Diário de um mundo novo – dia 22
Essa foi a segunda-feira mais segunda-feira desde o início da pandemia.
Até engarrafamento teve. Nada que se compare a uma XXIII de Maio, em são Paulo,
ou mesmo o anel viário de Bolonha, mas levar dez minutos para chegar à
rotatória de uma das saídas da cidade (Piazzale Torino), era algo comum até o
início de março. Claro que depois o tráfego é normal, só que perdemos o costume
desses pequenos inconvenientes.
Muita gente pelas ruas, algumas, sem máscara. Parece que a vida voltou
ao normal, ou, pelo menos, é a impressão que todos preferimos passar. O cidadão
que tenta explicar ao jovem, em vão, que a máscara que ele não está usando não
é para o proteger do vírus, mas para proteger os outros, caso ele seja um
portador assintomático. Bem que podiam fazer umas máscaras com barba, já que
tem gente usando no queixo. Sem falar na moda de usar a máscara no cotovelo,
que deve servir para quando alguém tosse ou espirra na parte de dentro do
braço. Sei lá. A polícia deveria sair com um vidro de óleo de fígado de
bacalhau. Esse seria o castigo para quem não usa ou o faz de modo errado. “Abra
a boca, senhora. Da próxima vez serão duas colheres de multa.” Claro que é mais
fácil encontrar um estrangeiro que um italiano cumprindo todas as regras. O
chinês do restaurante toma todas as medidas – e são muitas – e até reduziu à
metade o número de mesas. Bolinho primavera sem cuspe e mãos lavadas.
Chegou o extrato do banco. Pelo volume do envelope deve ter uma Bíblia
lá dentro. Joguei na sacola de coleta diferenciada para papel sem abrir. “Deus
me livre!”
Diário de um mundo novo – dia 23
Tango, tango, tango morena. É de carrapicho, vou jogar o Shiva na lata
do lixo.
Alguém aí, por favor, liga lá e diz que já tá bom, pode parar de chover.
E avisa que essa foi a última vez que suportei chuva de granizo.
O rio Trebbia – o rio daqui da província que serve de praia pruma
multidão no verão, inclusive gente que vem de fora, pois tem “o vale mais
bonito do mundo”, segundo Hemingway – tá cheião. A água ganhou uma cor escura e
muito estranha. Gostei não. O Nure – que não é um rio perene e está mais pra
riacho – ao contrário, está seco. Ele é muito importante para o vale que o
cerca, é usado para irrigar as muitas plantações, principalmente de tomate.
Deve estar seco por isso.
Nunca vi um cão tão apaixonado pelo veterinário quanto o nosso. Faz a
maior festa, brinca, pula, beija, corre e deixa o Filippo fazer o que for. Meio
com medo, mas deixa. Sim, o veterinário o atende em casa. Ou vocês queriam que
o Demolidor destruísse a clínica com os bichos dentro e a merda toda?
Outra coisa que me deixa perplexo é o medo dele de trovoadas. Noutro
dia, tremia de medo dentro de casa. Agora mesmo acabamos de voltar da nossa
voltinha noturna recheada de trovões. É como se o danado fosse surdo, nenhuma
reação. Por que tem medo dentro de casa e não tem quando está fora?
Tango, tango, tango morena. É de carrapicho, vou tirar o Shiva da lata
do lixo.
Pra terminar, vou aproveitar que hoje é quarta-feira pra contar uma
coisa muito importante. Ah, hoje é terça? Amanhã eu conto.
Diário de um mundo novo – dia 24
Lembro de um curso sobre o processo de envasamento e comercialização de
cerveja em barril, em que o instrutor frisou a importância de uma equação
matemática como sendo a parte fundamental: “se vocês não entenderem isso, então
não entenderão nada do curso.” Eram sete e meia da manhã. Em seguida, escreveu
e descreveu cada parte da tal equação. Lá pelas seis da tarde, após um dia
inteiro falando sobre estatísticas, cuidados com o produto, cálculos de
produção e entrega e mais um monte de informações, ele pediu que caso alguém
não tivesse ainda compreendido a preciosa equação, que levantasse a mão. Nós,
os vinte e cinco alunos cheios de cansaço e cerveja, nos olhamos e todos
levantamos as mãos. Com os olhos marejados de tanto chopp, o nosso professor
confessou: “Faz mal, não. O importante é que agora vocês sabem tudo de chopp.
