Quanta água você toma por
dia?
Toma um gole aí.
“Os subsídios da pandemia
não resolvem o problema do crescimento.”
“A economia precisa
crescer sempre, não pode parar. Mais forte é, mais benefícios tem a serem
distribuídos.”
“Um crescimento rápido
leva à estagnação, enquanto um crescimento mais lento pode permitir uma
redistribuição maior. O que acontece quando todo mundo tiver uma Ferrari, morar
em Forte dei Marmi e possuir milhões no banco?”
“Quando as fábricas não
tiverem a quem vender, pra quem elas irão produzir? Que fim fará a mão de obra?
Ou seremos todos milionários? E quem vai fritar peixe na praia pra eu comer?”
Gente, e eu preocupado com
a guia do Shiva que tá velha.
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“Foiba” é uma
palavra cheia de amargura. Foibe, no plural, como se usa por aqui, são
abismos em zonas rochosas, úteis para fazer desaparecer grandes massas. O termo
se difundiu após o fim da Segunda Guerra, quando começaram a descobrir os
locais de desova dos corpos de prisioneiros, em algumas localidades da região
Friuli, Venezia-Giulia.
Hoje o presidente italiano
Sergio Mattarella encontrou-se com o presidente esloveno Borut Pahor diante da
foiba de Basovizza, distrito da cidade de Triestre, que um dia pertenceu à
Eslovênia. Basovizza era uma antiga mineira profunda que se encheu com os corpos
de quem não era simpatizante do marechal Tito, a partir de maio de 1945.
Em 1992 o então presidente
Oscar Luigi Scalfaro inaugurou um monumento para recordar a tragédia,
declarando-o monumento nacional. Ao visitarem juntos o monumento, os dois presidentes
deram-se as mãos. “Visita histórica, pois foi o primeiro aperto de mão depois
do lockdown e Pahor é o primeiro estadista da ex-Iugoslávia a visitar o
monumento.”
“A história não se
cancela. Podemos cultivá-la com rancor ou fazer dela um patrimônio comum na
lembrança”.
Agora tome um gole de
vinho.
Diário de um mundo novo – dia 58
Eu preciso desabafar, me
desculpem.
Tem anos que me incomodo
com a qualidade das dublagens brasileiras. Cresci ouvindo “versão brasileira,
AIC, São Paulo” e a variante mais importante “versão brasileira, Herbert
Richards”. Mesmo com o fechamento da AIC, em 1976, a qualidade se manteve alta.
Acho que foi a partir de 2009 (quando já morávamos fora), com o encerramento
das atividades da Herbert Richards que a coisa tomou o pior caminho possível.
Uma dublagem ruim pode
acabar com uma obra. A cada retorno ao Brasil essa certeza fica mais veemente.
Há muito decidi a só assistir filme em português quando se trata de filme
brasileiro. Uma dublagem feita sem interpretação subtrai uma parte importante
do impacto ensaiado e repetido pelos atores e diretor. Alguém me disse certa
vez que era uma decisão do mercado para privilegiar a linguagem falada pelo
povo, que as produções eram muito elitizadas e a cultura local sofria. Essa
ideia de nivelar por baixo sempre me irritou.
Buscando um filme
ambientado na Primeira Guerra, fora dos catálogos de Netflix e Amazon Prime, a
única opção segura que encontrei era dublada em português. Parei o filme duas
vezes para pesquisar se realmente eu não tinha escolha. E fui até o fim
passando raiva pela linguagem chula, fora da ambientação do filme (que era
sobre a Primeira Guerra, cazzo!) e sem interpretação alguma. Vozes e
personagens não combinavam, faltava modulação nas vozes, sonoplastia catastrófica.
A impressão era que o estúdio abriu a porta e perguntou ao primeiro que
passava: “qué ganha cinquenta conto? Lê essas coisa aqui pra mim.” Foi a
primeira vez em muitos anos e, juro, foi a última.
Diário de um mundo novo – dia 59
— ...Allan?
— ...
— Allan!
— ...
— Allan, Allan!
— Hm…
— Allan! Allan! Allan!
— HMMMMMMM!!!
— Você tá acordado?
— Agora tô, né.
— É que você tava rindo.
— Eu devia estar sonhando,
ué!
— Com o que? Do que você
tava rindo?
— Sei lá!
— Não lembra?
— Shiva, filho da mãe!
Acorda e morde o nariz dela.
— Ai, desculpa. Não
precisa fazer uma tragédia.
— Num era tragédia, era
sonho.
— Aonde você vai?
— Vou aproveitar que vou
refletir porque os caras constroem paredes grossas pra esconder dinheiro de
falcatruas pra tomar um copo d’água.
— Deita aqui, tem água na
minha cabeceira. Volta a dormir.
— Não era mais fácil ter
me deixado dormir, antes? Cachorro imprestável, a essa hora era pra você dar
uma segunda mordida no nariz dela, invés de tá aí roncando.
— Tem água aqui.
— Quente. Quero, não.
Pego a garrafa da
geladeira e encho um copão d’água trincando de gelada. Uma sombra preta se
arrasta atrás de mim e vai para o sofá da sala. Bebo a água devagar, caminhando
até a sala escura. Sento, acaricio o Assombração, coloco o copo vazio na
mesinha e me aproximo dele.
— Preto, eu vou voltar pra
cama. Você vem?
— Grrrrrrrrrrrr!
