Paz e saúde!
O Aldo Pereira sugeriu que eu fizesse uma edição particular para a centésima Carta da Itália. Pensei sobre o assunto e decidi não fazer nada de especial. Apenas uma das tantas cartas para aporrinhar o humor de vocês. A tentação seria avaliar a evolução de tudo o que vivi e procurei transmitir, mas não sou muito amigo de retrospectivas. Fazer uma retrospectiva comporta verificar quais eram os objetivos iniciais e comparar com o resultado obtido. E nem sempre o resultado é o planejado. O inventor da Coca-Cola, por exemplo, planejava produzir um elixir e deu no que deu. Num caminho inverso, minhas cartas deveriam ser um diário de bordo dessa aventura familiar em um país de cultura diversa, endereçado a amigos e curiosos. Acabou virando uma incrível batalha pessoal em busca da eloquência, que me obriga a longos e tortuosos textos na tentativa de tornar clara uma visão meio nebulosa no caminho das minhas descobertas.
Teria, ainda, que descrever a sensação de eterno turista que sempre me acompanhou, fazendo-me sentir em casa em raras ocasiões, o que me valeu o apelido de Cigano, carregado por anos da minha eterna adolescência. Além da certeza de jamais ter a oportunidade de abdicar dessa incômoda situação de anônimo observador, nem sempre atento.
Outro motivo que me impede de fazer um balanço desses anos de Itália é a dificuldade de relacionar todas as comparações provocadas nesse período. Depois, como confessar que gosto tanto de uma boa massa quanto de uma feijoada? Ou deixar que alguém perceba que a cidade coberta de neve me fascina tanto quanto a praia de Guarajuba num dia de sol, por exemplo? Não, não cairei nessas armadilhas. Não conseguiria separar os amigos de sempre das novas amizades conquistadas, apesar da falta que me fazem parentes e velhos amigos. Tampouco trairia antigas paixões, tentando explicar que torcer pelo Milan não me faz menos torcedor do Flamengo, eterna paixão. Mesmo com tantos brasileiros jogando aqui e o familiar rubro-negro da camisa (que deve valer como atenuante, espero) seria difícil explicar. Além de tudo, San Siro não é o Maracanã. E é esse tipo de coisa que me incomoda. Tenho à disposição todos os ingredientes para fazer um bom acarajé, mas não terá, jamais, o mesmo sabor dos da Cira de Itapoã, que o adorável maluco do Giancarlo me mandou antes do Carnaval.
Morando fora do Brasil há tanto tempo, já nem sei mais se estou sendo justo nas minhas comparações. Perdi referências de casa. Será que os adolescentes daí usam celulares com a mesma frequência que os adolescentes daqui? Quando comparo a burocracia italiana com aquela brasileira, na realidade não estou apenas querendo dizer que ela é mais visível, às claras? Fica realmente difícil separar detalhes do cotidiano e identificar até que ponto somos diferentes.
A minha proposta inicial de transmitir nossas descobertas através das comparações, muitas vezes cedeu lugar a simples registros das novidades. Falando das bicicletas, de férias em lugares diferentes ou do preconceito racial assumido que parte dos italianos ostenta, tão diferente do nosso, camuflado, miscigenado e matreiro. Enfim, como esclarecer que o estilo italiano é mais marketing que conteúdo? Que, no fim das contas, somos mesmo muito parecidos? Às vezes é difícil comparar uma novidade sem parâmetros brasileiros e acabo atravessando o riacho que separa novidades e comparações. Não raro, acabo me afogando na minha própria incompreensão.
Na realidade essas minhas cartas nem têm mais sentido. Viajar, hoje, é fácil. A crise das empresas aéreas, a televisão e a internet encurtaram muito a distância que nos separa. Quem tiver curiosidade sobre a Itália e não puder vir conhecê-la, pode navegar pela rede e descobrir tudo sozinho. E nem precisa falar italiano. Continuo escrevendo apenas para não esquecer, para manter vivos valores pessoais e contatos. Sem a ilusão de que meu elixir será, um dia, uma coca-cola. Escrevo por escrever. Enquanto houver um Agnelli ou uma receita ainda não provada, prometo (ameaço) continuar relatando sobre arquitetura, rúgbi (nova descoberta), heróis alheios e todo e qualquer fragmento de vida que descobrir. Você pode decidir ler ou não. Caso decida responder, prometo (mas não juro) que tentarei não usar nada contra você. Se desejar apenas uma leitura passiva, tudo bem. Espero conseguir fazer você rir, às vezes. Eu estarei rindo. No fundo, rir é o que importa.
