Tuesday, June 16, 2020

Diário de um mundo novo - parte 4


Diário de um mundo novo – dia 22
Essa foi a segunda-feira mais segunda-feira desde o início da pandemia. Até engarrafamento teve. Nada que se compare a uma XXIII de Maio, em são Paulo, ou mesmo o anel viário de Bolonha, mas levar dez minutos para chegar à rotatória de uma das saídas da cidade (Piazzale Torino), era algo comum até o início de março. Claro que depois o tráfego é normal, só que perdemos o costume desses pequenos inconvenientes.
Muita gente pelas ruas, algumas, sem máscara. Parece que a vida voltou ao normal, ou, pelo menos, é a impressão que todos preferimos passar. O cidadão que tenta explicar ao jovem, em vão, que a máscara que ele não está usando não é para o proteger do vírus, mas para proteger os outros, caso ele seja um portador assintomático. Bem que podiam fazer umas máscaras com barba, já que tem gente usando no queixo. Sem falar na moda de usar a máscara no cotovelo, que deve servir para quando alguém tosse ou espirra na parte de dentro do braço. Sei lá. A polícia deveria sair com um vidro de óleo de fígado de bacalhau. Esse seria o castigo para quem não usa ou o faz de modo errado. “Abra a boca, senhora. Da próxima vez serão duas colheres de multa.” Claro que é mais fácil encontrar um estrangeiro que um italiano cumprindo todas as regras. O chinês do restaurante toma todas as medidas – e são muitas – e até reduziu à metade o número de mesas. Bolinho primavera sem cuspe e mãos lavadas.
Chegou o extrato do banco. Pelo volume do envelope deve ter uma Bíblia lá dentro. Joguei na sacola de coleta diferenciada para papel sem abrir. “Deus me livre!”

Diário de um mundo novo – dia 23
Tango, tango, tango morena. É de carrapicho, vou jogar o Shiva na lata do lixo.
Alguém aí, por favor, liga lá e diz que já tá bom, pode parar de chover. E avisa que essa foi a última vez que suportei chuva de granizo.
O rio Trebbia – o rio daqui da província que serve de praia pruma multidão no verão, inclusive gente que vem de fora, pois tem “o vale mais bonito do mundo”, segundo Hemingway – tá cheião. A água ganhou uma cor escura e muito estranha. Gostei não. O Nure – que não é um rio perene e está mais pra riacho – ao contrário, está seco. Ele é muito importante para o vale que o cerca, é usado para irrigar as muitas plantações, principalmente de tomate. Deve estar seco por isso.
Nunca vi um cão tão apaixonado pelo veterinário quanto o nosso. Faz a maior festa, brinca, pula, beija, corre e deixa o Filippo fazer o que for. Meio com medo, mas deixa. Sim, o veterinário o atende em casa. Ou vocês queriam que o Demolidor destruísse a clínica com os bichos dentro e a merda toda?
Outra coisa que me deixa perplexo é o medo dele de trovoadas. Noutro dia, tremia de medo dentro de casa. Agora mesmo acabamos de voltar da nossa voltinha noturna recheada de trovões. É como se o danado fosse surdo, nenhuma reação. Por que tem medo dentro de casa e não tem quando está fora?
Tango, tango, tango morena. É de carrapicho, vou tirar o Shiva da lata do lixo.
Pra terminar, vou aproveitar que hoje é quarta-feira pra contar uma coisa muito importante. Ah, hoje é terça? Amanhã eu conto.

