Thursday, June 02, 2005

O Hábito Faz O Monge

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Eu tinha doze, treze anos. Ficava maravilhado cada vez que via meu pai destrinchar um frango assado. Ele segurava aquela tesoura apropriada com tal destreza que me parecia a coisa mais fácil do mundo. Nas minhas poucas e frustradas tentativas solitárias, o máximo que conseguia era travar a tesoura com um pedaço de osso e espalhar pedaços de frango por toda a mesa, quando a mola da tesoura a liberava. Meu pai provavelmente se divertia ao notar meu interesse por algo banal, assim como talvez se sentisse orgulhoso em poder aproveitar esses pequenos momentos para contribuir à minha formação. Depois de muitos frangos assados, perguntei-lhe como é que se fazia e ele respondeu-me:
- Você segura a tesoura com a mão direita bem firme e espeta o garfo no peito do frango de modo a tê-lo imóvel no prato. Faz uma cara de quem sabe o que está fazendo e vai metendo a tesoura…

Na Itália a indústria do vestuário nunca está em crise. E não me refiro somente aquela da moda, mas todo e qualquer tipo de vestuário. A quantidade impressionante de ciclistas com roupas apropriadas para ciclistas pelas ruas, reforça a imagem esportiva profissional européia. A grande maioria, na realidade, usa aqueles trajes não mais de uma hora por semana, mas sob nenhuma condição aceitaria sair para uma voltinha em bicicleta com trajes menos adequados. A bicicleta, é óbvio, também é profissional.

Como os salários têm pouca variação e cobrem as necessidades básicas e algo mais (quando comparados com o Brasil), até a senhora da limpeza ou o operário têm condições de vestir-se bem. E o fazem. Durante o dia, no horário de trabalho, vestem-se obedecendo as regras do próprio ambiente e das normas de segurança: a senhora da limpeza usará um guarda-pó e sapatos que não escorregam mesmo sobre água ou óleo, assim como os do operário, que além de não escorregarem oferecem proteção contra quedas de objetos. Nenhum restaurante se lamenta ou proíbe a entrada de pessoas com roupas de operário ou sujas do trabalho ao meio-dia. À noite, porém, será impossível distingui-los da mulher do advogado ou do patrão do operário.

Nos cursos de vôlei e basquete das nossas filhas, a primeira ação dos organizadores é entregar as roupas que deverão ser usadas nos treinamentos. Ninguém aparece para treinar com roupas diferentes dos uniformes, o que me tem causado certa confusão, quando o momento de trocar os óculos se aproxima por um leve aumento da minha leve miopia. Mas na escola elas já não precisaram usar o guarda-pó branco de sempre, pois a obrigatoriedade havia caído, quando chegamos.

Numa carta anterior, comentei os dissabores provocados pela ditadura da moda, quando passei meses sem conseguir encontrar meias pretas, que, com a chegada do inverno, torna-se a cor obrigatória. Pois bem, o ladrão mudou de gosto. Alguém roubou todas as meias bege e marron-claro. Há muito não as encontro. Mas pude notar uma coisa interessante: mesmo com a timidez do início da primavera, é quando aparecem as tulipas que as pessoas se dão conta de que é hora de vestir-se com um pouco mais de cor, e abandonam o preto nos armários. São elas, as tulipas, as responsáveis da mudança. São causa, e não efeito. (Aliás, a primavera acabou. Alguém apertou o botão e ligou o verão. Neve no início do mês, calor sufocante no fim. É Maio.)

Como a República Italiana foi unificada, e não libertada, as tradições têm imenso peso nas coisas do dia a dia. A farda dos policiais municipais são trajes modernos como de qualquer polícia que conhecemos. Já a farda dos Carabinieri são peças de museu. E não se toca. Assim como os prefeitos estarão sempre com a faixa transversal com as cores do município, em toda e qualquer aparição pública. As togas dos juízes italianos causam risos, mas desaconselho. Os juízes, mesmo aqui, são muito suscetíveis. As professoras usam roupas de professoras. Os médicos podem ser reconhecidos pela rua. Os estrangeiros, idem.

Giovanni, um amigo, faz parte de uma confraria chamada Santo Cibus. Nas reuniões do seu reservado grupo todos devem endossar o traje tradicional, formado por um chapéu alto, em estilo medieval e uma bata aberta dos lados que se coloca por cima das roupas. O brasão é composto por um braço de armadura que segura um garfo, e está bordado sobre o imenso babador que o chefe supremo coloca, no início da reunião, em cada membro do grupo. As reuniões acontecem nos restaurantes mais distantes, para evitar testemunhas das barbáries praticadas pelos integrantes contra o santo cibo .

É possível encontrar a roupa adequada para toda e qualquer atividade. Não usá-la será visto como falta de profissionalismo ou seriedade. Garotos de cinco, seis anos com roupa de rugbi e a inconfundível bola oval, caminham em direção ao campo segurando as mãos de pais orgulhosos. O gerente do banco que veste o avental branco antes de começar a pintar a sala da própria casa. O motorista do táxi de terno e gravata. O pintor de quadros que vai às ruas em busca de inspiração com o avental multicolorido e o chapéu engraçado que se vê nos filmes.

Todos parecem ter aprendido a lição do meu pai: não é relevante o que você faz e nem se o faz bem. O importante é demonstrar segurança. Todo garoto de doze, treze anos ficará admirado.

Ciao.

6 comments:

Biajoni said...

ALLAN, SERÍSSIMO:
quando vai sair o livro com tuas crônicas? pense seriamente nisso! meu... são tão... MARAVILHOSAS! acho que vc deveria mesmo pensar seriamente sobre isso!

Biajoni.

Anonymous said...

Fiquei impressionada em roma com a quantidade de lojas de moda para padres e freiras!

graças a você, hoje a família se regalou: você sugeriu o acrescimo do alho poró no purê ( ficou ótimo, poró purê) de batatas. Vou postar a foto no multiply.

Notei em Paris que cortar a carne, seja frango ou o que for, é tarefa masculina, mas velada. A mulher se finge de alguma coisa pois diz"por favor, querido, poderia me ajudar a cortar a carne? " aí o cara faz isso ( com a mão imunda como a grande maioria dos parisienses, só não disse todos pois não conheci todos ) E vi no show do Crosby (um sitcom americano que já saiu do ar ) o Crosby ensinando ao filho mais velho a cortar o peru de natal. Também tarefa do macho.

Interessante isso. Já a mulher, em Paris, é quem abria o portão para o carro dirigido pelo homem passar.

Pelo menos enviar meias pelo correio é fácil!

Angela

Anonymous said...

Allan, que delícia de crônica! Mistura doce de recordações e observações. Fiquei encantada.

Anonymous said...

assim é se lhe parece? Sei não, apesar do Pirandello...ainda acho que a roupa não faz o monge ...

Ricardo Montero said...

Parei no tempo, pois me olhei agora no espelho e vi um universitário de jeans, camiseta e botinas. Só não me perguntem a idade, he he he...

Nora Borges said...

Allan, o post está excelente. Gostoso demais de ler! e o comentário de Flávio o complemento perfeito!