As
gaivotas já viviam aqui quando nos mudamos. Logo de manhã cedo, passam aos
bandos fazendo o maior estardalhaço. Vê-las nos telhados ou caçando pombos é
cena comum. Nesse final de tarde uma gaivota solitária plana em círculos cada
vez mais amplos. Alguma corrente de ar ascendente brinca nas asas dela,
levando-a cada vez mais alto. O que ela observa? Por que escolheu essa cidade
distante do mar?
Às
vezes me sinto como uma gaivota vivendo longe da praia. Pra falar a verdade,
muita gente daqui é gaivota de outras paragens. Todos sonhando em ir o mais
alto possível, num esforço passível de descobrir uma corrente ascendente e
deixar-nos leva para cima e, quem sabe, avistar lá do alto as nossas areias.
Por que, gaivota, ficamos?
Diário de um mundo novo – dia 65
Passei
o dia inteiro verificando o ar, tentando identificar um cheiro de enxofre que,
tenho certeza, deveria estar aqui. Não encontrei. Já visitei o site do
instituto de vulcanologia (ingv.it) diversas vezes. Nenhum novo vulcão. Não é
possível que essa fornalha não tenha uma explicação excepcional. Que calor que
nada. Caldeira.
Cotovelo,
orelha, queixo, pescoço, pulso. Definitivamente, as máscaras se transformaram
em acessório de moda. E das feias.
O
Preguiço só corre às cinco da matina, que ele não é besta nem nada. À noite,
uma corridinha pra desenferrujar e dois galões de água. Pra compensar, o xixi
dele tem hora pra começar, mas não pra acabar.
Diário de um mundo novo – dia 66
Vez
ou outra a cidade vira notícia nacional. É raro, mas acontece. “o borgo mais
bonito da Itália” (na verdade, Castell’Arquato, na província), Festival do
Direito, “o vale mais bonito do mundo” (rio Trebbia), a única cidade europeia
com três produtos gastronômicos DOP (salame piacentino, copa piacentina e
pancetta piacentina, além dos vinhos) e outros argumentos que enchem o
piacentino de orgulho. Fazia tempo que a chamar a tenção fosse uma notícia
negativa. Pois hoje dez carabinieri (polícia militar) foram presos e o quartel
fechado. Formação de quadrilha, tráfico de droga, tortura e outras acusações.
Para não interromper o fluxo comercial, forneceram – inclusive – autorizações
aos traficantes para ir a Milão durante o lockdown. Rei morto, rei posto. A
lista de consumidores desesperados em busca de novos fornecedores, fez o preço
da “erba buena” e da “erba mala” crescer como bambu.
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A
Luli chegou! A Luli chegou! A Luli chegou!
O
Doidão em abstinência enlouqueceu de vez quando a Luiza entrou em casa. Direto
de Londres, com direito a almoço com a irmã em Bergamo, ela veio alegrar nossos
corações. Agora, sim, a família reencontra o seu pitbull.
Dia
cansativo, não sou fã de viagens com esse calor. Fui buscar o Bicho do Mato no
aeroporto e almoçamos com a Bia. Delícia, mas cozinha os miolos de quem já está
com eles torrados, cozidos, fervidos e assados. Claro que a alegria de ver a
duas juntas não tem preço. Claro que fugir dos clientes por um dia inteiro é um
alívio (na verdade, seria, se eu não tivesse que responder o celular o dia
todo, mas tá valendo), ir a Bergamo e região, mudar os ares da planície
sufocante pelo da zona pré-alpina, enfim. Só que prefiro não ter que ir nesse
período. Uma praia ou a montanha seriam mais indicados. O motivo, porém, é mais
que válido. Bem vinda, meu Bijou.
Durante
a viagem me comportei com responsabilidade e sede. Muita água e até suco de
laranja. Não recomendo. Em casa e não tendo mais que dirigir, vamos esvaziar o
estoque de cerveja da cidade. E que nos embriaguemos até o último gole.
Diário de um mundo novo – dia 67
Previsão
do tempo de anteontem, 21 de julho.
A
terça-feira teve temperatura média-alta e alta. A umidade relativa do ar foi a
esperada para o período, sem nenhum evento chuvoso. As pessoas reclamaram do
calor, mas são as mesmas que reclamam do frio, dos pernilongos, do aumento do
preço da gasolina e do desaparecimento de ventiladores das lojas. Tenho alguns
sobrando, os interessados devem esperar alguma especulação nesse tipo de
negociação.
Previsão
do tempo de ontem, 22 de julho.
Tivemos
uma quarta-feira de muito calor e umidade do ar altíssima. Dia ideal para ser
concluído com cerveja gelada, pão de queijo, torta de palmito e a presença de
alguém acostumada a nos matar de saudade. Uma tempestade se abateu durante a
madrugada, melhorando muito o amanhecer do dia seguinte.
Previsão
do tempo de hoje, 23 de julho.
Essa
quinta-feira o clima amanheceu ameno, graças à chuva da madrugada. O correr do
dia foi de sol forte, alta temperatura e muito calor. A umidade deixou o clima
sufocante, provocando muito cansaço e irritação. Para maiores detalhes desse
dia que ainda não acabou, consulte o nosso site a partir das 09h00 de amanhã.
