Diário de um mundo novo – dia 50
Uma segunda-feira de folga. Era tudo o que eu queria.
Como eu tenho o melhor chefe do mundo, ele nem pestanejou: “tira a
segunda-feira de folga, ué.” E eu tirei. Quer dizer, fui cuidar de uns afazeres
pessoais logo cedinho pra ficar livre logo. À tarde, não deu outra, levei o
Submarino pro rio Trebbia e foi a maior farra. Lá do outro lado do rio tinha um
cachorro que latia, brincando com o dono. Pergunta se ele se importou,
pergunta. O rio era dele, mas tão dele que ignorou completamente o outro bicho.
Nadou e nadou e nadou. Mijou em tudo, bebeu toda a água que levei, bebeu água
do rio, caminhou bebendo água, desafiou a corrente, brincou com uma pedra e
tentou pegar umas trutas. Por fim, sentou dentro d’água e até deitou. Trinta e
seis graus e ele de molho. E pra tirar? Tive que esperar horas até ele cansar.
Entrou no carro e roncou até Piacenza. Agora tá aqui, morgado e de barriga
cheia. Feliz da vida.
A patroa e as crianças vão bem, obrigado.
Diário de um mundo novo – dia 51
Hoje
Eu
Tô
Cansado.
O
Shiva
Também.
Aliás,
Ele
Tá
Destruído.
Nadou
Demais.
Só
Isso.
Buona
Notte.
Diário de um mundo novo – dia 52
“De cem pacientes intubados a zero: a UTI do hospital de Bérgamo, hoje,
é ‘covid-free’”. Notícia boa do jornal La Repubblica.
A cidade abre os braços num alongamento relaxante sob o sol do verão.
Estica suas ruas movimentadas, alça as estátuas até tocar as nuvens, poucas
nuvens brancas, inunda seus monumentos e construções antigas de luz e pássaros.
O resgate da vida se entranha no calçamento, resistindo às chuvas fortes e aos
caminhões varredores, brilha nas bermudas e camisetas coloridas, ecoa nas
risadas, reflete em óculos escuros, dança nas músicas dos carros e cotovelos
nas janelas.
Estamos vivos. Vamos viver o verão, visse?
Diário de um mundo novo – dia 53
Ontem à noite, como sempre faço, fui pro computador escrever o diário
sem saber exatamente o que contar do dia, o que é o normal. Vou escrevendo ao
mesmo tempo em que vou lembrando dos acontecimentos, diálogos, notícias. Nada é
planejado, preparado ou editado.
E lá estava eu diante da tela branca como título “Diário de um mundo
novo – dia 53”, ainda que eu não tenha entendido o que esse tem de novo em
respeito ao velho mundo. Foi naquela hora que ouvi um barulho vindo de dentro
da geladeira. Levantei-me e fui averiguar. Nada, tudo parado, gelado e olhando
pra mim. Decidi ver se havia algo escondido atrás ou embaixo e tirei algumas
coisas pra poder ver melhor.
Bom, aí que já é hoje. Conto com a inteligência de vocês para entenderem
o que aconteceu.
Diário de um mundo novo – dia 54
Sexta-feira de verão digna de se cantar “Azzurro”. Celentano se lamenta
que ela viajou para a praia e ele ficou sozinho na cidade. Sem ela, ele fica recordando
um passado muito longe, vagueando pelas tardes longas demais, azuis demais.
Assim são as tardes italianas no verão. Longas demais e azuis demais. E eu
gosto.
São dias de notícias boas, de acontecimentos positivos, de mudanças
sonhadas. Começa uma fase positiva, muito positiva. A Bia vai acabar nos
acostumando mal, vindo dois fins de semana seguidos pra casa. O Sapequento vai
encher o coração dela de remorso na hora de ir embora. Lu, precisamos da Lu
aqui. E urgente.
Diário de um mundo novo – dia 55
Nas primeiras semanas da quarentena, aquelas duras, quando pouco mais
que as sirenes das ambulâncias se ouviam, a sensação era de viver numa cidade
abandonada. Raras pessoas nas ruas, nenhum ônibus, janelas trancadas – a ideia
de que as doenças se espalham pelo vento é parte do DNA desse povo – e nem
mesmo um bater de porta, televisão ligada, conversas alheias, nada.
Pois foi naquele período que desenvolvi um novo hábito. Quando estou
sozinho e tranquilo, normalmente fumando o charuto da noite clara no balcão com
o Shiva cochilando ao meu lado, fecho os olhos e me concentro no barulho em
volta, procurando identificar e separar cada um. Pode ser um trem lá longe, o
ranger do portão do convento, os carros na rua, pessoas conversando, as
gaivotas que passam em bandos e o que mais estiver no ar. Descobri que é
possível selecionar um som no meio da agitação da cidade e me concentrar nele,
só nele. É uma experiência relaxante e curiosa, nunca igual à anterior. E é
assim que vou terminando esse sábado, relaxado e cada vez mais curioso.
Diário de um mundo novo – dia 56
Quando o Sapeco tá inspirado é difícil domar. Se estou fumando no balcão
e ele quer mais atenção, eu paro, faço massagem, passo escova no pelo, faço
carinho e dou caixa de papelão pra ele destruir e espalhar pela casa. Nem
sempre é suficiente. E aí ele vai latir pra Eloá pra avisar que é a vez dela
(detalhe: nessa hora ele já passou algumas horas sendo acariciado por ela no
sofá). E é nesse caso em que ele vai pra casinha pra parar de latir. Às vezes
acaba cochilando e nem percebe que ela já o soltou. Hoje teve castigo na
casinha. Dez minutos pra ele parecem uma eternidade, sai de lá tranquilinho.
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Quando não aguento mais
tanta notícia ruim nem o clima negativo que se espalha pelas redes sociais, dou
uma pescada em algum vídeo do Ariano Suassuna. Eu o considero uma das mentes
mais brilhantes que o país teve a graça de ver nascer e florescer. Sua arte não
há tempo. Rio muito com ele. Me fascina como a simplicidade dele fala fundo de
coisas sérias, de modo divertido. Gosto de ouvi-lo dizer que se inspirou em
três cordéis para escrever o “Auto da Compadecida”. Quem, além dele, teria tanta
humildade e simplicidade?
Pausa. Suassuna era pra
contar que eu estava vagando em busca de divertimento inteligente, quando
lembrei que, uns dois ou três séculos atrás, eu não saia pra ir à praia antes
de assistir o Globo Rural e o Som Brasil. Sabe como é, domingo é dia de
preguiça, nada de horário marcado, a cerveja e o acarajé, o peixe frito e a
carne de sol na praia estariam sempre lá e eu simplesmente adorava os dois
programas. Gostava, principalmente, do Rolando Boldrin, que apresentava o Som
Brasil. Depois a vida seguiu e alguns hábitos foram se perdendo, programas
mudaram e o tempo me distanciou deles. Imaginem a minha surpresa ao descobrir,
hoje, que o Rolando Boldrin ainda tem um programa na TV Cultura, o Sr. Brasil.
Saudável reconciliação.
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