Diário de um mundo novo – dia 60
Acordei
de madrugada, abri a janela da sala e fui observar a cidade que se
espreguiçava. Do outro lado da rua, uma das janelas da igreja de Santa Clara,
que suspendeu as duas missas semanais por tempo indeterminado, já não tem a luz
acesa que me chamou a atenção o início da quarentena. Está vazia, não há
ninguém lá desde março. O barulho dos caminhões na estrada longe, precisa de um
pouco de concentração para ser percebido, mas está presente como sempre. A
geladeira, essa malvada da madrugada, tremia e ronronava convidativa. Alguns
gatos passeavam pelos jardins e quintais alheios. Não, não vi gato algum, mas
sei que eles estão lá. Gatos são silenciosos, sorrateiros, invisíveis. Os gatos
estarão sempre lá. O cão, que roncava na cama com ela, não demorou a sentir a
minha falta e foi roncar no sofá da sala. Me aproximei e ele entreabriu os
olhos. Rosnou. Ele rosna quando quer carinho. Ele não sabe da janela e dos
gatos. Mas eles estarão sempre lá.
Os
dias estão quentes, o sol nasce mais cedo, mas menos cedo que há um mês. Ela
vai tirar a próxima semana de férias pra ficar com a Lu, que vem de Londres.
Mandou comprar cerveja, vinho e coisa gostosa pra comer. A igreja de frente de
casa sem missa? Faz parte da paróquia da outra igreja, a cem metros dela e com
missas normais. Acho que vou passar a noite na janela. Quem sabe eu vejo um
gato.
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O
diário de hoje é a cópia atualizada do “Diário do fim do mundo – dia 2”, para
comparação entre as duas fazes. Um trabalho de autoplágio que ninguém pode me
culpar nem processar.
Diário de um mundo novo – dia 61
“Depois
de Ferragosto, acabou o verão”, é o que se diz por aqui. Dia 15 de agosto é o
feriado mais esperado do calendário italiano e marca, na cabeça do povo, a
mudança do clima. E não é que às vezes é isso mesmo? Calor em junho, calorão em
julho e inferno do fim de julho até 15 de agosto. Depois os temporais e as
chuvas de granizo refrescam o ar. Até que julho nem está tão quente, o que pode
indicar que o inferno vai chegar mais tarde. Coisa que, quando os
meteorologistas preveem, falha miseravelmente.
Vamos
levando esse calor suportável entre bermudas, chinelos havaianas, bicicletas e
shorts minúsculos com todo o direito do mundo. Se não usar agora, quando?
Muitas mesas ao ar livre, coquetéis, cervejas e bate-papo para tirar o atraso
da quarentena. Se é pra morrer, pelo menos vamos curtir o último verão.
Diário de um mundo novo – dia 62
Para
continuar funcionado dentro da lei, todos os estabelecimentos comerciais devem
exigir o uso de máscaras. Nenhum supermercado permite a entrada sem elas. Nossa
sobrinha – que fugiu da situação estressante no Brasil e está aqui – disse ter
visto gente sem máscara ou usando abaixo do nariz numa loja. Quem usa máscara
abaixo do nariz ou no queixo é quem deixou o cérebro do lado de fora. Ou usa,
ou não usa. Quanto tempo vai demorar pra inventarem de usar máscara na testa como
óculos de sol?
E
aí eu me assusto ao ler que um motorista de ônibus morreu por exigir a máscara,
na França. O mundo é um ovo, é a mesma coisa em qualquer parte dele. Somos os
gafanhotos da Terra.
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O
CBD que estou dando ao Shiva está funcionando que é uma beleza. Depois de
muitos testes, encontrei um que o deixa relaxado sem perder a vivacidade. Ou
seja, não fica drogado. Aproveitei pra morder o Jamaicano como nuca. É só parar
de morder que ele rosna. No final desses dias longos, ele pede pra eu ir fumar
lá fora, deita ao meu lado e, se não faço carinho, dorme com a cabeça sobre meu
pé. “Ele adora ser seu amigo.” Será que ela só descobriu isso agora?
Diário de um mundo novo – dia 63
Vivemos
uma liberdade em vigilância. Procuramos viver o dia-a-dia da maneira mais leve
possível, com um olho nos dados sobre o vírus. Os novos casos confirmados
viajam numa média de cento e cinquenta por dia, com as vítimas sempre abaixo de
vinte. Hoje foram três. É pouco? Não, quando não teremos mais óbitos o número
ainda será alto, considerando todos os que perdemos, mas acabamos aprendendo a
conviver com os números. Os erros ensinaram o caminho e hoje estamos melhor
preparados para uma possível nova onda de contágios. O governo não irá titubear
em tomar todas as medidas em modo muito mais tempestivo do que ocorreu no
início. Salvar vidas é mais importante que salvar a economia. O sistema
sanitário foi ampliado, novos procedimentos, equipamentos, diagnósticos e
tratamentos foram testados e desenvolvidos nesse período. É a dor ensinando a
gemer. A parte mais difícil é sempre o fator humano. A maioria das pessoas não
irá perder tempo debatendo o que é certo ou errado, apenas cumprirá o que for
determinado. O treinamento foi duro, triste e aprendemos. A resistência de
algumas pessoas não será um problema, só preferimos não ter que passar por uma
nova quarentena. E é aí que os resistentes estão pesando. Custa usar máscara
quando sair na cidade? Tenho receio de que algo maior possa aparecer, de
descobrir que nada servirá o sacrifício que passamos com tanta dificuldade.
Vamos
em frente.
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2 comments:
eita que alegria ler essas linhas Allan. mesmo. me dá algum alento pra voltar a escrever, coisa que ando evitando com força.
beijo querido
This was a lovvely blog post
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