Monday, August 10, 2020

Diário de um mundo novo - parte 12


Diário de um mundo novo – dia 78
Lá se vão mais de dez anos que a comida japonesa tornou-se moda por aqui. As cidades sempre abrigaram restaurantes chineses, mas japoneses só mesmo nas grandes cidades. A conclusão é tão óbvia e esperada que você já intuiu que a maioria dos chineses, com o nascer do Sol, desabrocharam japoneses. E nesse ponto reconheço a agilidade comercial deles. Acontece que comida japonesa não é exatamente fácil para um não nativo. Até dá para acertar num ou noutro prato, mas a questão da endoculturação acaba fazendo-se notar. Aqui na cidade há um restaurante de comida japonesa que, mesmo sendo parte de um franchising, tem uma cozinha razoável. Dá pra matar a vontade de comida nipônica sem remorsos, com a curiosidade de que o sushiman era (ainda é?) um brasileiro. Por outro lado, qualquer infantil esperança de encontrar comida japonesa minimamente decente nos antigos restaurantes chineses, deixará espaço a um doloroso arrependimento.
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Desde o início da pandemia tem um personagem que ainda não consegui compreender. É aquela pessoa que, sozinha dentro de um automóvel, guia com uma máscara cirúrgica. Veja bem, não chega a ser uma crítica e nem mesmo um julgamento, é mais uma curiosidade. A minha empatia me obriga a acreditar tratar-se de alguém inteligente sem uma máscara de reserva. Tocar a máscara, tirar e recolocar ou manusear de qualquer jeito é a certeza de se contaminar com o possível vírus depositado nela, o que explicaria o uso mesmo dentro do carro, sozinho. Contudo, o meu conhecimento da raça humana me obriga a refletir sobre a consciência primorosa de tantos motoristas. Ocasionalmente, com picardia.

Diário de um mundo novo – dia 79
Querido diário, ontem choveu pra cacete, hoje amanheceu chovendo, parou, choveu pra dedéu, fez sol e o dia passou de agradável a insuportável. Às quatro da tarde eu suava terrivelmente, amaldiçoando o clima e a umidade. Sim, o clima E a umidade, não me amola. Detesto ser picado por pernilongo. Mesmo assim, fui picado várias vezes. Nessas horas ninguém me defende. Pode imaginar a minha irritação, né? Pode? Imagina? Por que você nunca responde? Nem me defende ou corrige meus erros. Você é um chato, viu? Vou acabar ficando de mal.

Sabe lá o que é ter que ficar trocando máscara nos clientes? Eu tenho que sair, tirar a máscara ensopada e colocar outra limpa. Isso acaba me atrasando pela quantidade de vezes que a cena se repete. Hoje o trabalho foi duro. Tive que salvar o banco de um carro de dezessete anos que o cara nunca limpou. Sabe o que significa? Que passei a manhã inteira limpando e desengordurando aquele nojo. E o cheiro, então? Só não era pior que o cheiro do proprietário. Caramba, que problema as pessoas têm com o chuveiro? Sabonete, shampoo, escovinha, bucha e água? Quê que custa? Se fosse um mendigo não me incomodaria, mas ele tem uma fábrica de tintas, três carros, diversas motos, duas filhas e uma esposa. E o banheiro da fábrica era imundamente vomitável. Vai se lascar! Mas toma uma ducha antes.
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O Shivinha tá bem, um docinho amoroso. Ele adora ganhar presente. Sabe quando é presente pra ele e fica feliz, faz uma festa deliciosa. Voltamos agora do passeio nocturno (nocturno é legal!) e está fresco lá fora. Já são dez e meia da noite e tem quase ninguém na rua. Só a sorveteria tá com gente do lado de fora.

Xô, pernilongo!

Diário de um mundo novo – dia 80
Who wants to live forever?
Estou intensamente triste pela perda do Jorge Portugal. Qualquer pessoa que tenha vivido em Salvador ou qualquer outro pedaço da Bahia, sabe quem foi o Professor Portugal. Sabia que ele sofria de uma grave cardiopatia há muito tempo, mas sempre pensei que fosse algo tratável, que viveria e continuaria a participar do universo intelectual baiano por muitos anos ainda. Esse é o tipo de notícia capaz de abalar o meu humor. Tenho um péssimo relacionamento com o argumento.