Eu também nunca entendi essa merda, nem sei por que nos obrigam a falar disso.”
Usa máscara quando sair de casa. Ao ar livre não precisa de máscara,
basta manter a distância. A máscara é necessária, o vírus permanece no ar. Usar
luva reduz o risco de contágio. O uso da luva aumenta o risco de contaminação.
Quem fuma tem menos risco, mas fumar causa câncer. Evite o transporte público.
O trânsito polui e causa estresse. Cloroquina faz bem, mas faz mal. Gente, essa
bagunça tá muito mal desorganizada.
Sou meio desligado. Minha mãe prefere dizer que eu vivo no mundo da Lua.
De repente me pego pensando em alguém com quem cruzei pela rua no mês anterior:
“acho que eu conheço aquele sujeito...” Hoje vi o Filippo e nem cumprimentei.
Tomara que ele não tenha me visto. Que Filippo? O veterinário que veio ontem
cuidar do bichão. E por falar nele, informo que o Pandemônio está com a corda
toda. O cara que eu não cumprimentei hoje, deu um anti-inflamatório depois de
apalpar, massagear a coluna, apertar aqui e ali, sentir o hálito, brincar,
examinar cuidadosamente a cauda, confirmar o inchaço e a ausência de fratura,
beijar e morder o babão bobão.
E, antes que eu me esqueça, o que eu tinha de importante pra falar
ontem, esqueci. Faz mal, não. Eu avisei que sou meio desligado.
Diário de um mundo novo – dia 25
O movimento nas ruas retrata a volta à normalidade. Uma normalidade
diferente que vai deixando de ser diferente. O plexiglas que ameaçava invadir a
península vai desiludindo os fabricantes. Já imaginou ir para a praia pra ficar
fechado num box de plástico? Os miolos iriam cozinhar muito antes de o sol
queimar a pele. Contudo esse era o plano
que muitos defendiam. Traillers para aluguel começam a faltar para os meses de
julho e agosto. As reservas de casas para temporada e hotéis estão aumentando
junto com os preços. Será um verão para ir às forras, o verão dos
sobreviventes. Se é que haverá um verão. Depois de um maio indeciso, agora
invernou de verdade. E a chuva não para. Dá até pra escolher entre chuva de água
e granizo. Só que a segunda dói.
Ó a minha cara de quem comeu kibe, pastel e coxinha, ó. Agora só falta
acarajé.
Fica combinado que quando acabar o isolamento social/quarentena/lock
down, ninguém mais faz pão em casa. Padeiro também precisa comer (e eu não aguento
mais tanta foto e tanto pão).
Diário de um mundo novo – dia 26
Ia esquecendo: o veterinário perguntou quanto o abestado pesa. Respondi
vinte e sete, vinte e oito. Ele me fixou incrédulo e resolveu pesar. Subi na
balança com ele no colo – tava pesadinho – e, depois, me pesei sozinho. Trinta
quilos! Táquêopa! Ele nunca tinha pesado tanto, antes. Sempre variou entre os
vinte e cinco e meio e vinte e oito, dependendo da estação do ano e de quem dá
comida a ele. “Cê tá tão magrinho, meu filho. Come.”
Outra: ontem ele tava num mau humor brabo. Ficou de mal com o mundo já
no fim do dia, pouco depois do jantar. Deitou sozinho no sofá, de cara pra
parede e rosnento. Pois hoje de manhã eu abri a geladeira e descobri o motivo.
Ele sempre come ração “grain free”, tem o estômago delicado como boa parte dos
pitbulls. Duas ou três vezes por semana preparo frango cozido sem pele e sem
gordura com verduras e misturo com um pouco de ração. Mais que isso ele fica
mal. Para que ele não olhe pra Eloá como a última da matilha, ela dá a comida
dele no fim do dia. Ela entendeu mal e invés de dar a metade da medida de ração
com a gororoba da geladeira, deu metade de cada. Cara feia é fome. E é mesmo.
