Monday, July 13, 2020

Diário de um mundo novo - parte 8


Diário de um mundo novo – dia 50
Uma segunda-feira de folga. Era tudo o que eu queria.
Como eu tenho o melhor chefe do mundo, ele nem pestanejou: “tira a segunda-feira de folga, ué.” E eu tirei. Quer dizer, fui cuidar de uns afazeres pessoais logo cedinho pra ficar livre logo. À tarde, não deu outra, levei o Submarino pro rio Trebbia e foi a maior farra. Lá do outro lado do rio tinha um cachorro que latia, brincando com o dono. Pergunta se ele se importou, pergunta. O rio era dele, mas tão dele que ignorou completamente o outro bicho. Nadou e nadou e nadou. Mijou em tudo, bebeu toda a água que levei, bebeu água do rio, caminhou bebendo água, desafiou a corrente, brincou com uma pedra e tentou pegar umas trutas. Por fim, sentou dentro d’água e até deitou. Trinta e seis graus e ele de molho. E pra tirar? Tive que esperar horas até ele cansar. Entrou no carro e roncou até Piacenza. Agora tá aqui, morgado e de barriga cheia. Feliz da vida.

A patroa e as crianças vão bem, obrigado.

Diário de um mundo novo – dia 51
Hoje
Eu
Cansado.
O
Shiva
Também.
Aliás,
Ele
Destruído.
Nadou
Demais.
Isso.
Buona
Notte.

Diário de um mundo novo – dia 52
“De cem pacientes intubados a zero: a UTI do hospital de Bérgamo, hoje, é ‘covid-free’”. Notícia boa do jornal La Repubblica.

A cidade abre os braços num alongamento relaxante sob o sol do verão. Estica suas ruas movimentadas, alça as estátuas até tocar as nuvens, poucas nuvens brancas, inunda seus monumentos e construções antigas de luz e pássaros. O resgate da vida se entranha no calçamento, resistindo às chuvas fortes e aos caminhões varredores, brilha nas bermudas e camisetas coloridas, ecoa nas risadas, reflete em óculos escuros, dança nas músicas dos carros e cotovelos nas janelas.

Estamos vivos. Vamos viver o verão, visse?

Diário de um mundo novo – dia 53
Ontem à noite, como sempre faço, fui pro computador escrever o diário sem saber exatamente o que contar do dia, o que é o normal. Vou escrevendo ao mesmo tempo em que vou lembrando dos acontecimentos, diálogos, notícias. Nada é planejado, preparado ou editado.
E lá estava eu diante da tela branca como título “Diário de um mundo novo – dia 53”, ainda que eu não tenha entendido o que esse tem de novo em respeito ao velho mundo. Foi naquela hora que ouvi um barulho vindo de dentro da geladeira. Levantei-me e fui averiguar. Nada, tudo parado, gelado e olhando pra mim. Decidi ver se havia algo escondido atrás ou embaixo e tirei algumas coisas pra poder ver melhor.
Bom, aí que já é hoje. Conto com a inteligência de vocês para entenderem o que aconteceu.

Diário de um mundo novo – dia 54
Sexta-feira de verão digna de se cantar “Azzurro”. Celentano se lamenta que ela viajou para a praia e ele ficou sozinho na cidade. Sem ela, ele fica recordando um passado muito longe, vagueando pelas tardes longas demais, azuis demais. Assim são as tardes italianas no verão. Longas demais e azuis demais. E eu gosto.

São dias de notícias boas, de acontecimentos positivos, de mudanças sonhadas. Começa uma fase positiva, muito positiva. A Bia vai acabar nos acostumando mal, vindo dois fins de semana seguidos pra casa. O Sapequento vai encher o coração dela de remorso na hora de ir embora. Lu, precisamos da Lu aqui. E urgente.

Diário de um mundo novo – dia 55
Nas primeiras semanas da quarentena, aquelas duras, quando pouco mais que as sirenes das ambulâncias se ouviam, a sensação era de viver numa cidade abandonada. Raras pessoas nas ruas, nenhum ônibus, janelas trancadas – a ideia de que as doenças se espalham pelo vento é parte do DNA desse povo – e nem mesmo um bater de porta, televisão ligada, conversas alheias, nada.

Pois foi naquele período que desenvolvi um novo hábito. Quando estou sozinho e tranquilo, normalmente fumando o charuto da noite clara no balcão com o Shiva cochilando ao meu lado, fecho os olhos e me concentro no barulho em volta, procurando identificar e separar cada um. Pode ser um trem lá longe, o ranger do portão do convento, os carros na rua, pessoas conversando, as gaivotas que passam em bandos e o que mais estiver no ar. Descobri que é possível selecionar um som no meio da agitação da cidade e me concentrar nele, só nele. É uma experiência relaxante e curiosa, nunca igual à anterior. E é assim que vou terminando esse sábado, relaxado e cada vez mais curioso.

Diário de um mundo novo – dia 56

Quando o Sapeco tá inspirado é difícil domar. Se estou fumando no balcão e ele quer mais atenção, eu paro, faço massagem, passo escova no pelo, faço carinho e dou caixa de papelão pra ele destruir e espalhar pela casa. Nem sempre é suficiente. E aí ele vai latir pra Eloá pra avisar que é a vez dela (detalhe: nessa hora ele já passou algumas horas sendo acariciado por ela no sofá). E é nesse caso em que ele vai pra casinha pra parar de latir. Às vezes acaba cochilando e nem percebe que ela já o soltou. Hoje teve castigo na casinha. Dez minutos pra ele parecem uma eternidade, sai de lá tranquilinho.
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Quando não aguento mais tanta notícia ruim nem o clima negativo que se espalha pelas redes sociais, dou uma pescada em algum vídeo do Ariano Suassuna. Eu o considero uma das mentes mais brilhantes que o país teve a graça de ver nascer e florescer. Sua arte não há tempo. Rio muito com ele. Me fascina como a simplicidade dele fala fundo de coisas sérias, de modo divertido. Gosto de ouvi-lo dizer que se inspirou em três cordéis para escrever o “Auto da Compadecida”. Quem, além dele, teria tanta humildade e simplicidade?

Pausa. Suassuna era pra contar que eu estava vagando em busca de divertimento inteligente, quando lembrei que, uns dois ou três séculos atrás, eu não saia pra ir à praia antes de assistir o Globo Rural e o Som Brasil. Sabe como é, domingo é dia de preguiça, nada de horário marcado, a cerveja e o acarajé, o peixe frito e a carne de sol na praia estariam sempre lá e eu simplesmente adorava os dois programas. Gostava, principalmente, do Rolando Boldrin, que apresentava o Som Brasil. Depois a vida seguiu e alguns hábitos foram se perdendo, programas mudaram e o tempo me distanciou deles. Imaginem a minha surpresa ao descobrir, hoje, que o Rolando Boldrin ainda tem um programa na TV Cultura, o Sr. Brasil. Saudável reconciliação.

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