Me abala sobremaneira quando uma pessoa iluminada parte cedo. Não, não acho nem desejo que uma qualquer outra pessoa poderia ter ido no lugar dele. Não consigo desejar a morte de ninguém. Claro que perder uma pessoa querida também me toca muito. Mesmo quando o conhecimento é virtual. Não há uma escala, gente boa e gente má irão do mesmo jeito, há quem sofra e quem apenas não acorda mais. A verdade é que não estamos preparados para a partida de quem gostamos ou admiramos. É inexorável e, no entanto, lidamos mal.

Com tudo o que está acontecendo neste ano, a dor só aumenta. Precisamos nos cuidar e nem isso basta. Eu, por exemplo, só descobri a minha exotropia dez anos atrás. No meu caso, é tarde para uma cura. Deveria ter sido operado muito antes. Convivo com ela sabendo que não será esse o motivo da minha partida. Não diretamente, pelo menos. Mês passado fui obrigado a fazer diversos exames e um procedimento cirúrgico. Vou levando. Confesso, porém, que ouvir dos médicos (no plural. E eram muitos) que devo viver muitos anos menos do que imaginava não é agradável. Segundo a equipe médica, se me cuidar, andar na linha, devo viver mais uns sessenta nos, e não os noventa que esperava. Pode parecer piada, mas juro que era o que imaginava. Somos egocêntricos na morte. Quando sabemos da partida de alguém com quem nos importamos, acabamos pensando em nós mesmos. Por outro lado, se nascemos sós, por que nos assustamos com uma partida solitária?

Vá em paz, Portugal. O seu legado é grande demais para que você seja esquecido.

Diário de um mundo novo – dia 81
O contágio do vírus vinha oscilando, mas a média diária diminuía. Sempre abaixo de 300 novos casos confirmados por dia, com quedas de pouco mais de 100, vez ou outra. Ontem, quarta-feira, 5 de agosto, os novos casos foram 386 e hoje, 402. A culpa é do relaxamento das medidas, da “liberdade” em não usar máscaras ao aberto (nos estabelecimentos comerciais ainda vigora a lei que obriga ao uso), das praias lotadas e da vista grossa das empresas diante das máscaras no queixo dos funcionários. A média de idade dos contagiados se reduz a cada medição. Os italianos que olhavam com distanciamento os números de Espanha e Alemanha, correm o risco de voltar a ser piada na Europa. Sim, o bicho fica suspenso no ar por algum tempo. É preciso aumentar o alerta para evitar uma segunda quarentena.
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Beirute, Beirute.

Cadê a chuva que refrescou os últimos dias?

Pão com mortadela e fatias fininhas de limão de Sorrento e cerveja.

“No início era o verbo”, Blog da Maliu e Rádio Drops – Drops da Fal.

Para livrar o SHIVA19 do incômodo, agora levo a focinheira presa na minha cintura e não mais na coleira dele. Ele ri da minha máscara e abana a cauda.

“Alto e contínuo
Alta madrugada
Ouvi um menino
Um uivo pra Lua
Alta lá no céu éu éu
A alva Lua
Abana a cauda
Pros cães da rua
Cantarem em coral au au
Au au pra Lua”
Jorge William Fernandes
(Jorginho, a turma aqui é exigente, posta a música que vão querer ouvir. Pode ser Spotfy, teu site, ou qualquer outro meio. Tem não? Grava rapidinho com o celular... Se vira aí, maluco!)

Diário de um mundo novo – dia 82
Novos casos de contagiados confirmados na Itália em agosto:
1º de agosto – 247
2 de agosto – 239
3 de agosto – 159
4 de agosto – 190
5 de agosto – 384
6 de agosto – 386
7 de agosto – 552
É ruim começar assim, porém é importante alertar para o resultado do relaxamento das medidas de prevenção. O ministro da saúde pediu a colaboração dos jovens, visto o grande movimento de bares, discotecas e praias. Informa que a idade média dos contagiados, que era de 62 anos dois meses atrás, caiu para 40 anos. Para quem tem dificuldade com estatísticas e médias, significa que pessoas com 80 anos ou mais, foram confirmados positivos em testes realizados, assim como pessoas com 18 anos ou menos. O grande problema continua sendo os portadores assintomáticos. O uso de máscaras protege os outros e se você não foi testado e não há sintoma algum, isso não significa que não seja um portador.

Quando o dia começa com vinte e quatro graus às cinco e meia da manhã e termina com trinta, às oito da noite, posso dizer que tá calor?

Clube do Bolinha e Clube da Luluzinha funcionando nesta sexta-feira. As meninas foram se reunir na casa da Bianca, em Bergamo. Aqui, só eu e o Shiva. Cerveja gelada, futebol, tira-gostos e pés sobre a mesa.

