Tuesday, June 09, 2020

Diário de um mundo novo - parte 3


Diário de um mundo novo – dia 15
Sim, é primavera. “Mas se o verão começa daqui uns dias?” Eu sei, quem não sabe mais são as estações, que não aprenderam a ler o nosso calendário. E comeu sei que é primavera? Fácil, tinha um pica-pau trrrrrrrrr na árvore essa manhã, os melros fazem a maior fuzarca, e eu tenho que escolher o lado da rua com sombra quando levo o Coisinha pra passear ao meio-dia.
Nove horas da noite e a tarde é longa e linda, o perfume das flores que desabrocham desesperadas invadem o dia, a tarde e a noite, o fim do remédio para a minha alergia de primavera – e ai de quem chamá-la de rinite alérgica! – e o clima enlouquecido da Planície Padana. Jovens que passeiam de bicicleta com o mínimo de roupa, sandálias e sorvetes.
Fui a Parma fazer um serviço. Os Alpes ainda estão visíveis, parecem ali pertinho. As estrelas emoldurando essa Lua crescente. Ah, as estrelas! Saudades do Cruzeiro do Sul.
É primavera e nós temos que entender que as estações acontecem quando acontecem. Fui fumar lá fora. Só fumar, sem computador e sem livro. Só eu e o Coisinha. Que é como a primavera gosta.

Diário de um mundo novo – dia 16
Todos os dias acordo com uma música diferente na cabeça. Passo o dia cantarolando até enjoar. É sempre a musiquinha de alguma propaganda da infância de Papai Noel ou  uma canção que grudou lá no fundo da minha memória por se repetir nas rádios em alguma época distante e que vem à tona agora. Ou não. Se você conhece, cante comigo:
À Índia fui em férias passear
Tornar realidade um sonho meu
Jamais eu poderia imaginar
E explicar o que me aconteceu
No dia 2 de junho comemora-se a Festa dela Repubblica Italiana. Foi o dia do referendo institucional, em 1946, para escolher a forma de estado, entre república e a monarquia vigente no país por mais de vinte anos. Por 54.3% contra 45,7%, venceu a primeira. Umberto II di Savoia (último rei da Itália) e sua família foram exilados.
Cupido me flechou sem eu sentir
Perdidamente eu me apaixonei
E agora não consigo mais dormir
Pensando neste amor que lá deixei
Hoje o presidente da república Sergio Mattarella veio visitar Codogno, o primeiro foco do vírus na Itália. Sim, veio. Codogno é pertinho de Piacenza, como o Leblon é de Botafogo, como Taboão da Serra de Embu das Artes, como Assis de Cândido Mota ou como Salvador de Lauro de Freitas. Tudo é história e hoje é feriado. E o Ronildo gosta de feriados.
Se nada mudar, no ano que vem
À Índia vou voltar pra ver meu bem
O musgo que cai dos telhados e muros da cidade anuncia a proximidade do verão. Nos meses frios ele se acumula pela falta de sol, das noites longas e do clima propício. As calçadas são varridas inutilmente e na cidade tem mais gente dormindo nos bancos das praças, inclusive nas noites frias e com chuvisco. Mas isso não importa, para quem se prepara para alguma eleição, que não falta nesse país.
Cupido me flechou sem eu sentir
Perdidamente eu me apaixonei
Agora não consigo mais dormir
Pensando nesse amor que lá deixei
E já que muitos de vocês só vêm aqui em busca de uma boa uma fofoca, deixo essa pra alegrar o resto desta terça-feira: o médico não consegue mesmo convencer a namorada a se casar. Sim, aquele médico que se aposentou uns meses atrás, que sempre quis casar com a sua amada e que era impedido pela mãe que não aprovava a união. Sim, ele mesmo. Aquele médico que pediu a mão dela depois que a mãe faleceu e escutou da companheira de tantos anos (e bota tantos nisso): “Eeeeeeu? Tá maluco? Enquanto a véia tava viva cê num teve coragem de afrontar a lôka. Agora eu quero mais é continuar assim. Cê acha mesmo que vou casar pra virar sua mamãezinha, sua empregada, cozinhar e lavar suas cuecas? Pirou! Se quiser, vamos continuar namorando, com você me paparicando, me levando pra jantar fora, dando presentes caros e vindo na minha casa. Casar? Nem morta! E se não tá bom, a porta da rua é serventia da casa!”
Se nada mudar, no ano que vem
À Índia vou voltar pra ver meu bem
À Índia vou voltar pra ver meu bem
À Índia vou voltar pra ver meu beeeeeeeeeem