Diário de um mundo novo – dia 24
Lembro de um curso sobre o processo de envasamento e comercialização de cerveja em barril, em que o instrutor frisou a importância de uma equação matemática como sendo a parte fundamental: “se vocês não entenderem isso, então não entenderão nada do curso.” Eram sete e meia da manhã. Em seguida, escreveu e descreveu cada parte da tal equação. Lá pelas seis da tarde, após um dia inteiro falando sobre estatísticas, cuidados com o produto, cálculos de produção e entrega e mais um monte de informações, ele pediu que caso alguém não tivesse ainda compreendido a preciosa equação, que levantasse a mão. Nós, os vinte e cinco alunos cheios de cansaço e cerveja, nos olhamos e todos levantamos as mãos. Com os olhos marejados de tanto chopp, o nosso professor confessou: “Faz mal, não. O importante é que agora vocês sabem tudo de chopp. Eu também nunca entendi essa merda, nem sei por que nos obrigam a falar disso.”
Usa máscara quando sair de casa. Ao ar livre não precisa de máscara, basta manter a distância. A máscara é necessária, o vírus permanece no ar. Usar luva reduz o risco de contágio. O uso da luva aumenta o risco de contaminação. Quem fuma tem menos risco, mas fumar causa câncer. Evite o transporte público. O trânsito polui e causa estresse. Cloroquina faz bem, mas faz mal. Gente, essa bagunça tá muito mal desorganizada.
Sou meio desligado. Minha mãe prefere dizer que eu vivo no mundo da Lua. De repente me pego pensando em alguém com quem cruzei pela rua no mês anterior: “acho que eu conheço aquele sujeito...” Hoje vi o Filippo e nem cumprimentei. Tomara que ele não tenha me visto. Que Filippo? O veterinário que veio ontem cuidar do bichão. E por falar nele, informo que o Pandemônio está com a corda toda. O cara que eu não cumprimentei hoje, deu um anti-inflamatório depois de apalpar, massagear a coluna, apertar aqui e ali, sentir o hálito, brincar, examinar cuidadosamente a cauda, confirmar o inchaço e a ausência de fratura, beijar e morder o babão bobão.
E, antes que eu me esqueça, o que eu tinha de importante pra falar ontem, esqueci. Faz mal, não. Eu avisei que sou meio desligado.

Diário de um mundo novo – dia 25
O movimento nas ruas retrata a volta à normalidade. Uma normalidade diferente que vai deixando de ser diferente. O plexiglas que ameaçava invadir a península vai desiludindo os fabricantes. Já imaginou ir para a praia pra ficar fechado num box de plástico? Os miolos iriam cozinhar muito antes de o sol queimar a pele.  Contudo esse era o plano que muitos defendiam. Traillers para aluguel começam a faltar para os meses de julho e agosto. As reservas de casas para temporada e hotéis estão aumentando junto com os preços. Será um verão para ir às forras, o verão dos sobreviventes. Se é que haverá um verão. Depois de um maio indeciso, agora invernou de verdade. E a chuva não para. Dá até pra escolher entre chuva de água e granizo. Só que a segunda dói.
Ó a minha cara de quem comeu kibe, pastel e coxinha, ó. Agora só falta acarajé.
Fica combinado que quando acabar o isolamento social/quarentena/lock down, ninguém mais faz pão em casa. Padeiro também precisa comer (e eu não aguento mais tanta foto e tanto pão).

Diário de um mundo novo – dia 26
Ia esquecendo: o veterinário perguntou quanto o abestado pesa. Respondi vinte e sete, vinte e oito. Ele me fixou incrédulo e resolveu pesar. Subi na balança com ele no colo – tava pesadinho – e, depois, me pesei sozinho. Trinta quilos! Táquêopa! Ele nunca tinha pesado tanto, antes. Sempre variou entre os vinte e cinco e meio e vinte e oito, dependendo da estação do ano e de quem dá comida a ele. “Cê tá tão magrinho, meu filho. Come.”
Outra: ontem ele tava num mau humor brabo. Ficou de mal com o mundo já no fim do dia, pouco depois do jantar. Deitou sozinho no sofá, de cara pra parede e rosnento. Pois hoje de manhã eu abri a geladeira e descobri o motivo. Ele sempre come ração “grain free”, tem o estômago delicado como boa parte dos pitbulls. Duas ou três vezes por semana preparo frango cozido sem pele e sem gordura com verduras e misturo com um pouco de ração. Mais que isso ele fica mal. Para que ele não olhe pra Eloá como a última da matilha, ela dá a comida dele no fim do dia. Ela entendeu mal e invés de dar a metade da medida de ração com a gororoba da geladeira, deu metade de cada. Cara feia é fome. E é mesmo.
Agora o Trintão tá esticado no tapete e nem se mexe quando ela passa por cima dele para sentar no sofá. Não adianta passar o pé nele, esperando alguma reação. Tudo o que ele gosta é essa provocação física. Menos quando está rosnento de fome.

