Monday, August 17, 2020

Diário de ummundo novo - parte 13

 Diário de um mundo novo – dia 85

Cachorro é um bicho rotineiro e mudanças costumam provocar estresse (escrevi certo, hein?). O nosso Café Forte, por exemplo, acorda cedo, sai pra fazer xixi, volta pra cama e espera que alguém levante. Claro que acordamos quando ele desaba como um prédio implodido sobre quem estiver dormindo. Mas ele volta a dormir. É nessa hora que levanto, bebo água e só o vejo de pé quando saio do banheiro já trocado. Depois, passeio, gotinhas, comida, brincar de morder e lutar e um cochilo no sol, no balcão dos fundos ou sob uma janela aberta, se for inverno. Se, por acaso, eu tiver ido dormir de madrugada e permanecer na cama, ele nem se mexe. Ronca e sonha livre, leve e solto. Nos finais de semana, quando a Eloá dorme até mais tarde é normal ele voltar pra cama depois do passeio e de me morder. A palavra “passear” tem um efeito adrenalínico nele. Petiscos oferecidos por pessoas na rua são ignorados sem cerimônia. No máximo, ele pega com cuidado, deposita no chão e olha agradecido a quem ofereceu. Comer que é bom... Restos de comida pelo caminho ou nos jardins tampouco o atraem.

 

Durante a quarentena ele se adaptou rapidamente à nova rotina. Claro, ter companhia o dia inteiro é o que mais gosta. Com a vida tendo quase voltado ao normal, ele acabou se mostrando mais tranquilo que antes. As artes foram reduzidas quase a zero, mas nós não damos oportunidades. Vai que.

 

Como qualquer outro animal, também vivemos de hábitos e costumes. Mudamos com o tempo, algumas manias se vão, outras novas aparecem e tem aquelas que nos acompanham para sempre. Já não sou mais ansioso. Nem lembro mais porque era sempre daquele jeito. Tanto que perguntei à Luiza, hoje “o que é ansiedade?” Ela – já ansiosa – respondeu: “Pai, por favor!” Ok, melhor deixar a onça em paz. Então, pergunto a você, o que é ansiedade?

 

Responde aí.

 

Diário de um mundo novo – dia 86

O chinês que vende de tudo do terceiro mundo não está recebendo produtos brasileiros. Quer paçoca, polvilho, suco de maracujá, farinha de mandioca? Tem não. Tô só imaginando os preços quando a pandemia permitir o abastecimento desses gêneros de primeiríssima necessidade. Essa pandemia tá muito mal desorganizada.

 

O calor tomou conta de toda a península, de Bolzano à Lampedusa. Bolzano tem uma das temperaturas mais altas no verão. A cidade é bonita e tal, fica quase na Áustria, num vale de uma região montanhosa. É como se fosse dentro de uma panela. Uma panela quase austríaca. Com o fogo aceso. Nas vezes em que fui a Bolzano me confundiam com um local. Os garçons tentavam se comunicar comigo em ladino (língua local. Língua, não dialeto), depois em alemão e só então em italiano. Come-se bem, mas não volto no verão.

 

Pronto, calor e crise de abstinência de pão de queijo.

O fim do mundo é aqui.

 

Diário de um mundo novo – dia 87

Com os primeiros casos pipocando naquele fim de fevereiro, os hospitais em torno de Codogno (a dez minutos daqui) suspenderam todos os procedimentos programados. Exames, consultas com especialistas e cirurgias marcadas foram adiadas para um dia qualquer no futuro. Com uma estrutura maior e mais equipada, o hospital de Piacenza era o destino dos casos da região mais afetada, com exceção do paciente um – que o zero não foi identificado –, transferido à cidade de Pavia, onde o hospital local é, também, a faculdade de medicina.

 

Uma lista enorme de pacientes viu a esperança de recuperar a saúde escorregar pelos dias de um calendário que descia numa pirambeira infinita. Só os casos urgentes continuaram a ser atendidos. Pois o dia incerto chegou. Com o número de casos diminuindo até atingir um nível que permite ser gerido com segurança, a organização sanitária foi adaptada, transferindo todos os casos de Covid foram transferidos para uma grande clínica privada, também ocupada pela enxurrada pandêmica. O hospital pode voltar a se ocupar do que seria a rotina e começou a chamar os pacientes impacientes pelos meses de espera. Uma ala de cirurgias programadas foi criada e organizada como numa cadeia de produção. Os pacientes fazem o pré-operatório no dia marcado, que agora inclui o tampão para o vírus, se apresentam no hospital no dia seguinte, na hora marcada, são internados e, na grande maioria dos casos, são operados no mesmo dia. No máximo, no dia seguinte. Mais de noventa por cento recebem alta no dia seguinte, liberando o leito para um novo paciente. Os casos positivos ao vírus são contactados no início do dia do teste para que permaneçam em casa, sendo monitorados por uma equipe exclusiva.

 

A primeira medida tomada no início desse caos foi o controle de quem pode ter acesso ao hospital. Esse cuidado pode virar a nova rotina. Todas as pessoas são controladas antes de ingressar no hospital. Medir a temperatura, responder a um breve questionário sobre eventuais contatos com risco de contágio e eventuais sintomas, são informações que constam no formulário que o cidadão deve assinar e preservar até a saída da estrutura. O horário de visitas foi reduzido a uma vez por dia, dividido em três horários com um intervalo de meia hora entre eles, em base ao leito ocupado para evitar que mais de uma pessoa entre no quarto. Uma única pessoa por dia; não pode um parente ficar meia hora e ceder o restante a outro parente. Tudo é desinfetado várias vezes por dia.

