Diário de um mundo novo – dia 29
Tem jeito não, esse tempo amalucou de vez. O clima da Planície Padana,
sempre úmido e sem vento, até que ajuda muito a piorar qualquer dia, mas tem
coisas que não dependem dele. A culpa de tudo o que estamos vivendo é nossa. Os
xapiri dos yanomami devem estar dizendo: “Nós avisamos!” E a visaram mesmo.
Verão e outono num só dia é de lascar. Ok, a essa altura do dia (noite, na
verdade) eu prefiro o outono pra dormir. Mas o verão amanheceu tão bonito hoje.
A umidade é que está terrível. Vida e morte Shivarina.
O cliente me mostra um banco de carro que deveria ser de couro. Não
consigo entender como ele fazia pra dirigir sentado sobre ferros.
— Allan,
você faz milagre?
— Claro
que faço, mas o preço é infernal.
Quase
perguntei se ele também tinha um cachorro chamado Shiva. Quase. Indiquei um
estofador e caí fora. Eu sou restaurador, não fabricante.
Verde
maçã. Não me perguntem. Se ela não sabe, eu menos ainda.
Diário de um mundo novo – dia
30
No fim de 2017 contratamos uma
educadora cinófila para o Exterminador do Presente. Foi logo depois que o levei
ao Nico, um educador especializado em pit bulls muito competente que,
infelizmente, vive e trabalha a duzentos quilômetros. Não dá pra fazer
quatrocentos quilômetros três vezes por semana. Parêntese: (quando fomos no
centro de treinamento e educação do Nico, passamos duas horas interagindo com
outras pessoas, caminhando livremente no meio de vários estímulos como
brinquedos, petiscos, panos com cheiros de outros cães que o Exterminator
ignorou completamente. Só usufruiu da água, mas na época ele não bebia,
aspirava desesperadamente. Em duas ocasiões a atenção dele deixou de se
concentrar em mim e no homem que caminhava ao meu lado conversando comigo, que
o Dominator insistia em manter afastado, passando continuamente entre nós dois.
A primeira foi quando a mulher que estava dentro do campo desde o início,
imóvel, começou a caminhar em nossa direção atendendo a indicação do Nico, que
filmava tudo do lado de fora do campo. Ele passou a controlar que nenhum dos
dois se aproximasse muito. A segunda vez foi quando o Nico foi buscar uma fêmea
treinada para esse fim e se aproximou do alambrado. O ódio assassino foi tão
forte que a experiência não pode durar mais de um minuto. Quando ele se acalmou
e demos uma longa caminhada depois que o fiz correr um pouco, fui orientado a
levá-lo para o carro por cinco minutos, pro Nico me dar algumas instruções.
Claro que todos os cuidados foram tomados e o coloquei dentro da caixa de
transporte super reforçada e apropriada para cães grandes. Claro, também, que
ele não gostou e começou a latir, mas eu estava ali, uns vinte metros do carro
numa zona deserta naquele início de noite do fim do outono. O bate-papo foi
rápido e em menos dos cinco minutos prometidos eu estava de volta ao carro.
Pois o Destroyer tinha pulverizado o teto do carro, junto com airbag e
guarnições das portas. Fios pendurados e pedaços do teto espalhados por toda a
parte. Fecha parêntese.) Conhecendo o histórico do animal e tendo conversado
longamente com o Nico, a educadora daqui chegou a sugerir que experimentássemos
trancar ele dentro da casinha que fica na sala. Ele já estava acostumado com o
esconderijo e corria pra lá quando brigávamos com ele ou se o aspirador de pó
era ligado. Cansou de dormir à tarde na casinha, sempre cheio dos restos de
caixas de papelão e papel que rouba, ou objetos de plástico que adora mastigar
– e que não deixamos pois ele mastiga e engole. A Eloá resolveu testar e o
deixou trancado por uma meia hora enquanto saiu pra comprar alguma coisa. Não
tem como destruir a casinha de fibra de vidro, com uma única parte aberta na
frente com grade de ferro. A Eloá voltou e o Demolisher tinha começado a comer
a beirada do bat-esconderijo. Nunca mais trancamos.
Hoje a sobrevivente casinha
vive feliz no canto da sala, pronta a acolhê-lo quando lhe dá na telha. Só uma
das duas grandes almofadas sobreviveu – o que é uma vitória e tanto – e a
bagunça impera lá dentro. Basta limpar que esse descendente de hamster procura
alguma caixinha e papel para decorá-la. Final: do pedaço de fibra de vidro que
ele mastigou, nem sinal. E a educadora foi abandonada à própria sorte.
