Friday, November 11, 2005

Gian

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Queria escrever nesta carta uma homenagem bonita, mas a notícia veio como um soco no estômago. Falta-me ar, sobra-me dor e raiva. O branco da tela do computador esvazia-se para além dos limites e transborda para o cômodo, não importa em que cômodo eu me encontrasse, durante toda a semana.

Naquela segunda-feira eu estava agitado, mas eu estou sempre agitado às segundas-feiras. Talvez estivesse mais agitado que o normal, ou talvez esteja apenas procurando minimizar a perda de uma sensibilidade que me permitia sentir os fatos antes de conhecê-los. Cheguei em casa com dor de cabeça, tomei um banho, jantei, dei um beijo nas minhas meninas e dormi como em poucas ocasiões. Um sono profundo como um desbafo, como quem se recupera da batalha perdida. Mas não acordei melhor. Talvez fosse o eco da segunda-feira agitada, talvez um resíduo da sensibilidade.

Esperávamos por uma sua visita ainda neste outono italiano. Há muito decidíramos o cardápio do jantar, que incluiria muitas iguarias locais e um risotto ai funghi, prato piemontês como aquele mascalzone juventino. Mas ele não virá. Nem pelo risoto, nem pela sua Juve, nem por mim. Acho que ele acreditava poder fazer-me uma surpresa e viria sem me avisar, como sempre. Mas o coração o traiu e ele não virá. Nunca mais. Justo aquele coração grande e franco, que acolhia a todos como os muitos cães recolhidos pela rua.

Quando escrevo minhas cartas, penso sempre na reação dos amigos. Algumas vezes decidi evitar determinado assunto para não correr o risco de magoá-lo. Ele que há anos fez o caminho inverso, de Turim a Salvador. Ele, impaciente, contraditório, gozador, com o pavio mais curto que eu já ví, às vezes extravagante, às vezes discreto, centro das atenções e cheio de ironia. Enfim, uma pessoa decididamente marcante e adorável.

Drummond escreveu ter-se descoberto velho quando não encontrou mais ninguém que o conhecera criança. Eu sempre desejei morrer antes da minha família, o que obrigará meus pais, irmãos, esposa e filhas à quase eternidade, já que pretendo viver muito, ainda. Pois bem, acabo de descobrir que também os amigos terão que sobreviver. Dêem um jeito, eu não suporto certas perdas. Nem são tantos amigos assim. Tenho bons amigos, não muitos. De que adianta viver intensamente se não houver com quem dividir? Dêem um jeito de sobreviver.

Será difícil não poder dividir com ele o cotidiano, as novas aventuras. Tento me convencer de que poucas pessoas tiveram uma vida tão plena como a que ele escolheu viver e construiu; tento me convencer que o tempo irá curar também esta ferida, e que, felizmente, ele não sofreu. Mas a realidade é que Salvador fica menos atrativa sem ele.

Me perco. Não consigo organizar as idéias em meio a tantas lembranças, tantas situações divididas e nem tenho vontade de escrever: queria apenas que ele soubesse que nós esperávamos uma sua visita. Não haverá jantar. Só o consolo infantil de estar entre os muitos que um dia ele chamou de amigo.

Ciao.