 

A lista de espera vem diminuindo rapidamente, somos todos parte de uma engrenagem que a emergência construiu. Porque a dor ensina a gemer. Pergunte a um paciente.

 

Diário de um mundo novo – dia 88

Este é um ano que gostaríamos de esquecer, mas que vamos recordar para sempre. Como poderíamos não lembrar? Seremos condicionados a separar a nossa história em antes e depois de 2020, condenados a chorar os nossos ausentes, à frustração pelos planos interrompidos, à vida não vivida. Como se não bastasse, viveremos nos sentindo obrigados a agradecer por termos sobrevivido, a nos contentarmos pelo privilégio de poder ter feito quarentena, por termos vencido o vírus ou por não termos sido contagiados.

 

E quem disse que eu quero me contentar? Eu quero os meus planos de volta, a liberdade dos abraços, o riso no lugar de soluços. Não quero ter que pedir desculpa por estar vivo, nem viver com um olho nas novas pandemias. A impotência paralisa uma parte importante de mim, aquela que busca caminhos e soluções.

 

O mundo sobre meus ombros tem um peso enorme, já não sinto asas para voar.

 

Diário de um mundo novo – dia 89

Ontem (sim, ontem. O dia foi longo demais, a noite foi longa demais e deixei pra escrever hoje) foi um dia cheio. E perfeito. Saímos eu e a Eloá logo de manhã para um passeio pela província. Algumas pessoas me aconselharam ir conhecer Calenzano, um vilarejo escondido entre colinas e muito mato. Dei uma olhada no mapa e descobri que era mais perto se fosse pela ValTrebbia e não pela ValNure. A SS45(Strada Statale 45) margeia o rio Trebbia e liga Piacnza a Gênova. O passeio é realmente muito bonito, assim como o vale do Trebbia. Pois o senhor Gúgou me mandava pra frente e pra traz, já lá perto. Entre idas e vindas, o sinal que se recusava a colaborar, o ar-condicionado do carro e a música de fundo das nossas risadas, perdemos duas horas para encontrar o lugarejo. Poucas casas, pouco mais que um cuspe, uma igrejinha, um monte de bicas d’água e um estacionamento com um cartaz afirmando ser o último lugar onde deixar o carro antes das cascatas. O mapa do percurso e a informação de que a primeira cascata estava fechada por causa de um deslizamento. Entramos no carro e descemos até o agriturismo por uma estrada de pedras escaldantes sob o sol prepotente. Usamos o estacionamento da estrutura e fomos nos informar sobre as cascatas. “Mais uns vinte minutos, meia hora a pé, que carro não passa”, disse o garçom. Uma rápida troca de olhar e pedimos uma mesa. Vinho da região, taboa de embutidos piacentinos (Salame Piacentino DOP, Pancetta Piacentina DOP e Coppa Piacentina DOP, que considero superior à prima mais famosa, aquela de Parma – por questões técnicas de produção e não por bairrismo), pão caseiro, verduras grelhadas e uma conta que nos assustou de tão baixa.

 

Descartada a caminhada com o sol raivoso no cocuruto, subimos o longo caminho com o ar-condicionado desafiando o Polo Norte. Estávamos a mais de setecentos metros acima do nível do mar, agradecendo ao fato dela não estar trabalhando e podermos sair da cidade. Atravessamos quilômetros de estradinhas mais estreitas que o carro até chegar na ValNure. O Nure é um riacho quase exclusivo da província, à exceção de mil e duzentos metros, já perto da foz, entre Caorso, na província de Piacenza e Caselle Landi, na província de Lodi. Nessa época do ano tem pouca ou nenhuma água, mas lá no alto, na cidade de Farini, construíram um pequeno dique para criar uma praia artificial. Trocamos uma cascata por uma praia de água gelada, ideal para ficar imerso num dia de calor.

 

O dia terminou em casa, com as três (Eloá, Luiza e Elisa, a sobrinha que fugiu da pandemia no Brasil) cantando com a tv (?) enquanto eu me entrincheirei no quarto para uma longa conversa com um amigo no Brasil. Mas a noite estava só no início e ninguém fica em casa na véspera de Ferragosto.

 

Diário de um mundo novo – dia 90

Sábado,15 de agosto. Felizmente chegou o feriado mais esperado pelos italianos. Todo mundo sai de casa para festejar o Ferragsto. Praias, cidades de montanha, a casinha na roça, um rio ou lago, as piscinas públicas, áreas de pic-nic, campings, restaurantes, clubes e estradas. Tudo completamente lotado.

 

Felizmente, escrevi. Como o Ferragosto é um divisor de águas – como o Carnaval no Brasil – tudo recomeça na semana seguinte. Com a vida voltando ao (quase) normal, a prevenção tornará a orientar o comportamento de quem “esqueceu” do vírus durante as férias. Os números devem aumentar, antes de cair novamente. Com tanta aglomeração a quantidade de novos portadores deve provocar uma maior circulação do vírus, algumas medidas restritivas voltarão ao cotidiano e a situação volta ao controle. Espero.

 

Claro que aproveitamos ontem para ficar em casa hoje. Temos a próxima semana toda para outros passeios sem o risco de encontrar uma multidão. É difícil não viajar, não aproveitar, mas preferimos permanecer vivos e deixar para os próximos verões. Espero (tô sempre esperando, notou?).

 

Diário de um mundo novo – dia 91

16 de agosto, na Itália, é o dia mundial da preguiça. Se cai num domingo, então...

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