Diário de um mundo novo – dia 31
O mês de maio de 2020 será lembrado pelo início da volta à normalidade e
pelo calor. Junho, por sua vez, está sendo o mês da chuva e da normalidade que
ninguém estava preparado. Estamos no décimo sétimo dia do mês e dezessete dias
de chuva. Fabricantes de máscaras e de guarda-chuvas estão enchendo os bolsos.
Andar pela rua sem máscara está virando moda e sinônimo de rebeldia, como um
dia foram as tatuagens. Como não entendo de modas, uso a minha máscara e não
tenho tatuagens. Entrar em qualquer comércio de máscara faz parte dessa nova
realidade. A quantidade de pessoas desmascaradas pelas ruas ainda é menor que
com máscara, mas vem aumentando.
Das pessoas que moram nessa casa, tem alguém – que por questões de
privacidade não irei nominar – que antes de ir dormir muda de canal. Não que eu
me importe, normalmente estou o computador. Normalmente. Ou seja, ela (a
pessoa) vai dormir mas quer que a tv fique num canal que ela (pessoa) goste.
Era só isso mesmo.
Então que o dia amanheceu chovendo,
ameaçando um dia triste e molhado. Por volta da uma da tarde, precisei
atravessar a rua correndo, assim que saí de casa, para evitar queimar umas
patinhas brancas. A cada passo o asfalto fazia fsssss! Era a pele das patas
dele grudando no asfalto de lava. A sauna pública grátis não fazia sucesso, mas
já que era grátis... E as pessoas boquejavam como peixes fora do aquário (e de
todos os outros signos). Mais tarde o dia se transformou numa manta negra como
a alma do vampiro zumbi numa noite sem lua. Ameaçava a Terra, o céu e o
infinito. Algumas gentes usavam as máscaras inúteis como guarda-chuvas idem.
Por enquanto a Terra resiste, o céu tá invisível e o infinito me preocupa.
Diário de um mundo novo – dia 32
A cada dia a sensação de que estamos esquecendo a quarentena só aumenta.
Somos animais sociáveis, a proximidade do verão causa euforia e a alegria
irresponsável da juventude vai aproximando as pessoas, nesta fase que deveria
ser de máxima precaução. Grupos de garotos nas calçadas dos bares e
lanchonetes, sem máscara, são cada vez cenas comuns. Temo por uma segunda onda
de contágios tão grave quanto a primeira. Tomara que eu me engane.
Enquanto
isso, uma simples consulta a um dermatologista não pode ser marcada. Todas as
consultas, exames e cirurgias agendadas antes da pandemia estão sendo feitas
agora. E são muitas. Essa é a prioridade, a menos que haja alguma urgência. Eu
tenho uma urgência econômica que foi negada pelo serviço sanitário sem a menor
cerimônia. Acho que faltam especialistas nessa área. Era a minha última
esperança, o gerente do banco está de mal comigo. — Allan, seu título venceu.
— Que legal! E quem chegou em segundo?
— Não se
faça de engraçadinho, nós precisamos do dinheiro!
— Cara, se
você que é o banco não tem, imagina eu.
Ter amigos
muito atarefados dá nisso. Tô doido pra ouvir a música nova do Jambow Jane. E
eles têm que escolher entre cento e cinquenta músicas.
Notícias,
notícias, notícias. O que os jornais vão publicar quando o mundo acabar? “Se
você estiver lendo essa manchete, saiba que a humanidade se ferrou.”
Pandemia
Alegria
Tô à toa
Tô na boa
Diário de um mundo novo – dia 33
Entre uma chuva e uma tempestade, o sol brilha. Abelhas (ou seriam vespas?)
devoram o que sobrou do pássaro comido por um gato ou gaivota. A vida segue,
apesar da vida. Sinos de igrejas marcam o tempo, convidam os vivos a saudar os
mortos, criam o ritmo das pulsações, corações e rezas. Alguém partiu, outro
alguém chegou. O alternar dos trens imitam o destino.
O pica-pau voou, não volta mais. Não gostou do frenesi da cidade, do
trabalho dos guindastes – “tem sempre um guindaste”, disse um amigo – nem do
falatório das gentes nos carros. Não gostou das gentes.