Diário de um mundo novo – dia 83
Aí, gostei de ver. Aproveitando que a mulherada tá longe pra dar um grau na casa. Tá de parabéns, viu? E ainda leva o cachorro pra dar umas passeadas longas, longas, apesar do calor. Peraí, tá falando com quem? Com você, ué. “Você”? Cara, cê tá falando sozinho como se falasse com outra pessoa. Quê que tem? Todo mundo faz isso. “Todo mundo, todo mundo...” Falar sozinho é coisa de maluco ou de velho gagá. Ah, vai lamber sabão, vai! Rá!, além de maluco, malcriado. Não existe “você”, é “eu”. “Sou” eu, analfa. Tô falando com o diário, pronto!

Calor, calor, calor. Daqui a sei meses vou estar reclamando do frio. Quando chegar lá, me critiquem, mas agora eu vou reclamar do calor. Aff, que calor!

Tenho acompanhado as notícias sobre as vacinas que estão sendo testadas. O Brasil é o centro das experimentações pelo volume de novos casos. Tenho uma reserva muito grande a respeito de vacinação em massa já nos próximos meses, vou preferir esperar. Claro que entendo a situação de quem precisa trabalhar em condições longe das ideais, usando transporte público, sem outro meio de subsistência e tendo que apostar na vacina. Só acho que a situação aqui me permite de aguardar estudos mais profundos sobre efeitos e reações às vacinas. Tá pesado. Mesmo de longe.

A propósito da limpeza, podia ter limpado a casa toda, não? Pronto, lá vem o crítico.

Para passear com o Shiva às onze da noite é preciso fazer as contas com o lado da rua que recebeu sol a tarde inteira. A diferença de temperatura entre o lado sombreado à tarde e o outro é grande. Culpa das paredes, muros e calçada de pedra. Sauna noturna (já escrevi que gosto de nocturna?) é coisa que se deve evitar nesse período.

E, se posso, agora vou tomar uma gelada e fumar um charuto. “Vou”? Até que enfim acertou uma. Cara, para de perturbar o juízo. Ou nós vamos acabar entrando em confusão. “Nós”, agora é plural? Somos nós? Nós, quem? Estou sozinho aqui e falando como se fosse mais de um. “Fosse”? Nesse caso, não seria “fôssemos”? Ai, minha Nossa Senhora da Santa Paciência! Tô falando com ninguém não, tá? Sô maluco, velho gagá e o que quiser. Me deixa! Cê tá precisando de tratamento. E urgente.

Diário de um mundo novo – dia 84
O futebol sem público não me empolga e ainda vai demorar par que os estádios voltem a ficar cheios. Já comentei que, pandemia ou não pandemia, os torcedores voltarão a ocupar os estádios. É como quando abrem uma fábrica, constroem uma ponte, planejam um bairro novo ou qualquer outro projeto: usam-se dados estatístico que preveem o número de mortes e, principalmente o impacto econômico que isso acarretará (seguros, causas judiciais, etc.). A economia é fria, deve apenas contabilizar perdas e ganhos. Também já comentei aqui que perdi muito do interesse que tinha pelo futebol. Passei as noites de sexta e sábado assistindo os jogos da Champions League (sexta: Juventus x Lyon e sábado: Barcelona x Napoli) tomando cerveja, comendo grana, speck e pão como se assistisse um programa qualquer. No primeiro jogo, bocejei; o segundo foi divertido e envolvente, menos pro Shiva, que dormiu com a cabeça no meu colo. Até acreditei que a Juventus venceria o Lyons com gols suficientes para compensar o jogo de ida, mas não aconteceu e isso não me entristece nem um pouco. Por outro lado, sabia (eu e as torcidas do Barça e do Napoli) que dificilmente o Napoli conseguiria passar pelo Barcelona em pleno Camp Nou, mas torci muito para que o time treinado pelo Gattuso fizesse um milagre. Foi um jogo bonito e movimentado, me diverti, só fiquei triste pelo treinador, um ex-jogador de nem tanta qualidade, mas tanta garra que sempre foi escalado para a seleção italiana. Talvez tivesse me divertido do mesmo modo se assistisse um filme de guerra.

O domingo foi de muito calor. Os rios da província entupidos de gente, trânsito lento e restaurantes lotados. Os restaurantes de fora da cidade, que ninguém fica aqui nessa época. O vírus deve ter feito a festa.

Minhas meninas (Eloá e Luiza) voltaram, deitaram no sofá e pediram carinho. E cerveja. E ganharam.
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