Diário de um mundo novo – dia 17
A aplicação gratuita do Governo Italiano para controlar o contato de portadores do Covid-19 (IMMUNI) ainda não partiu oficialmente. Porém, como foi muito debatida e divulgada, mais de um milhão de pessoas já a baixaram no próprio celular, nas últimas 48 horas. Apple e Google se juntaram na empreitada para poder disponibilizá-la nos aparelhos que utilizem qualquer sistema. O uso é voluntário e funciona através de bluetooth e não por geolocalização. Caso dois celulares tenham contato de menos de um metro, essa informação é armazenada em um server que o governo assegura que será cancelado quando não houver mais necessidade de uso. Assim, se um dos dois celulares – que devem estar conectados através do bluetooth – for de alguém que venha a ser diagnosticado com o vírus, o hospital informa ao responsável da app e o celular que manteve contato com esse recebe um alerta automaticamente e sem intervenção humana. Cabe ao usuário ir ao hospital e solicitar o teste. Tudo sem informação dos dados pessoais da quem pode ter sido contaminado. Expliquei ou compliquei? O cansaço tá brabo aqui.
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Às vezes, quando damos uma rata, a melhor coisa a fazer é dizer algo como “ops! Foi mal, pisei na bola.” Se a gafe é cometida com alguém famoso como o cantor italiano Al Bano, idolatrado não apenas na Itália, aí a piada ganha o mundo. No dia 24 de maio, durante uma entrevista a um programa popular, o que mais chamou a atenção foi o empenho dele em tentar tranquilizar seus muitos fãs, com a triste saída: “O homem venceu sempre. Contra as pestes, contra os vírus, contra os ditadores. Ainda que por algum tempo o mal parece vencer, no final está perdendo. A história do homem demonstra isso. O homem conseguiu destruir os dinossauros. Imagina se não é capaz de destruir aquele pequeno, maldito verme, micróbio, chamado Coronavírus.” Como se não bastasse, quatro dias depois ele insiste, comentando algo que tinha visto no Museu de História Natural de New York: “O dinossauro e o homem de então, que com vários instrumentos o matavam” e finalizou: “Confirmo que também o homem conseguiu derrotar os dinossauros”.
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Diário de um mundo novo – dia 18
Essa história de que depois da pandemia tudo mudaria não reflete a realidade.
Obrigações de casa:
Limpar banheiro – antes: Allan – agora: Allan
Fazer compras – antes: Allan – agora: Allan
Reclamar – antes: Eloá – agora: Eloá
Arrumar a casa – antes: Allan – agora: Allan
Limpar a casa – antes: Allan (50%), Eloá (50%) – agora: Allan (50,28%), Eloá (49,72)
Cuidar das plantas – Se ela tocar nalguma planta, vai ter que cuidar de tudo. Vai acabar afogando todas, jogar os cadáveres no lixo e a casa vai ficar cinza, triste, sozinha e abandonada. Que nem igual e parecido com aquela estrada cinza que ia pra Juazeiro, onde não chovia pra mais de quatro ano e tudo era cinza, estrada, casebres, terra, árvri sêca, cachorro que de carne só tinha as tripa, a língua e o coração, té as pessoa que pidia esmola na bêra d’istrada. Ô tristeza!
Passear com o Exorcista – antes: Allan – agora: Allan
Fazer shopping – antes: Eloá – agora: Eloá
Lavar o balcão – antes: Allan – agora: Allan
Limpar a cozinha – antes: Allan (72,31%), Eloá (27,69%) – agora: Allan (95,89%), Eloá (4,11%)
Fazer café – antes: Allan (86,01%) Eloá (13,99%) – agora: Allan (86,01%) Eloá (13,99%)
Fazer almoço – antes: Allan – agora: Allan
Fazer jantar – antes: Allan (45%), Eloá (26%), sanduíche com os frios da geladeira, hamburguer, pizza... (29%) agora: Allan (39%), Eloá (8,16%), sanduíche com os frios da geladeira, hamburguer, pizza... (52,94%) 
Pegar cerveja na geladeira – Allan (65%), Eloá (35%) – agora: Allan (75%), Eloá (25%)
Comprar cerveja – antes: Allan – agora: Allan
Passar roupa – bebeu? Endoidou, foi?
Fumar charuto – antes: Allan – agora: Allan
Tomar cerveja quente porque tomaram tudo e não abasteceram a geladeira – antes: Allan – agora: Allan
Cortar o queijo grana para aperitivo – antes: Allan – agora: Allan
Cortar minhas unhas – antes e sempre: Eloá
Lutar com o abestado – antes: Allan – agora: Allan
Levar a peste pra passear – antes: Allan – agora: Allan
Esquecer o sapato na sala e o encontrar destruído quando volta do trabalho: Ahahahahahahahah
Mijar no batente quando fica sozinho: Shiva (tem nem antes e agora)
Brigar com a filha mais velha – antes: Eloá – agora: Eloá
Brigar com a filha mais nova – antes: Eloá – agora: Eloá
Brigar com o Shiva – antes: Eloá – agora: Eloá
Brigar comigo – antes: Eloá – agora: Eloá
Rasgar a porra toda, inclusive essa lista: agora e sempre: o Exorcista