Diário de um mundo novo – dia 27
Vendo chuva insistente. 12 parcelas de € 518.432,27 (quinhentos e dezoito mil, quatrocentos e trinta e dois euros e vinte e sete centavos), uma pechincha! Tratar inbox.

O “molho à bolonhesa” não existe na Itália. O que tem aqui é ragù. Cada região tem uma receita própria. Cada cidade, cada família, cada avó faz diferente. Em Bologna também tem, é o ragù alla bolognese, bem diferente do ragù napoletano, por exemplo. Hoje foi dia de ragù. Qual? O nosso, ué!

Preciso comprar uns guarda-chuvas. Urgente.

Chocado e impotente com as notícias do e sobre o Brasil. Triste, muito triste com a situação humana desse tão esperado século XXI. Homofobia, racismo, elitismo, obscurantismo, intelectualismo de whatsapp, negacionistas convictos e ignorância orgulhosa e vaidosa. Não era pra gente evoluir?

O Trintão está ótimo como sempre esteve. Legal isso de a dor passar e reagir como se nada tivesse acontecido. Passou, passou. Bora brincar.

Já falei que tá chovendo pra dedéu?

Diário de um mundo novo – dia 28
Doze anos atrás eu comprei uma mini bancada de trabalho. É como uma mesinha dobrável com duas manivelas que abrem e fecham o que seria o tampo da mesa, dividido em duas partes. Serve para fixar objetos para trabalhos manuais. Desde o início percebi que os pés estavam trocados e na posição contrária. As bases dos pés foram projetadas para tocar completamente o pavimento quando a mesa abre, mas como estão ao contrário, só as quinas dessas bases tocam o chão. Apesar disso, ela é estável. Essa bancadinha foi usada por alguns anos, esquecida no porão e, agora, fica dobrada no balcão dos fundos (pra não ser mastigada por vocês-sabem-quem) e eu uso para apoiar o laptop quando vou fumar lá fora. Poderia ter perdido alguns minutos para remonta-la corretamente, mas gostei de ela ser funcional e confiável, mesmo sendo fora do normal. Me faz lembrar de pessoas que estão fora dos padrões inventados por sabe-se lá qual superioridade e, apesar disso, dão conta do recado de viver a vida. No fundo, somos um bando de gente estranha fingindo uma normalidade inexistente. E a minha bancada não me deixa esquecer disso.

Domingo de chuva, sol, outono, verão até anoitecer primavera. Faltaram a neblina e a neve (aqui próximo teve chuva de granizo), mas teve silêncio nas ruas, motocicletas barulhentas, comida chinesa, o endiabrado a todo o vapor, invasão de gafanhotos, a peste, o raio do fim do mundo (o último!) e a procissão do Senhor do Navegantes. Eu acho.

Voltando do passeio, notei que as flores no poste do outro lado da rua, onde um rapaz perdeu a vida num acidente com um scooter, foram substituídas. Sempre são. Já se vão uns dez anos, mas a família comemora sempre o aniversário da tragédia, colocando velas e flores frescas. Por algum gatilho acabei lembrando da queda de um avião aqui na cidade, em 2006. Lembro que eu estava no balcão, procurando a aeronave barulhenta que voava baixo, ela passou tão baixo que, instintivamente, abaixei a cabeça. Logo depois, o estrondo. Os três tripulantes da Air Algerie não conseguiram o pouso de emergência num campo aberto na periferia da cidade. Só a perícia do piloto evitou a queda sobre habitações. Lembrei, ainda, do dia da bomba. Evacuaram todo o centro para retirar e transportar uma enorme bomba da Segunda Guerra. Saímos de manhã e só pudemos voltar no fim do dia. Um longo passeio, com direito a almoço fora, visita a Rivergaro (uma cidade da província) e às suas sorveterias – assim, no plural. E ainda tiveram os terremotos de 2012. Ô cidade perigosa, seu!
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