Em
dezembro de 2019 a Eloá e a Bianca ficaram gripadas. Febre, dores no corpo, na
garganta, tosse seca e uns dias de cama. A Bia ficar doente é como esculpir a
Terra quadrada, não acontece. Ela é um touro de saúde. De cama, então, nem sei
se já tinha ficado. A Eloá é outra rocha e raramente pega gripe, acho que de
dez em dez anos. Em janeiro foi a minha vez, mas eu sou daqueles que não percebe
a febre e trabalho mesmo com a temperatura corpórea a trinta e nove graus, o
que não é bom, pois certamente estarei contaminando alguém. Repito, não percebo
a febre. Normalmente é outra pessoa a notar que não estou bem e só então vou
medir a temperatura. Foi a primeira vez na vida que tive tosse seca e a febre
não baixava de trinta e oito e meio nem com muito conhaque... Quer dizer, com
reza brava. Trinta e nove e meio em alguns dias e dores no corpo como nunca
tive antes. Fiquei uns dias em casa até melhorar, mas em janeiro ninguém falava
do vírus na Itália. Presumo que nós três contraímos o vírus que se COVIDou
sozinho. Presumo.
A
Luiza chegou quarta-feira passada, bela, feliz e radiosa. No mês passado, se
não me engano, o coinquilino e amigo dela, com quem ela passou toda a
quarentena em Londres, ficou doente, teve febre e precisou ir ao hospital. Lá
fizeram o teste para saber se tinha o vírus ou anticorpos. Sim, ele tem os
anticorpos. O que nos permite presumir que a Lu foi uma infectada assintomática.
Presumimos, nenhum de nós foi testado para anticorpos. Eu fiz o tampão para
detectar o vírus recentemente e o resultado foi negativo, mas não sei se fui
infectado.
A
situação na Inglaterra é catastrófica. Em Londres as pessoas saem sem máscaras
e só respeitam a distância de segurança, quando muito. Aqui na Itália estamos
numa situação diferente, com a obrigatoriedade do uso de máscaras nos locais de
trabalho, transporte público e estabelecimentos comerciais. O contágio vem
diminuindo, o número de vítimas tem sido inferior a dez óbitos diários, que
ainda é péssimo, mas já é muito inferior à época mais difícil, quando só aqui
em Piacenza contávamos entre vinte e trinta mortes por dia. Os especialistas
explicaram que a quarentena fez efeito e que hoje há menos vírus circulando,
como o pólen diminui no final da floração (pergunte a quem, como eu, sofre na
primavera com rinite alérgica).
Se
onde você mora não teve lockdown sério, de não poder sair de casa mesmo,
proteja-se. Lavar constantemente as mãos, manter distância de segurança, fugir
de aglomerações e usar corretamente máscaras vai proteger não apenas você, mas
quem estiver em torno, seus familiares e vai impedir o vírus de fazer o
trabalho sujo dele. Não banque o herói. Heróis também morrem e contaminam os
outros.
Diário de um mundo novo – dia 72
Ela
já chegou na Itália causando alvoroço. Restaurante aberto, distâncias
respeitadas, almoçamos com a irmã e fomos pra casa. Quer dizer, eu voltei, ela
veio. Veio depois de um século de quarentena, radiante como sempre. Temos duas
filhas que são dois espetáculos sozinhas. Quando se juntam, um novo big bang
acontece.
Depois
do banho ela deita e dorme no sofá, paparicada por mim, pela mãe e pelo Shiva.
Parecia que o dia acabaria ali, se nós não a conhecêssemos. No final da
cochilada, as amigas começam a chegar, cada uma com uma máscara mais colorida
que a outra. Prosecco, cerveja, coca-cola pra amiga abstêmia, pão de queijo,
taboa de queijos, torta de palmito e muita risada. Banho e rua. A que horas
volta? E quem sabe?
Acordar
às cinco e dez da manhã e a encontrar na sala, assistindo televisão com uma
lata de cerveja na mão, “oi, Papi!” não é evento raro. Afinal, é minha filha.
Hoje o dia foi de almoçar coxinha e kibe, suco de abacaxi com hortelã e tomar
sorvete na nossa sorveteria preferida. O Pietro é um sorveteiro napolitano das
antigas, só faz sorvete com produtos frescos e orgânicos, na medida do
possível. Frutas que chegam da região Campania duas vezes por semana e leite
fresco daqui da província. Já eram três da tarde e o trabalho que espere. “Tô
ocupado, passo amanhã”.
Calor
abafado e úmido, como manda a regra italiana. E uma filha deliciosa fazendo o
que sempre fizemos juntos. E o trabalho que espere.
Diário de um mundo novo – dia 73
Eu
juro que hoje trabalhei com a camisa encharcada de suor. Tirei e torci três
vezes. As máscaras não deram conta de trocar, lavei várias vezes no cliente.
Azedei e tive vontade de matar alguém, só faltaram força e uma vítima à
disposição.
Tô
cansado, tomei banho e tô suado. O Shiva aproveitou pra lamber o sal em mim.
Me
lavei de novo e vou dormir no ar-condicionado.
Tá
difícil.
Manhã
tem mais.
Diário de um mundo novo – dia 74
Uma
salva de palmas pra Dona Eloá que fez as minhas máscaras, por favor. Claro que
além das que ela fez pra mim, tenho algumas descartáveis, que só uso em alguns
casos. No dia-a-dia uso mesmo as de tecido – aliás, Eloá, tá chegando a hora de
fazer mais. E você sabe da minha absoluta incompetência na frente de uma
máquina de costura –, as descartáveis ocupam o porta-luvas esperando o momento
de subir no palco. Por sinal, tenho quatro tipos de máscaras. A que uso para
pintar, a N95, a cirúrgica e a falsa cirúrgica. A vantagem da máscara de tecido
é a possibilidade de lavar onde estiver, usar a reserva de tecido e ter a
primeira enxuta em menos de uma hora. Com esse calor...
