Diário de um mundo novo – dia 43
Com a pandemia e a suspenção das atividades esportivas, os italianos não
puderam assistir aos jogos dos diversos campeonatos de futebol, que normalmente
estariam terminando nessa época. Com isso, muitos dos torcedores descobriram
que conseguem viver sem partidas pela tv, mesas redondas, jornais inflamando
cada jogo, declarações de técnicos e jogadores. Enfim, tudo o que faz parte do
circo da indústria do tão amado futebol. O resultado dessa desintoxicação é a
redução do interesse e do ardor com que o país acompanhava cada disputa. Não
por acaso, muita gente está cancelando, ou já cancelou, os contratos da tv por
assinatura. Isso é bom? É ruim? Não sei dizer, mas sei que o povo está usando o
tempo para outras atividades.
Anotem aí: é verão, é verão, é verão. O calor abafado da Planície Padana
que o diga.
Depois de um longuíssimo dia de trabalho, de passear com o Coiso, de
comer mozzarella de búfala, de tomar cerveja trincando de gelada e de fumar um
belo dum charuto, tomei aquela ducha fria. Que sensação boa.
Preciso mandar colocar o vidro na porta do quarto, está na hora de ligar
o ar-condicionado.
Amém.
Diário de um mundo novo – dia 44
Calor?
Reclame aqui.
X’eu conta uma coisa. Eu não gosto de
trabalhar, eu gosto é de receber dinheiro. Trabalhar cansa. Hoje tive que
trocar a máscara umas dez vezes. O calor tá tão diabólico que a máscara ficava
ensopada de suor.
Já não existe nenhum camper, moto
home, trailer, caravana e o diabo a quatro pra alugar nesse verão. Todo mundo
quer garantir que as férias não se transformarão num pesadelo. E os
agri-turismos estão vendendo quentinhas pra sobreviver. Vai ter briga com
restaurantes.
O Acalorado está bem, obrigado.
— Vou trabalhar até tarde hoje.
— Aonde?
— Num cliente.
— Fazendo o quê?
— Ué! O que eu sempre faço, né? Restaurando os bancos de um carro.
— Você vai é pra gandaia!
— Gandaia que termina às sete, sete e meia da noite?
— Cê num falou que ia voltar tarde?
— E voltar depois das sete num é tarde não?
— Mas isso acontece, estou acostumada.
— Vai entender... Quando não aviso, reclama. Se aviso, vou pra gandaia.
— Ahá! Viu que você vai pra gandaia?
Diário de um mundo novo – dia 45
Tô achando que essa disgrama tá balançando. O balcão dos fundos é paralelo
à parede da sala e compreende a porta da cozinha, a janela do banheiro e a porta
do quarto que dá pros fundos; o Sol, nasce no canto da cozinha e se põe na
parede lateral do quarto, nessa época, pois no inverno mal chega na segunda
janela da sala, muito antes da parede do quarto. Percebi que o poente mudou
ligeiramente de lugar, quase chega a atingir o balcão no quanto do quarto dos
fundos. Tem uns graus a mais que os anos anteriores. Mais um pouco e vai nascer
e se pôr no mesmo lugar.
Cinco anos atrás, quando tivemos a pandemia do Covid-19, imaginávamos
que teríamos que viver zanos e zanos e zanos usando máscaras. Lembram? Hoje,
longe daquela situação angustiante, mal recordamos o que é uma máscara.
Curso de futilidades úteis e de práticas teóricas do tio Allan – Como
conseguir guardar dinheiro
Pra você conseguir guardar dinheiro, precisa – primeiro – ter dinheiro
Ah ah ah ah ah!
Se você não tiver dinheiro, é preciso ganhar dinheiro
Ah ah ah ah ah ah!
Trabalhar é somente um dos modos de
ganhar dinheiro, não o mais fácil nem o mais rápido
Ah ah ah ah ah ah ah!
Se você for honesto, repense o
projeto de guardar dinheiro
Ah ah ah ah ah ah ah ah!
Uma vez que você conseguir ganhar,
roubar, herdar, encontrar, fabricar ou receber dinheiro
Ah ah ah ah ah ah ah ah ah!