As bicicletas são donas das ruas, luxo das cidades pequenas ou
preparadas para elas. Tudo cheira a primavera, tudo perfuma. Tampouco os
padeiros estão isentos, aromatizando as madrugadas.
Estamos aguardando a cama nova, espero que ele goste. É muito mais resistente
da que ele destruiu, cavando buracos em chãos de terra imaginários. Ele mesmo é
fruto de um mundo imaginário, um mundo livre de pandemias e preocupações. Rosna
e abana a cauda. Brincalhão e feliz. Os cães, longe das correntes, são felizes.
Às vezes basta tão pouco. E às vezes é tudo o que resta.
Diário de um mundo novo – dia 34
Té quinfim um dia de sol, somente sol. Italiano é meteopático. Quando
chove eu quase não trabalho. E no primeiro dia de sol todo mundo quer o serviço
pra ontem. Mas ontem choveu, né?, num dá.
A vida aqui voltou ao normal. Aquele normal que todo mundo jurou que não
existiria mais. O número de vítimas fatais do Covid-19 voltou a aumentar.
Pouco, mas aumentou. Assim como os pacientes em UTI. O comércio continua com as
restrições decretadas, medição da temperatura, luvas, álcool gel, máscaras e
distância. A rua, ao contrário, tem cada vez mais gente tranquila, fingindo que
ninguém perdeu amigos, parentes, colegas. E acham que isso é normal?
A Lu
volta a trabalhar na segunda-feira. Vai com outro gerente jogar no ralo os
barris de chopp vencidos (todos) que as fábricas não aceitam de volta. É a
orientação da administração local. Para minimizar o impacto, existem horários
específicos para cada área da cidade e um limite de barris por dia. Noite, no
caso da Lu e do colega dela. Das 20h00 às 6h00. Imagine a cena: quacquilhões de
ratos bêbados nos esgotos e outros tantos peixes lá na ponta dos esgotos
ingerindo ratos com cerveja, mortos afogados de bebedeira. Uma nova pandemia
etílica vai invadir o hemisfério norte.
Coisa boa
da noite: ir tomar uma Guinness na nossa cervejaria preferida, depois de quatro
meses (sim, tanto a cervejaria como nós, respeitamos todas as orientações).
Hic!
—
Diário de um mundo novo – dia 35
Sonhei que era dono do mundo.
A primeira coisa que fiz foi distribuir uma gaiola em cada casa. As
gaiolas ficariam abertas e vazias, para que todo mundo se lembrasse do valor da
liberdade. Aquários deixaram de existir, todos os bichos viveriam soltos pra
sempre. Os cães eram de todos e todos alimentavam e davam abrigos quando
precisassem. Era permitido brincar, acariciar e dançar com os animais, se eles
assim quisessem.
Não existiam mais LGTBQZPQRSAVWY+++. Nem pretos, brancos, orientais,
mestiços, analfabetos, gordos, feios, burros. Todas as etiquetas foram
abolidas, éramos todos tão somente e apenas humanos. Assim, em minúsculo.
Todos os dias eram sábado, chega com essa história de sete dias!
Tínhamos a eternidade pra passear, andar de bicicleta, conversar e sentar nas
praças. As estações eram bem diferenciadas, com outonos donos da neblina,
invernos com muita neve onde tem que nevar, primaveras floridas e verões de
férias. Chovia de noite e em algumas tardes, porque caminhar na chuva é bom.
Não havia fronteiras nem países, apenas o mundo. Trens eram o meio de
transporte, pra viajar observando a paisagem, a gente e o horizonte. Cinemas,
galerias de arte, shows, teatro, tudo era de graça. Cada um fazia o que gosta.
O dinheiro foi abolido, era inútil trabalhar. Marketing, produtos, novos
produtos, mais produtos inventados para consumo e embalagens descartáveis
perderam o sentido e caíram em desuso.
Não tinha governo nem partidos políticos. A sabedoria das avós era
suficiente para nos guiar. A saúde vinha das matas e do conhecimento dos pajés.
Ninguém adoecia.
No final da tarde, as pessoas sentavam nas varandas para tomar chá, rir,
conversar e observar as gaiolas vazias.
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Domingo ensolarado e tarde longa.
Vou dormir e tentar sonhar de novo. Tô apostando que o Shiva vai
aparecer no sonho e mijar em tudo.
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