Caros e Caras,
Paz e saúde!
Minha filha lia: “A mesma ciência que manda o homem à Lua, não consegue resolver o problema da fome na África.” Comentou sentir-se triste e impotente. Esclareci que ela não está sozinha: o sentimento é coletivo, à exceção daqueles que vêem cenas como os estragos de Katrina em New Orleans, desligam a Tv e saem para uma discoteca ou para um jantar como se tivessem visto um filme.
A migração de pássaros nessa terra é algo que me fascina. Todos os anos os vejo partir e voltar. Eles não têm residência fixa: adaptam-se. O ser humano, não: preferimos mudar o ambiente, mesmo que essas mudanças levem os outros animais à extinção. Aos poucos, estamos construindo nossa própria guilhotina. A morfologia do bicho homem no primeiro mundo começa a se adaptar à nova condição produzida pelo conforto moderno, mas num espaço de tempo tão curto que as novas doenças que virão irão dizimar esses dinossauros modernos. Sobreviverão apenas os africanos, forçados ao canibalismo.
A imensa capacidade humana de inventar novas tecnologias, não se repete em avaliar seus efeitos: produzimos armas que alimentam a violência urbana. Aquela que se volta contra todos, inclusive os fabricantes de armas; desenvolvemos alimentos que prejudicam a saúde, cigarros que viciam e matam e veículos que poluem; inventamos armas químicas que acabam por atingir políticos poderosos (o que não é má idéia); criamos gado em abundância, fabricamos eletrodomésticos, desenvolvemos combustíveis e enlatamos gases, mesmo sabendo que os resíduos dessas ações contribuem para o efeito estufa que muda o clima. Não bastam os vulcões, terremotos e furacões naturais? Quem consumirá esses produtos quando formos extintos? No entanto, continuamos a consumi-los.
O próprio 11 de setembro foi uma conseqüência natural da atividade humana, se considerarmos treinar guerrilheiros estrangeiros para lutar numa guerra estrangeira como atividade humana. Era óbvio que um dia eles se voltariam contra os seus mandantes. Ou deveria ser: só um ingênuo acreditaria que armados e experientes, os grupos treinados pelos americanos para lutar contra os russos no Afeganistão iria eternizar-lhes o beija-mão. (Sei que há quem questione a veracidade da versão oficial sobre o assunto, mas me atenho a ela para evitar alongar o discurso.)
Normalmente um acontecimento marca o início de uma era: a construção de um muro, uma descoberta, uma guerra, uma invenção ou uma revolução, por exemplo. A Era da Impotência, não. Ela não começou com as cenas de 2001: antes disso a obesidade já havia se transformado em uma epidemia dos países ricos; hordas de desempregados ou pseudo-assalariados (com direitos e garantias cada vez mais precários) já estavam excluídos dos benefícios que a modernidade oferece em troca de dinheiro; o cinema, a literatura, a música e todas as formas de manifestação cultural já respondiam a um padrão para atender aos apelos comerciais; os jovens já eram mal-educados; as redes de fast food, videolocadoras, hipermercados e shopping centers já haviam modificado irremediavelmente a paisagem urbana; o comércio mundial já definira que países decidiriam os destinos do mundo e que países morreriam de fome; a medicina de qualidade já se transformara em exclusividade dos ricos; os planaltos centrais espalhados pelo mundo já eram sinônimo de propina e corrupção. E alguém já havia sugerido utilizar alimentos transgênicos para matar a fome da África. A Monsanto apenas desconversou porque não achou alguém para pagar a conta. A Era da Impotência começou aos poucos, contando com a apatia do ser humano extasiado diante a Tv, voraz por novidades cada vez mais efêmeras.
Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, apesar das críticas americanas à falta de preparação asiática para evitar ou minimizar os efeitos do tsunami de dezembro passado, vimos New Orleans repetir as cenas devastantes do sudeste asiático, menos de um ano depois. Apesar das sondas em Marte, apesar dos novos celulares que só não fazem café (ainda), o trânsito das grandes cidades, as doenças que mais matam e a cultura do consumo inconseqüente, continuam problemas sem solução a curto, médio ou longo prazos. Apesar do maior acesso à informação, apesar da cultura fácil absorvida pela internet, continuaremos a votar em salvadores da pátria, impelidos pela necessidade tola de confiar nosso voto no último bastião da moralidade, que – acreditamos – irá resgatar uma civilidade que nunca possuímos.
Nossos filhos vão crescendo nesse mundo distorcido produzido por nós, desenvolvendo uma nova cultura, aprendendo a consumir literatura, música e filmes nem sempre de qualidade, produzidos em quantidade industrial para satisfazer necessidades comerciais, vendidos por uma Tv cada vez mais voraz e mais distante da civilidade que sonhávamos. O conceito de conforto e modernidade transforma-os em obesos, mal-educados e preguiçosos. Aos poucos e sem perceber, vão decorando os nomes das novas gerações de políticos, escolhendo o próprio último bastião da moralidade. A competição estimulada os faz entender que o ser humano é o único predador do ser humano, forçando-os a escolher ser caçador para não ser a caça. Observando o pouco caso com os negros de New Orleans, vão aprendendo que a vida humana tem o mesmo valor do inseto esmagado. Não poderemos reclamar se eles escolherem ir à discoteca.
Que mundo herdarão as filhas das minhas filhas?
Se alguém aí souber, não me conte.
A inexorável extinção da raça humana pelo próprio homem nos trará somente um triste consolo: não sobrará ninguém para criticar-nos.
Ciao.
8 comments:
Brilhante, como é habitual com os teus textos. E motivo de reflexão, claro.
São preocupações que também tenho.
abraço.
Allan..
Suas preocupações sempre encontrarão retorno...
É triste ver que somos nós a denegrir um planeta, dizimar esperanças, faltar à verdadeira condição de "racional" visando o bem próprio, as luxúrias de uma vida abastada e sem preocupações.
Penso em meu filho, ainda pequeno...
Na velocidade dos acontecimentos, o que sobrará para ele?
Beijos
Allan, você expõe, de forma brilhante, a preocupação óbvia do "ser humanos médio" - os muito pobres preisam suprir suas necessidades básicas e não estão em condições de pensar na humanidade como um todo, o que é compreensível. Mas porquê será que os muito ricos e/ou poderosos parecem achar que nada os atingirá? Justo aqueles que detém o poder (políticos, grandes empresários) é que poderiam fazer algo pelo bem da humanidade são os qua mais a prejudicam. Também me sinto impotente...
Allan,
É que o dinheiro que tb poderia ser usado para acabar com a fome na África, vai para o espaço!
Eu não ando otimista quanto ao que o futuro nos reserva... com tanta ânsia pelo poder, pelo dinheiro, com a destruição e desrespeito à natureza... Os governos e a população mundial vai ter que mudar vários hábitos e conceitos.
Mesmo sem ter muito otimismo sobre essa situação, não perco a esperança.
Taí um texto que eu gostaria de ter escrito, se é que isso serve de elogio, heheh abs
E o pior é que as verdades que você propaga já são repetidas e cantadas por pessoas como Fritjof Capra, Hazel Henderson, Edgar Morin e Jeremy Rifkin desde, pelo menos, os anos 60. É duro ter que aceitar que as pessoas mais poderosas do planeta não se preocupem com questões tão importantes quanto a própria existência do homem na face do planeta. Fizeste uma belísima síntese dde alguns dos aspectos mais importantes da atualidade, amigo Allan. Um belo exemplo de esforço intelectual bem sucedido. Ciao.
essa questão é uma das minhas angustias: em que mundo viverão os meus filhos?Penso, contudo,(talvez para me animar) que os nossos pais fizeram a mesma pergunta.
Suscrevo.
É impressionante como as pessoas não gostam de falar em tudo isto.
Mas você falou.
Abraço.
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