A
previsão do tempo foi um oferecimento de “A Ampulheta Quebrada, o tempo
rompendo barreiras.”
Diário de um mundo novo – dia 68
Chega
de falar de clima. Pode chover canivete (choveu), pode fazer sol de rachar
(fez) e pode me deixar com a impressão de ter sido atropelado por um trem
(ô...!). A moda agora é falar sobre a vida dos VIPs (peraí que vou ali morder o
cachorro). Bora falar mal da vida dos outros (pros outros).
Com
tanta coisa importante acontecendo, os argumentos desses dias têm sido
futilidades. E futebol. A prisão dos policiais, a dança das cadeiras dos
treinadores de futebol, o horóscopo de Paolo Fox, a última/próxima partida, a
receita de “pisarei e fasò”, o número da chuteira do ídolo. Nem mesmo a
fervilhante política (sem ironia) consegue interessar ninguém além do grupinho
mono argumento. Não é um caso de alienação coletiva, mas a vontade de desligar
a realidade de uma boa parte do dia. A vontade de parecer superficial é uma
estratégia de sobrevivência. Todos querem respirar o ar dos jovens que se aglomeram
nos bares e ruas, querem participar de fofocas e de bate-papos descontraídos.
Sonhar que tudo foi um pesadelo, que o verão é agora e a vida é uma festa. Sem
ressaca.
Chega
de tristeza, viva o verão!
E
bora ouvir a nova de Burt Bacharach.
Diário de um mundo novo – dia 69
Notícias
boas se alternam àquelas ruins. Amigos e conhecidos vencem o vírus enquanto
outros sucumbem. Nosso amigo Giuseppe, carabiniere aposentado, está na primeira
lista. Foi uma das primeiras pessoas infectadas na cidade, ainda em março. As
sequelas, inclusive neurológicas, talvez não tenham cura, mas ele está entre
nós. Felizmente a esposa e os dois filhos passaram imunes pela experiência e
estão ao lado dele. Poderia citar muitos outros casos, se assemelham em muitos
aspectos. O vírus existe, é real e parece que vai conviver com a humanidade por
algum tempo. Ou para sempre. É preciso tomar as medidas de proteção coletiva.
De nada adianta um sair com máscara e outro não. Lavar as mãos constantemente,
evitar ambientes aglomerados, respeitar as orientações da ciência. Coisas que
podemos fazer sem esforço algum, mostrar que somos aptos a viver
harmoniosamente em sociedade. Isso salva vidas, se cada um fizer a sua parte.
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O
troglodita prepara o feijão por dois dias com amor e carinho, como se cuidasse
da própria cria. O troglodita come feijão como um troglodita. O troglodita
coloca a abundante sobra do feijão num pote com tampa para guardar na
geladeira. O troglodita sente fome. O troglodita pega a vasilha de feijão na
geladeira e tenta abrir. A luta pela sobrevivência tem início, o troglodita
grunhe, rosna, luta ferozmente. O troglodita quebra a tampa do pote de feijão,
xinga furiosamente o pote come se fosse um ser vivo. O troglodita olha a parede
rígida como uma rocha e considera arremessar a vasilha imbecil, para ela
aprender o que é bom. Ela escorrega da mão dele, cai sobre a mesa e a tampa se
abre. O troglodita prova o feijão e precisa se esforçar muito para não comer um
balde de feijão gelado. O troglodita é um troglodita. Não se aproximem do
troglodita quando ele estiver lutando com a comida. O troglodita é perigoso e
irracional quando tem fome.
Diário de um mundo novo – dia 70
Domingo
de sol, estradas coalhadas, praias entupidas e máscaras esvoaçantes. Melhor se
refrescar em Travo, à beira do rio Trebbia, aqui na província mesmo. Stefano e
Benedita são amigos sempre presentes. E têm casa em Travo. Ele, piacentino DOC
(da gema) está trabalhando em home office desde o início dessa confusão; ela, curitibana,
dona de casa. E lá fomos nós, eu, Eloá, Luiza e Shiva pro churrasco de costela
só para nós.
Claro
que o Caçador estava mais interessado em latir para os cães dos vizinhos, além
de um enorme interesse nas galinhas da chácara ao lado. É um caçador – ele
acredita ser um cão de caça, não digam nada – generalista. Fuça mais que todos
os cães que já tivemos juntos. E quando acontece de conseguir pegar uma presa,
não sabe o que deve fazer. Fica parado com o focinho em cima (exceto quando a
presa é um ouriço) esperando que... Esperando. Não morde, só caça. Acho que ele
gosta mesmo é de botar os bichos pra correr. O que pode ser divertido para ele,
mas pode matar do coração as suas vítimas.
Gente,
que preguiça que dá comer churrasco com um monte de acompanhamento, cerveja
gelada, doces até não poder, licores e grappas várias e fumar charuto naquela
brisa fresca. A Lu sucumbiu ao convite da rede, mas como não sucumbir? O verão
é curto e uma hora acaba, mas não tenho coragem para enfrentar filas no
pedágio, barraca de praia, restaurante/bar com esse calor. Isso é pros fortes.
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