Diário de um mundo novo – dia 19
De gafe em gafe, eu preencho o meu diário. Na verdade não foi exatamente uma gafe, mas uma declaração que poderia ter sido evitada, uma quase irresponsabilidade. Gente, o povo tá doido pra sair, beijar, dividir o mesmo copo, andar abraçado. Não pode – repito – não pode o doutor Alberto Zangrillo, diretor do departamento de anestesia do Hospital San Raffaele de Milão, um médico conceituado e respeitado, afirmar, com base num estudo que ainda será publicado no Clinical Chemistry and Labortory Medicine, que “o vírus é clinicamente inexistente, desapareceu”. Apesar das críticas recebidas, ele insistiu (usignù!) na afirmação, rebatendo os críticos. Porca miseria!, quem diabos vai ler o tal estudo pra entender o que ele está dizendo? Na Itália? Ninguém! É como se o Átila Marino batesse sua porta e dissesse “pode sair, tá tudo bem! Nem precisa de máscara, luva, alquingel. Vai viver!”
Links nos comentários (quando sair, vai ler o estudo, vai).
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Fui a San Pietro in Cerro, cidadezinha aqui da província, pra atender um cliente. Fui com a maior boa vontade. Pela grana e pelas cerejas que eles colhem. Passei o dia trabalhando e comendo cereja. “Coma o que aguentar, só não pode levar, que a igreja não deixa”. Sim, uma igreja evangélica.

O nosso querido, amado e adorado auauzinho machucou a cauda. Não é a primeira vez, ele abana ela com tanta força que já quebrou o vidro de uma porta. Deita amuadinho enroscado na Eloá, pede pra ela cuidar dele e fica com as orelhinhas baixas, mastigando saliva, agradecido pela arnica que ela passou. Dolorido e agradecido. Rosna se alguém se aproxima do rabinho dele.

E só pra vocês saberem, são quase onze da noite e eu ainda tenho que esperar ficar pronto o feijão que eu botei pra cozinhar.
Por falar nisso, sobre o diário de ontem, alguém aí tem uma boa receita pra olho roxo?

https://www.corriere.it/salute/malattie_infettive/20_giugno_02/coronavirus-carica-virale-mutazione-che-cosa-sappiamo-oggi-46e9d7c8-a426-11ea-b19d-c124828d4b5b.shtml

Diário de um mundo novo – dia 20
Hoje passei a manhã na agradável companhia de nada mais, nada menos que Isaurinha Garcia. Gostei tanto que ela resolveu ficar comigo até agora.

Quando o carteiro chegou,
E o meu nome gritou,
Com uma carta na mão.
Ante surpresa tão rude,
Nem sei como pude
Chegar ao portão.
Lendo o envelope bonito,
No subscrito eu reconheci,
A mesma caligrafia, que me disse um dia:
Estou farto de ti.