Agora o Trintão tá esticado no tapete e nem se mexe quando ela passa por
cima dele para sentar no sofá. Não adianta passar o pé nele, esperando alguma
reação. Tudo o que ele gosta é essa provocação física. Menos quando está
rosnento de fome.
Diário de um mundo novo – dia 27
Vendo chuva insistente. 12 parcelas de € 518.432,27 (quinhentos e
dezoito mil, quatrocentos e trinta e dois euros e vinte e sete centavos), uma
pechincha! Tratar inbox.
O “molho à bolonhesa” não existe na Itália. O que tem aqui é ragù.
Cada região tem uma receita própria. Cada cidade, cada família, cada avó faz diferente.
Em Bologna também tem, é o ragù alla bolognese, bem diferente do ragù
napoletano, por exemplo. Hoje foi dia de ragù. Qual? O nosso, ué!
Preciso comprar uns guarda-chuvas. Urgente.
Chocado e impotente com as notícias do e sobre o Brasil. Triste, muito
triste com a situação humana desse tão esperado século XXI. Homofobia, racismo,
elitismo, obscurantismo, intelectualismo de whatsapp, negacionistas convictos e
ignorância orgulhosa e vaidosa. Não era pra gente evoluir?
O Trintão está ótimo como sempre esteve. Legal isso de a dor passar e
reagir como se nada tivesse acontecido. Passou, passou. Bora brincar.
Já falei que tá chovendo pra dedéu?
Diário de um mundo novo – dia 28
Doze anos atrás eu comprei uma mini bancada de trabalho. É como uma
mesinha dobrável com duas manivelas que abrem e fecham o que seria o tampo da
mesa, dividido em duas partes. Serve para fixar objetos para trabalhos manuais.
Desde o início percebi que os pés estavam trocados e na posição contrária. As
bases dos pés foram projetadas para tocar completamente o pavimento quando a
mesa abre, mas como estão ao contrário, só as quinas dessas bases tocam o chão.
Apesar disso, ela é estável. Essa bancadinha foi usada por alguns anos,
esquecida no porão e, agora, fica dobrada no balcão dos fundos (pra não ser
mastigada por vocês-sabem-quem) e eu uso para apoiar o laptop quando vou fumar
lá fora. Poderia ter perdido alguns minutos para remonta-la corretamente, mas
gostei de ela ser funcional e confiável, mesmo sendo fora do normal. Me faz
lembrar de pessoas que estão fora dos padrões inventados por sabe-se lá qual
superioridade e, apesar disso, dão conta do recado de viver a vida. No fundo,
somos um bando de gente estranha fingindo uma normalidade inexistente. E a
minha bancada não me deixa esquecer disso.
Domingo de chuva, sol, outono, verão até anoitecer primavera. Faltaram a
neblina e a neve (aqui próximo teve chuva de granizo), mas teve silêncio nas
ruas, motocicletas barulhentas, comida chinesa, o endiabrado a todo o vapor,
invasão de gafanhotos, a peste, o raio do fim do mundo (o último!) e a
procissão do Senhor do Navegantes. Eu acho.
Voltando do passeio, notei que as flores no poste do outro lado da rua,
onde um rapaz perdeu a vida num acidente com um scooter, foram substituídas. Sempre
são. Já se vão uns dez anos, mas a família comemora sempre o aniversário da
tragédia, colocando velas e flores frescas. Por algum gatilho acabei lembrando
da queda de um avião aqui na cidade, em 2006. Lembro que eu estava no balcão,
procurando a aeronave barulhenta que voava baixo, ela passou tão baixo que,
instintivamente, abaixei a cabeça. Logo depois, o estrondo. Os três tripulantes
da Air Algerie não conseguiram o pouso de emergência num campo aberto na
periferia da cidade. Só a perícia do piloto evitou a queda sobre habitações.
Lembrei, ainda, do dia da bomba. Evacuaram todo o centro para retirar e
transportar uma enorme bomba da Segunda Guerra. Saímos de manhã e só pudemos
voltar no fim do dia. Um longo passeio, com direito a almoço fora, visita a
Rivergaro (uma cidade da província) e às suas sorveterias – assim, no plural. E
ainda tiveram os terremotos de 2012. Ô cidade perigosa, seu!
.
No comments:
Post a Comment