A única coisa que precisa fazer pra
conseguir guardar dinheiro
Ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah!
É não gastar
RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ!
Diário de um mundo novo – dia 46
Tenho percebido, em mim e nos outros, o pouco interesse pelo que antes
parecia essencial. O período de quarentena – que prefiro ao termo “lock down” –
ajudou a selecionar o que importa do que apenas tomava tempo. Noutro dia citei
o cancelamento dos contratos por tv por assinatura. E não foram poucos. Muita
gente descobriu como nossos avós se divertiam ou faziam as coisas. Prestar
atenção nas coisas simples e no que realmente nos dá prazer. Queimei muito mais
charutos, li mais, consertei algumas coisas que prometia consertar a cada seis
meses e gastei menos dinheiro. Tá, não tinha mesmo como gastar. O bacana dessa
história é que aprendi a me contentar com menos. E você, o que está aprendendo?
Hoje fiz uma coisa que não considero correto, exceto (gostava do
excepto) num caso como esse. Na saída do supermercado, vi um homem entrando com
a esposa e um filho pequeno para fazer compras. Dentro do carro, a pequena
cachorrinha, dois dedos de janela aberta, embaixo do Sol e de um calor de
trinta e um graus, a três metros das muitas vagas livres na sombra. Não tive
dúvida, peguei o celular e chamei a polícia, dei a placa do carro, modelo, cor
e fiquei esperando. Dois minutos depois a viatura estacionou. Conferiram o
carro com a cadelinha, e um deles entrou no supermercado. Saiu de lá dando
esporro na família envergonhada, que tentava se justificar. A cada desculpa,
ouviam novas broncas. Levara multa por não respeitar o decreto regional que
manda entrar apenas uma pessoa por núcleo familiar, por mal tratamento de
animal, por não terem uma guia e outra por não terem uma focinheira. Sim, foram
quatro multas salgadas. E ainda correm o risco de quarentena obrigatória. Mesmo
que tivessem deixado o carro na sombra, eu teria agido da mesma forma. Num dia
como hoje, o interior dos carros é um forno.
O Shiva teria me aplaudido.
Agora tá caindo o maior toró. Vou lá fora refrescar e fumar um charuto.
Diário de um mundo novo – dia 47
Ontem à noite aproveitei a chuva e fui fumar lá fora. Vento fresco,
refresco. Presenciei um fenômeno atmosférico que nunca tinha vivido. Começou a
trovoar e não parou por uma meia hora. Parecia o barulho de um avião ecoando
nas nuvens. O barulho era ininterrupto. Claro que deveria estar acontecendo uma
tempestade de raios lá em cima. Por um momento achei que as nuvens se abririam
e delas sairia um gigantesco disco voador. Achei maravilhoso e assustador.
Enquanto isso, láááá do outro lado do mundo, minha querida amiga Lucia Malla
planejava uma comemoração com vinho de manga. Por favor, André, para. Só isso.
Os números de óbitos e novos infectados pelo vírus diminuem a cada dia.
O único problema é o povo continuar achando que tudo passou. Houve uma mutação
e o vírus agora é mais contagioso, porém, menos difuso. É como se tivéssemos
combatido um incêndio imenso e restaram apenas algumas brasas que ainda não
foram extinguidas. Não se pode bobear, ou o fogo volta.
O vizinho do terceiro andar vendeu o apartamento em fevereiro e mudou-se
em abril, em plena quarentena. Os novos proprietários colocaram um aviso no
elevador, informando que fariam uma reforma e se desculparam antecipadamente
pelo transtorno que isso poderia causar aos outros moradores. A reforma começou
faz três semanas e, sim, fizeram um pouco de barulho, mas sempre dentro do
horário permitido. A vizinha do terceiro andar (ah, a vizinha do terceiro
andar...!) já implicou com os operários, com o barulho, com o caminhão deles,
com o falatório deles quando chegam, às oito, oito e meia da manhã – ela acorda
lá pelas sete, quando não bate no chão com a bengala/tamanco/bule de café às
seis, reclamando da música que só ela ouve – em meio ao rumor da cidade. Essa
semana ela deixou um bilhete sobre o cartaz atencioso dos novos moradores,
ordenando que eles restaurem e pintem o elevador, quando terminarem. O elevador
está como sempre esteve, os operários o cobrem quando devem transportar algo.
