Monday, August 03, 2020

Diário de um mundo novo - parte 11


Em dezembro de 2019 a Eloá e a Bianca ficaram gripadas. Febre, dores no corpo, na garganta, tosse seca e uns dias de cama. A Bia ficar doente é como esculpir a Terra quadrada, não acontece. Ela é um touro de saúde. De cama, então, nem sei se já tinha ficado. A Eloá é outra rocha e raramente pega gripe, acho que de dez em dez anos. Em janeiro foi a minha vez, mas eu sou daqueles que não percebe a febre e trabalho mesmo com a temperatura corpórea a trinta e nove graus, o que não é bom, pois certamente estarei contaminando alguém. Repito, não percebo a febre. Normalmente é outra pessoa a notar que não estou bem e só então vou medir a temperatura. Foi a primeira vez na vida que tive tosse seca e a febre não baixava de trinta e oito e meio nem com muito conhaque... Quer dizer, com reza brava. Trinta e nove e meio em alguns dias e dores no corpo como nunca tive antes. Fiquei uns dias em casa até melhorar, mas em janeiro ninguém falava do vírus na Itália. Presumo que nós três contraímos o vírus que se COVIDou sozinho. Presumo.

A Luiza chegou quarta-feira passada, bela, feliz e radiosa. No mês passado, se não me engano, o coinquilino e amigo dela, com quem ela passou toda a quarentena em Londres, ficou doente, teve febre e precisou ir ao hospital. Lá fizeram o teste para saber se tinha o vírus ou anticorpos. Sim, ele tem os anticorpos. O que nos permite presumir que a Lu foi uma infectada assintomática. Presumimos, nenhum de nós foi testado para anticorpos. Eu fiz o tampão para detectar o vírus recentemente e o resultado foi negativo, mas não sei se fui infectado.

A situação na Inglaterra é catastrófica. Em Londres as pessoas saem sem máscaras e só respeitam a distância de segurança, quando muito. Aqui na Itália estamos numa situação diferente, com a obrigatoriedade do uso de máscaras nos locais de trabalho, transporte público e estabelecimentos comerciais. O contágio vem diminuindo, o número de vítimas tem sido inferior a dez óbitos diários, que ainda é péssimo, mas já é muito inferior à época mais difícil, quando só aqui em Piacenza contávamos entre vinte e trinta mortes por dia. Os especialistas explicaram que a quarentena fez efeito e que hoje há menos vírus circulando, como o pólen diminui no final da floração (pergunte a quem, como eu, sofre na primavera com rinite alérgica).

Se onde você mora não teve lockdown sério, de não poder sair de casa mesmo, proteja-se. Lavar constantemente as mãos, manter distância de segurança, fugir de aglomerações e usar corretamente máscaras vai proteger não apenas você, mas quem estiver em torno, seus familiares e vai impedir o vírus de fazer o trabalho sujo dele. Não banque o herói. Heróis também morrem e contaminam os outros.

Diário de um mundo novo – dia 72
Ela já chegou na Itália causando alvoroço. Restaurante aberto, distâncias respeitadas, almoçamos com a irmã e fomos pra casa. Quer dizer, eu voltei, ela veio. Veio depois de um século de quarentena, radiante como sempre. Temos duas filhas que são dois espetáculos sozinhas. Quando se juntam, um novo big bang acontece.

Depois do banho ela deita e dorme no sofá, paparicada por mim, pela mãe e pelo Shiva. Parecia que o dia acabaria ali, se nós não a conhecêssemos. No final da cochilada, as amigas começam a chegar, cada uma com uma máscara mais colorida que a outra. Prosecco, cerveja, coca-cola pra amiga abstêmia, pão de queijo, taboa de queijos, torta de palmito e muita risada. Banho e rua. A que horas volta? E quem sabe?

Acordar às cinco e dez da manhã e a encontrar na sala, assistindo televisão com uma lata de cerveja na mão, “oi, Papi!” não é evento raro. Afinal, é minha filha. Hoje o dia foi de almoçar coxinha e kibe, suco de abacaxi com hortelã e tomar sorvete na nossa sorveteria preferida. O Pietro é um sorveteiro napolitano das antigas, só faz sorvete com produtos frescos e orgânicos, na medida do possível. Frutas que chegam da região Campania duas vezes por semana e leite fresco daqui da província. Já eram três da tarde e o trabalho que espere. “Tô ocupado, passo amanhã”.

Calor abafado e úmido, como manda a regra italiana. E uma filha deliciosa fazendo o que sempre fizemos juntos. E o trabalho que espere.

Diário de um mundo novo – dia 73
Eu juro que hoje trabalhei com a camisa encharcada de suor. Tirei e torci três vezes. As máscaras não deram conta de trocar, lavei várias vezes no cliente. Azedei e tive vontade de matar alguém, só faltaram força e uma vítima à disposição.
Tô cansado, tomei banho e tô suado. O Shiva aproveitou pra lamber o sal em mim.
Me lavei de novo e vou dormir no ar-condicionado.
Tá difícil.
Manhã tem mais.

Diário de um mundo novo – dia 74
Uma salva de palmas pra Dona Eloá que fez as minhas máscaras, por favor. Claro que além das que ela fez pra mim, tenho algumas descartáveis, que só uso em alguns casos. No dia-a-dia uso mesmo as de tecido – aliás, Eloá, tá chegando a hora de fazer mais. E você sabe da minha absoluta incompetência na frente de uma máquina de costura –, as descartáveis ocupam o porta-luvas esperando o momento de subir no palco. Por sinal, tenho quatro tipos de máscaras. A que uso para pintar, a N95, a cirúrgica e a falsa cirúrgica. A vantagem da máscara de tecido é a possibilidade de lavar onde estiver, usar a reserva de tecido e ter a primeira enxuta em menos de uma hora. Com esse calor...