Porém não tive coragem
De abrir a mensagem
Porque na incerteza, eu meditava e dizia:
Será de alegria ?
Será de tristeza ?
Quanta verdade tristonha
Ou mentira risonha, uma carta nos traz...
E assim pensando rasguei, tua carta
E queimei, para não sofrer mais.

O que conteria aquela carta? Como é bom ter dúvidas, não? Melhor que colecionar certezas.

Faça as contas: do dia 16 de fevereiro até hoje, 6 de junho, quantos dias foram? Pra mim e pro Shiva foi uma eternidade sem poder abraçar a Bianca. Tá bom, vai, pra Eloá também. Abraços, beijos, cosquinhas, mordidinhas e mais abraços e beijos. Que coisa boa é rever a filhona, ah! Tô pensando seriamente em ir pra Bergamo com ela amanhã e ficar no aeroporto esperando a Luiza chegar. Quando ela vem? Sei lá, um dia ela vem e tô morrendo de vontade de abraçar e beijar igualmente o meu Bicho do Mato.

Dia de fazer feijão com arroz, de jogar conversa fora, de cochilar à tarde, de passear com o triste Dodói (o veterinário vem na terça de manhã, o primeiro horário disponível), de sugerir o sabor do sorvete delas na sorveteria em frente de casa, de passear no sol até ele virar chuva e voltar pra casa com a alma encharcada. O sabor do sorvete? Tangerina com gengibre.

Diário de um mundo novo – dia 21
Domingo era o dia de futebol nesse país que só sabe de futebol, política e comida. E o futebol vive o mais longo período de paralisação desde, desde nem sei quando. O início será sem público nos estádios, além das equipes de apoio dos times, imprensa, aspones e, provavelmente, filhos de gente importante para ostentar. Acontece que cedo ou tarde os torcedores voltarão a lotar o espaço criado para eles, é inevitável. O futebol é parte importante da indústria do espetáculo que movimenta muito dinheiro e dá emprego e sustento a uma nação de gente envolvida direta ou indiretamente ao esporte. Ele é tão importante que os times são empresas com ações cotadas nas bolsas de valores. Num país como a Itália, os jogadores dos times da Série C têm um salário mínimo estabelecido pelo sindicato. O valor varia em base à idade: antes dos 16 anos, o salário bruto anual é de €10.665,00; dos 16 aos 19 anos, €14.397,00; dos 19 aos 23, €20.263,00; a partir de 24 anos, €26.664,00. São quase 180 times na categoria do terceiro nível do futebol profissional, cada um com uma média de 23 jogadores. Some-se a Série B, a Série A e você vai descobrir que a grande maioria dos jogadores ganha como um operário ou pouco mais. Para cada estrela dos grandes times, há um exército que ganha em um ano o que o ídolo ganha por dia. Só que esses ídolos movimentam uma montanha de dinheiro e devem ser vistos como os grandes astros do cinema, dos esportes que melhor pagam (golfe, tênis, automobilismo, futebol americano, beisebol, box, basquete...) e dos grandes executivos.
Sim, essa fatia da economia mundial vai voltar a ser o espetáculo que sempre foi, com estádios cheios, independente de vírus ou não vírus. Assim como para cada ponte, cada grande obra, empresa aérea ou qualquer outra atividade de grande porte, as mortes são calculadas e consideradas nas perdas. Não há nenhuma dúvida na hora de decidir o que mais importa, as mortes ou os ganhos.
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Quando a cidade não iluminava essa luz fosca que ela hoje tem, quando embalava nossos sonhos com o murmurinho que emudecia devagar, quando as pessoas traçavam objetivos  e vidas por entre as fileiras de carros e cargos cobiçados, com vontade de férias longínquas, o mundo parecia ter sentido, as guerras pareciam distantes e os verões tão próximos, como o arco-íris depois da chuva, chuva, suor e cerveja. Mas veio a peste e perdas e a cidade sucumbiu ao mal, afundando em cicatrizes que o mal sempre cria. Machucada ela sobrevive, ainda triste pelas feridas, mas não se cala. Hoje ela murmura  carros de quando os carros roncavam o motor nas noites de domingo, roncando como nunca rocaram antes.

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