Sunday, November 08, 2020

Diário de um mundo novo - parte 25

 

Diário de um mundo novo – dia 168

2 de novembro, Dia de Finados, não é feriado na Itália, mas o dia 1º, de Todos os Santos, sim. Claro que as homenagens aos mortos ocorrem por aqui. Talvez até mais que no Brasil. Habitualmente as pessoas começam a ir ao cemitério na semana anterior ao feriado, o que encrenca um pouco a circulação. Este ano, com a pandemia correndo solta, o movimento começou no início da segunda quinzena de outubro, o importante é não deixar passar o dia 2.

 

As carrocinhas de castanha assada perfumam as cidades nessa época, as cores das roupas ficam mais sóbrias e os humores mais azedos. Menos por causa do outono e mais pelo fim do verão. No inverno o humor melhora. Povo meteopático, não?

*

— É legal como a neblina muda a paisagem, né?

— Que paisagem?

— Toda a paisagem, oras!

— Mas se com essa neblina não consigo ver nem o outro lado da rua...?

— Ué, por isso mesmo! E quando ela começa a se dissipar...

— Só se for. Nesses dias é perigoso até andar na rua.

— Eu gosto do susto que as pessoas levam comigo.

— Pra isso não precisa da neblina.

— Blééééé!

 

Diário de um mundo novo – dia 169

A curtíssima-íssima-íssima memória do povo é a grande vilã por essa nova onda de contágios. Nada justifica a desobediência das regras que reduziram as vítimas e a propagação do vírus durante o verão. Nada. Além de tudo, imagine a carga eterna de alguém que descobre ser o responsável pelas mortes de outras pessoas. Quando acontece com um parente, então, a vida dessa pessoa acaba. Mesmo que ela viva outros cem anos. É algo que não se esquece.

 

Pois bem, tentando equilibrar pandemia e economia, as medidas mudam a cada dia, na esperança de evitar outro lockdown. A novidade da vez é o toque de recolher, das 22h00 às 5h00, partir de amanhã, em toda a Itália. Na minha humilde opinião de Covid19-expert de teclado (com atualizações constantes de memes, boatos e informações seguras de outros tantos como eu), acho que o governo poderia relaxar a abertura de bares e restaurantes até às 22h00. Pelo menos diminuiria o mau-humor dos comerciantes. Até o próximo lockdown, a esse ponto, quase inevitável.

 

Espirrou? Saúde!

 

Diário de um mundo novo – dia 170

O Exército Romano, ávido por novas conquistas e cauteloso em proteger o próprio domínio, escolheu um povoado como local ideal para montar o primeiro acampamento militar ao Norte, na margem norte do rio Po. Um local isolado e ao mesmo tempo estratégico geograficamente. O objetivo era prover a região de aparato militar para combater o terrível e imprevisível Aníbal, que vinha da Espanha para eliminar o exército romano (o doido – imagine! – chegou a atravessar os Alpes com elefantes), além, é claro, de dar apoio à expansão de seu território. Justamente por ter uma posição estratégica, a zona onde existia o povoado já fora conquistada pelos etruscos e pelos celtas, mas o povo tinhoso e o clima úmido e terrivelmente hostil, acabavam enxotando os conquistadores. O Exército Romano, ao contrário, estabeleceu-se e não saiu mais. Mais que ironia, a ata de fundação do acampamento, datada de 218 a.C., nominou-o sarcasticamente com o gentil nome de Placentia (a que dá prazer).

 

Assim como Piacenza, naquele longínquo período de mais de 2.200 anos, muitos outros povoados já existiam e sobreviveram, cresceram e viraram cidades. Às margens das novas estradas construídas pelos romanos, novos vilarejos e cidades afloraram. E é por isso que o território italiano é feito de pequenas cidades, vilarejos, borgos e muito campo entre os centros habitados. Poucas são as cidades realmente grandes. Muito vilarejos acabam despovoados e alguns sucumbem. Sabe aquelas casas grátis? Não costumam ser próximas ao mar nem vizinhas de uma Estrada com E maiúscula. A simpatia ou desconfiança dos moradores do lugar vai depender de quantas vezes a cidade foi dominada.

 

Pois foi num vilarejo perdido nas montanhas, onde a farmácia não é maior que um dos quartos da casa da farmacista, o posto de gasolina fica na estradinha que o liga a um vilarejo maior e o único mercadinho fechou por causa da pandemia, que um novo morador, em torno dos quarenta, resolveu apostar suas poucas economias para reabrir o mercadinho. Chegou com um caminhão de mudança e um outro com mercadoria, trabalhou o fim de semana inteiro arrumando tudo e foi para a nova casa, na saída da cidade. Apesar de não conhecer ninguém, estava entusiasmado. Ainda teve a ideia de colocar um cartaz na porta do armazém, informando a abertura na segunda-feira e um aviso dizendo que das 8h00 às 9h30 seria um horário reservado a idosos.

 

Na segunda-feira, quando faltavam cinco minutos para as oito, havia uma fila com todos os idosos do vilarejo. Ele estacionou o carro na pracinha e dirigiu-se à porta da loja, onde a primeira da fila era uma velinha com uma bengala. Meio sem-graça, passou na frente de todos, parou, olhou mais uma vez a fila e escutou a velinha falar:

— Não se preocupe, moço. Não vou lhe bater com a bengala, não. Nós já conhecemos essa piada, pode abrir o armazém.