Minha memória gastronômica já está selecionando o que irá provocar saudades, na eventualidade de uma volta ao Brasil. Talvez o tempo me faça ranzinza e eu terei muito do que me queixar no meu adorado terceiro mundo. Só espero que o Bush de então, não decida atacar a Argentina (por implicância com o tango, sei lá!), pois é muito desconfortável essa sensação de estar no meio do caminho de países em guerra. Terei, então, todos os domingos livres, para caminhar pela praia com minhas meninas (Eloá, Bianca e Luiza), fumando um charuto baiano, camisa aberta, óculos escuros e chapéu Panamá. Em casa, depois de um almoço de massa com frutos do mar, sentarei no computador e escreverei, em italiano, as minhas Cartas de Salvador.
Por isso, caro amigo Aldo, me recuso a escrever uma edição comemorativa pela centésima carta. Seria impossível transmitir todas as diferenças entre as estações, apesar das minhas vãs tentativas. Você iria rir dos meteorologistas italianos e se encantar com o florescer das tulipas, se eu soubesse transmitir com palavras todas patetadas, as cores e tons dessa melodia que a Itália me permite admirar. Seria necessário começar a escrevê-la já na primeira carta para poder revisá-la (e você sabe da minha dificuldade e resistência em revisar) e conseguir uma retrospectiva fiel. Quem sabe, naquele domingo do parágrafo anterior, me lembre das cem cartas e me pergunte se não deveria ter decidido por sem cartas. Mas, como sempre considerei a conjectura uma armadilha a ser evitada, desligo o computador e saio nessa manhã de primavera, pois acabo de assumir um compromisso com um (charuto) panatela dominicano.
Ciao.
12 comments:
parabéns! e me sinto grata por estar atenta aos seus escritos.
Sim, os adolescentes (ricos) usam celulares. Os médios, também, porém aqui o pré-pago é mais usado, e como eles não tem grana, usam mais como 'torpedo"mensagens de texto.
Os pobres têm celulares, são baratos, por 10 reais por mês eles compram um, mas não têm como pagar a conta. Usam pré pago também.
Angela
Rapaz, o tempo passa rápido.
Ainda bem. ;)
Sao bem sutis as diferenças que vc descreve entre o povo daqui e de lá...acho que diferenças tem e nao sao poucas nem pequenas ...
Se adaptar é que é o problema. Nem todos conseguem com a mesma facilidade que aparentemente vc demostra...
Parabens por isso , parabens pelo blog , parabens pela maneira e conteudo que escreve .
Un grande abbraccio
Walter
Tanto tempo longe, e chego em dia de Festa,
Parabens pelas 100 cartas..
Um abraço
Meire
Allan, mais um post que me emociona (estou ficando repetitiva? Culpa sua!). Suas comparações fazem refletir mesmo aqueles que sempre viveram em Pindorama. O maior problema, pelo que vejo, para aqueles que emigram é que as referências de Brasil ficam congeladas na data em que partira. Com o passar do tempo vão se distanciando da realidade brasileira tanto por falta de atualização quanto pela traição da memória afetiva.
Ficou muito boa esta carta! Abraço mineiro do Tristão.
Acabou que escreveu uma belíssima carta expressando um sentimento de alegria em estar provando as diferenças culturais. Porque o que muda é só isso. Só? É o que faz agir diferentes pra chegarmos no mesmo lugar.
A Coca-cola citada como exemplo, já foi doce demais! passou por várias transformações antes de chegar no sabor que está. Como estará suas cartas daqui mais cem? Beijus,
Allan, pensei que vc nao gostasse de ler minhas bobeiras, hehe.
Allan vc disse pra eu ver trojane virus no site da Tiscali? como faço isso?
Sabe que umas pessoas nao coneguiam comentar, mas o problema era no navegador que estvam usando.
Um abraço
Meire
Cem cartas... que barbaridade! ainda bem que descobri você já faz tempo!
Sinto-me um pouco como você, pois aproveito o que vivo agora com toda a intensidade. Ao mesmo tempo que sinto estar perdendo convivências adoráveis no Brasil!
Beijos
Allan,
Pois acabou sendo uma edicao comemorativa...e das boas! Quanto a nos aporrinhar, NUNCA! Imagine e seus textos sao muito bem articulados, tanto que eu nem sabia que voce tinha 'trabalho' com isso, quero dizer, a fluencia e tanta, 'e tao natural...a gente le e nao fica pensando no trabalho que vc pode ter tido costurando tudo isso, mas eu entendo assim como entendo tambem o que quer dizer esse 'cigano' e o 'perder a capacidade de comparar' e agora estou tentando entender o que pode ser se 'readaptar', outra etapa tao dificil quanto as outras...
Forte abraco
Simplesmente um prazer ler um post como esse. abs
Allan,
sorva tudo o que receber de uma cultura e de outra,de um amigo e de outro,de cada amor ,de cada encontro...Somos todos nós colchas de reatlhos formadas por nossas vivencias.Não obrigatoriedade em escolher este ou aquele!Viva,apenas viva ciganamente ou seria siga na mente?
Seja feliz
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