Ah, a vizinha do terceiro andar...!
Diário de um mundo novo – dia 48
“A Biba chegou! A Biba chegou! A Biba chegou!” É o que ele diria se
soubesse falar, ontem à noite. A felicidade do Shiva quando a Bia está em casa
é um espetáculo, ele a adora. Fica num alto astral palpável e contagiante. Bem,
ela é contagiante. A contrapartida é o mau humor dele quando ela vai embora.
Passa uns dois dias ofendido por ter sido abandonado. Ofendido.
Ele recebeu outras duas visitas que nem esperava mais, as primeiras
tutoras dele, tutoras da Dafne, mãe do Shiva. Foram elas que nos descobriram e
já deveríamos ter-nos encontrado em março. Encontro que precisou ser adiado por
causa da pandemia, com ambas as cidades em situação caótica. Vieram hoje,
emoções fortes e cenas de amor explícito. Mãe e filha são pessoas simples,
simpáticas e muito agradáveis. Infelizmente a mamãe Dafne não pôde vir, está
enfrentando problemas de saúde e todo cuidado é pouco. De qualquer forma, elas
voltarão. A emoção e o bate-papo amigo nos fez esquecer de tirar uma foto
sequer. E iremos conhecer a mãe do Pilantrão em breve. Muito amor envolvido.
Apesar dos milhões de beijinhos e cafunés exclusivos, houve um momento
em que bateu uma paranoia, ele se enfiou na casinha e não saiu mais de lá. Coisa
que nunca fez quando tem visita em casa. Ele costuma deitar no colo, pedir
carinho na barriga, chamar a atenção, mas nunca ir pro cafofo dele, onde se
sente seguro. Ficava com olhar de medo de o levarem embora. Ora, querido, se
durante a quarentena nós aprendemos a precisar de menos, também confirmamos que
você é aquele mínimo do mínimo que necessitamos. Ninguém vai te levar embora
porque o seu embora já é aqui.
Bianca, kibe, coxinha e temperatura amena, finalmente. Tarde deliciosa.
Diário de um mundo novo – dia 49
Ontem, 4 de julho, foi o dia do padroeiro da cidade, Sant’Antonino. Ao
contrário dos anos anteriores, a comemoração foi apenas na memória dos
habitantes, todas as manifestações estão canceladas. As diversas sagras nas
cidades da província e vilarejos terão que esperar até o próximo ano. Isso
significa não apenas a ruptura de tradições seculares, é, também, um golpe a
mais na economia local. Assim como as “Sextas-feiras Piacentinas” que enchem a
cidade por cinco semanas com centenas de eventos culturais.
Essa é a nova realidade. A administração local não mede esforços para
evitar uma nova onda de contaminações, de um lado e muita gente fingindo que a
pandemia não existe, lotando os espaços públicos e os rios da região nesse
verão calorento, sem respeitar as regras de distanciamento, uso de máscaras e
etc.
O campeonato de futebol voltou, mas já não faz falar de si como antes. É
melancólico ver estádios vazios, claques da tv que imitam o barulho do público
e a torcida virtual adicionada às imagens. The show must go on.
As banheiras flutuantes repletas de imigrantes continuam a se arriscar
no Mediterrâneo. Navios de ONGs estão repletos de desesperados em busca de uma
vida digna, fugindo de guerras, fome, condições precárias e perseguições. Quantas
outras vidas se perderam antes da chegada de ajuda? A maioria dos mortos,
vítimas de criminosos que cobram caro e prometem vida boa na Europa, nunca saiu
numa foto, não foi notícia e sequer entrou nas estatísticas. Morreu ao embarcar
em barcos velhos e superlotados, porque a alternativa seria morrer pelas mãos
de quem lhe vendeu a passagem. Teme-se uma nova onda trazida por essas pessoas,
mas o importante é que a Fórmula 1 também voltou. The show must go on.
Você aí no Brasil, fique em casa!
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