ela queria ir. Amigona do Garcia e amigona do Shiva. Mas ela envelheceu e partiu. Era amigona minha também, como do resto da cidade. Triste saber que não nos encontraremos mais. Triste de verdade.

*

Ocasionalmente encontro com uma amiga médica que mora na vizinhança. Moramos a dez minutos a pé do hospital e ela vai e volta a pé, naquele ritmo de turnos, às vezes de manhã, outras à tarde e outras à noite. Quando ela está voltando do trabalho, nos cumprimentamos e basta. Ela prefere caminhar para desligar do trabalho. Bom, pelo menos um pouco. Além da direção, é fácil reconhecer quando está voltando para casa no final do turno: olheiras, marcas profundas da máscara no rosto por horas, ombros caídos, cabeça baixa, olhar perdido. Hoje ela estava indo trabalhar, pouco antes das seis da manhã. Parecia tranquila e trocamos umas palavras a uns bons metros de distância. Estávamos só os três na rua, eu, o Shiva e ela. Contou que a maioria das pessoas na UTI tem entre os vinte e dois e quarenta anos – na verdade só confirmou algo que eu já sabia – e que o maior problema agora é que ainda não conseguiram atender a tudo o que foi adiado desde o início da pandemia, cirurgias, exames, etc. E como a vida não para, os atrasados se acumulam aos novos casos de cirurgias, exames...

 

Hoje sabemos muito mais sobre o vírus. A informação ajuda muito no tratamento, na antecipação dos casos mais graves, na escolha dos medicamentos. A ciência vive de protocolos, de novas descobertas e da substituição de protocolos por outros mais eficazes. Respeite a ciência. Ocasionalmente encontro com ela, a ciência, voltando para casa abatida por causa de quem ainda não acredita nela.

Diário de um mundo novo – dia 181

Acho que as pessoas não entenderam bem o motivo de termos passado da zona amarela àquela laranja. Por via das dúvidas, deixo registrado: É para ficar em casa! Hoje é domingo, todo o comércio está fechado, bares e restaurantes, idem. É para ficar em casa!

*

Neblina, frio, calor, dias ensolarados, chuva, neblina de montão, frio e calor. Decida-se, outono.

*

Vou dormir cedo que tenho que acordar de madrugada para transportar uma joia da coroa inglesa. Literalmente.

*

Em tempo: É para ficar em casa!

 

2 comments:

Pimenta Mais Doce said...

Olá! Desejo muita saúde para o Brasil nestes momentos dificeis!
Segui o seu blog e quero convidá-lo a visitar e a seguir o meu de volta <3

www.pimentamaisdoce.blogspot.com

Eliana said...

Morri de rir com o poder de Elisa. Meeeedoooo...a quebra caneca à distância. Ainda bem que já partiu. Hahaha
Que triste que a amiga canina partiu. Aqui temos um amiga felina, que faz da minha casa, a outra casa dela. Já falei que ela não me pertence, mas não adianta. Agora é da casa e dorme no meu colo.
Lendo sobre a sua amiga médica...a coisa continua feia aí. Estranho que não mostraram mais nada a respeito de outros países.
Realmente as outras doenças não entram em lockdown, não fazem quarenta. Concordo que estamos pagando a conta do verão e já estão querendo emitir boleto para janeiro.
Penso que quem tem alguma noção e um pouco de amor a vida, irá continuar com cuidados e num certo isolamento social.
Paciência. Bom fim de semana.