(Assisti no Netflix um filme com o Jean Reno, acho que se chama R4, e dei um poco de risada. Um velho amigo o carrega da Europa para visitar um outro que está morrendo e que vive em Timbuktu. É um filme para rir, sem desenvolver temas importantes, como a velha amizade entre eles, o que deixa a desejar, pois a história é baseada na forte ligação de amizade. Nenhum tema é desenvolvido, mas se quiser se divertir e se emocionar um pouco, assista. Gostei da cena envolvendo o engenheiro da Toyota.)

Nas ruas quase ninguém mais usa máscara. Quase. Pessoas com menos de trinta anos, na rua, de máscara é figurinha carimbada (ainda existe figurinha carimbada? Você aí, sabe o que significa essa expressão?). Pra compensar, também não vi ninguém com calça “Pinóquio”, aquela calça branca masculina que acabava logo abaixo do joelho e que dominava o verão italiano. Nem tudo é dor.

E tome spritz Aperol, que a onda laranja veio pra ficar.
Diário de um mundo novo – dia 75
Os dias já amanhecem grudentos, sufocantes, sem nuvens no horizonte. Nenhuma esperança de chuva. Às cinco da manhã o silêncio é maior que nos outros períodos do ano. Quem ainda tem férias para gozar, aproveita os preços mais baixos de julho, que agosto tudo triplica. Ou decuplica. A sobrinha que fugiu da pandemia tupiniquim está aproveitando. Viajou com amigos para Cinco Terras noutro dia e hoje foi pra Veneza. Dei todas as dicas sobre o que fazer e não fazer, como não sentar nas escadas de igrejas e monumentos, não andar a pé na contramão, não comer na rua, coisas que dão multa. Entrar primeiro nos barcos de passageiros é uma fria. O “vaporetto” lota, fica super abafado e não tem como sair. Os moradores locais estarão em cima, do lado de fora, onde pelo menos pode-se respirar. A única recomendação que ela não pode seguir é justamente a mais importante: nunca ir a Venezia durante o verão. Como ela deve voltar para o Brasil em setembro, essa era a única oportunidade de conhecer a cidade. Coitada, deve ter perdido uns dez quilos.
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Perplexidade. A Itália assistiu a um filme tenebroso. Uma obra de ficção que colocava o país no centro de uma pandemia com milhares de mortos, ruas desertas, pânico nos hospitais e enterros sem velórios. Saía-se de casa somente para adquirir o essencial, poucas vezes por mês. O medo morava por trás das janelas fechadas, silenciosas. Felizmente foi somente um filme, nada disso existiu. O verão chegou e as praias, discotecas, bares, tudo lotado. Os trens de longa distância foram autorizados à ocupação máxima, assim como o transporte público da região Lombardia. O presidente Sergio Mattarella fez um pronunciamento pedindo cautela. “Liberdade não é infectar os outros”. Mas estão todos de férias e ninguém escutou.

Diário de um mundo novo – dia 76
Já não existem sábados como antigamente. Já nem existe, vejam só, nem mesmo o antigamente de antigamente. Os acontecimentos acontecem numa velocidade atordoante, não conseguimos acompanhar ou nos adaptarmos. Vamos, apenas, sendo levados. Tal qual folhas na enxurrada, ao campinho do bairro ou à boca de lobo. Que é isso que o mundo é, um jogo ou a escuridão.

A roupa no varal seca em pouco tempo. O relógio, preguiçoso, cochila no móvel do ingresso o dia inteiro, na penumbra. Nem sei se está certo e não quero saber. É a primeira coisa que tiro quando chego em casa. Agora um vento fresco de chuva anuncia o temporal. Dormir ao som da chuva, acordar de terra molhada. Vai, cachorro. Esse cheiro que te intriga vem de longe, muito longe, talvez das montanhas. É o aroma da Terra reivindicando o tempo que a ela pertence. Vai dormir, vai.

Diário de um mundo novo – dia 77
Quem mais tem dores fantasmas? Dor fantasma é como chamo dores sem motivo e que não deveriam existir [claro que o melhor seria não existir dor nenhuma, mas, né?], como a dor de hoje na sola de um dedo do pé. Saímos para passear antes das cinco da manhã, sob o abafado da chuva da noite passada e vinte e quatro graus. Saímos quem? Eu e o Shiva, oras! Ou você acha que a Eloá ia querer passear àquela hora? Pois então, depois de uma longa caminhada (e corrida dele) e já voltando, a sola de um dedo do pé direito começou a queimar. Mal conseguia apoiar o pé no chão, voltei mancando como se tivessem cortado o dedo fora. Não dei topada, nada de corte, espinho, nada de nada. Assim, do nada. Examinei e ela examinou – bem mais tarde – e não tem nada. Nem um vermelho. Continuei mancando o dia inteiro. Às vezes me aparece uma dor assim, a tal dor fantasma. E some do mesmo jeito, duma hora pra outra.
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Noutro dia a repórter entrevistando uma mulher na praia sem máscara perguntou sobre o vírus. A entrevistada, visivelmente aborrecida: “Não tem, volta em setembro.” E assim vamos fingindo que tudo acabou e que a Itália não terá uma segunda (e terceira, quarta...) onda de contágios, como a Espanha e a Alemanha. A propósito, os trens voltam à regra de distanciamento e redução do número de assentos, menos na região Lombardia, justamente a mais afetada (quinta, sexta...).

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