(Assisti
no Netflix um filme com o Jean Reno, acho que se chama R4, e dei um poco de
risada. Um velho amigo o carrega da Europa para visitar um outro que está morrendo
e que vive em Timbuktu. É um filme para rir, sem desenvolver temas importantes,
como a velha amizade entre eles, o que deixa a desejar, pois a história é
baseada na forte ligação de amizade. Nenhum tema é desenvolvido, mas se quiser
se divertir e se emocionar um pouco, assista. Gostei da cena envolvendo o
engenheiro da Toyota.)
Nas
ruas quase ninguém mais usa máscara. Quase. Pessoas com menos de trinta anos,
na rua, de máscara é figurinha carimbada (ainda existe figurinha carimbada?
Você aí, sabe o que significa essa expressão?). Pra compensar, também não vi
ninguém com calça “Pinóquio”, aquela calça branca masculina que acabava logo
abaixo do joelho e que dominava o verão italiano. Nem tudo é dor.
E
tome spritz Aperol, que a onda laranja veio pra ficar.
Diário de um mundo novo – dia 75
Os
dias já amanhecem grudentos, sufocantes, sem nuvens no horizonte. Nenhuma
esperança de chuva. Às cinco da manhã o silêncio é maior que nos outros
períodos do ano. Quem ainda tem férias para gozar, aproveita os preços mais
baixos de julho, que agosto tudo triplica. Ou decuplica. A sobrinha que fugiu
da pandemia tupiniquim está aproveitando. Viajou com amigos para Cinco Terras
noutro dia e hoje foi pra Veneza. Dei todas as dicas sobre o que fazer e não
fazer, como não sentar nas escadas de igrejas e monumentos, não andar a pé na
contramão, não comer na rua, coisas que dão multa. Entrar primeiro nos barcos
de passageiros é uma fria. O “vaporetto” lota, fica super abafado e não tem
como sair. Os moradores locais estarão em cima, do lado de fora, onde pelo
menos pode-se respirar. A única recomendação que ela não pode seguir é
justamente a mais importante: nunca ir a Venezia durante o verão. Como ela deve
voltar para o Brasil em setembro, essa era a única oportunidade de conhecer a
cidade. Coitada, deve ter perdido uns dez quilos.
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Perplexidade.
A Itália assistiu a um filme tenebroso. Uma obra de ficção que colocava o país
no centro de uma pandemia com milhares de mortos, ruas desertas, pânico nos
hospitais e enterros sem velórios. Saía-se de casa somente para adquirir o
essencial, poucas vezes por mês. O medo morava por trás das janelas fechadas,
silenciosas. Felizmente foi somente um filme, nada disso existiu. O verão
chegou e as praias, discotecas, bares, tudo lotado. Os trens de longa distância
foram autorizados à ocupação máxima, assim como o transporte público da região
Lombardia. O presidente Sergio Mattarella fez um pronunciamento pedindo
cautela. “Liberdade não é infectar os outros”. Mas estão todos de férias e
ninguém escutou.
Diário de um mundo novo – dia 76
Já
não existem sábados como antigamente. Já nem existe, vejam só, nem mesmo o
antigamente de antigamente. Os acontecimentos acontecem numa velocidade
atordoante, não conseguimos acompanhar ou nos adaptarmos. Vamos, apenas, sendo
levados. Tal qual folhas na enxurrada, ao campinho do bairro ou à boca de lobo.
Que é isso que o mundo é, um jogo ou a escuridão.
A
roupa no varal seca em pouco tempo. O relógio, preguiçoso, cochila no móvel do
ingresso o dia inteiro, na penumbra. Nem sei se está certo e não quero saber. É
a primeira coisa que tiro quando chego em casa. Agora um vento fresco de chuva
anuncia o temporal. Dormir ao som da chuva, acordar de terra molhada. Vai, cachorro.
Esse cheiro que te intriga vem de longe, muito longe, talvez das montanhas. É o
aroma da Terra reivindicando o tempo que a ela pertence. Vai dormir, vai.
Diário de um mundo novo – dia 77
Quem
mais tem dores fantasmas? Dor fantasma é como chamo dores sem motivo e que não
deveriam existir [claro que o melhor seria não existir dor nenhuma, mas, né?],
como a dor de hoje na sola de um dedo do pé. Saímos para passear antes das
cinco da manhã, sob o abafado da chuva da noite passada e vinte e quatro graus.
Saímos quem? Eu e o Shiva, oras! Ou você acha que a Eloá ia querer passear
àquela hora? Pois então, depois de uma longa caminhada (e corrida dele) e já
voltando, a sola de um dedo do pé direito começou a queimar. Mal conseguia
apoiar o pé no chão, voltei mancando como se tivessem cortado o dedo fora. Não
dei topada, nada de corte, espinho, nada de nada. Assim, do nada. Examinei e
ela examinou – bem mais tarde – e não tem nada. Nem um vermelho. Continuei
mancando o dia inteiro. Às vezes me aparece uma dor assim, a tal dor fantasma.
E some do mesmo jeito, duma hora pra outra.
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Noutro
dia a repórter entrevistando uma mulher na praia sem máscara perguntou sobre o
vírus. A entrevistada, visivelmente aborrecida: “Não tem, volta em setembro.” E
assim vamos fingindo que tudo acabou e que a Itália não terá uma segunda (e
terceira, quarta...) onda de contágios, como a Espanha e a Alemanha. A
propósito, os trens voltam à regra de distanciamento e redução do número de
assentos, menos na região Lombardia, justamente a mais afetada (quinta,
sexta...).
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