 

Diário de um mundo novo – dia 171

Peraí um minutinho que vou dar uma espiada na contagem dos votos das eleições americanas.

 

Diário de um mundo novo – dia 172

Essa província que se divide em planície, vales e montanhas, tem suas diferenças culturais adaptadas à topografia. Montanhas são naturalmente menos acessíveis e quem nelas vive, desenvolve a mesma característica. Diz-se “Montanaro”, àquele que é da montanha. Chucro e mão de vaca são a associação mais comum. Claro que é tudo folclore, mas ninguém perde a oportunidade de fazer piada. O comum ao atender uma chamada de um cliente de montanha é ter que provar o vinho, a grappa e os embutidos que ele mesmo prepara. E sair de lá com uma sacola de verduras frescas.

 

Já na planície, o ambiente é dominado por agro-boys. A tecnologia ostentada e o ar de pessoa do mundo, que viaja e está sempre bem informada. Gente de sucesso. A língua afiada dos piadistas de plantão locais os chama de “garis de sucesso”.

 

Mas por que estou tentando falar de costumes de uma cultura que poucos conhecem e ninguém se interessa em conhecer? Porque estou evitando falar de toque de recolher, situação desse pedaço de Europa e a eleição americana, que já ultrapassou largamente os limites da minha paciência.

 

Nos próximos capítulos, flashes da corrida de tratores entre montanaros e agro-boys.

 

Diário de um mundo novo – dia 173

Mussolini ordenou que todas as cidades italianas deveriam ter uma rua não secundária chamada Roma. Entre os mais de oito mil e cem municípios italianos, pouco mais de sete mil têm uma rua do centro chamada “via Roma”, fazendo desse o nome mais comum aqui na Bota. Após a Segunda Guerra, para desvincular-se do fascismo, várias cidades substituíram o nome da rua por outro. Milão, por exemplo, não tem uma via Roma.

 

Os nomes de ruas, praça e cidades refletem a sociedade local. Segundo alguns historiadores a cidade de Rottofreno, aqui na província, teria um nome que alude a uma parada obrigatória de Aníbal no pequeno povoado para consertar o freio (bridão) quebrado do seu cavalo, pouco antes da batalha do Trebbia. Rotto = quebrado, freno = freio. Nomes de autoridades, características locais, acidentes geográficos, atividades, tudo pode ser argumento para batizar logradouros. Depois desse período, que nomes usaremos para batizar as novas ruas? Espero que excluam os negacionistas e malucos da história. E os políticos.

 

Rua dos Ourives, Rua do Ouvidor, Rua Santa Marta, Praça da Liberdade, Avenida Paralela (Avenida Luís Viana Filho, mas o uso popular a transformou em Paralela. Acho que o certo deveria ser Parallella), Rua das Flores, Avenida Brasil, Jardim Japão, Beco do Joga a Chave Meu Amor. Tinha um amigo que morava na Rua do Céu, no bairro da Liberdade, Cidade de Salvador.

 

Diário de um mundo novo – dia 174

Sol e frio, sete da manhã. As pequenas lascas da árvore no chão, indicam a presença do pica-pau. Ele cheira, curioso que é, mas não se interessa. Não foi como com o passarinho de outra madrugada na calçada. Caiu do ninho? Sonâmbulo? Madrugador como nós? Não, essa última descarto, estava muito lento e sonolento. Voou dois metros à frente e pousou na grade de uma porta. A altura não era segura, muito próximo do focinho dele. Desviei e torci para ele voltar a dormir. Tinha cara de madrugador, não.

 

Ziano Piacentino é sempre uma opção enologicamente aconselhada para o passeio de domingo. Distância, máscaras, álcool gel no carro, tudo dentro do protocolo. Temos que comprar vinho para ajudar os produtores, na falta de uma desculpa melhor. Com a Bianca isolada na Lombardia, Eu, a Eloá e a Luiza almoçamos em homenagem a ela. Óbvio que antes degustamos alguns vinhos numa cantina amiga. Ziano é um mundo à parte. Faz sempre sol, atmosfera amiga, risadas que ecoam. Um único caso de Covid, fruto de muita precaução. Ou talvez seja o vinho. O sobe e desce da paisagem de vales quase nos leva a esquecer que estamos na montanha. Vinhedos desnudos se recolhem para o longo repouso do inverno. Lareiras que se acendem no fim do dia, conversa pelas janelas das casas. Só voltamos para Piacenza por causa do Shiva. E trouxemos vinho. Passarinho, passaremos.

 

1 comment:

Eliana said...

Feriados religiosos aqui são praticamente inexistentes. Aliás, temos poucos feriados. Aqui quando baixa neblina...parece que o mundo acabou lá fora. Tivemos um ou dois dia de neblina fechada. Pior é quando a neblina baixa na metade do país, e na outra metade faz sol. Advinha em que parte estou? Rs
Pica pau...nunca tinha escutado na vida, até que apareceu um pra atormentar a minha vida e o meu sono, este ano. Começava pontualmente a picar às cinco da manhã. Eu desejei ter uma espingarda.
Eu adoro saber das histórias dos lugares e a Itália deve ter muitas dos seus vilarejos. Ahhh muito legal ser tão bem recebido e provar as delícias da montanha ...assim vale a pena ir até os clientes.
São nos passeios mais despojados que aproveitamos mais.