Wednesday, September 01, 2004

Itália de papel

Caros e Caras,
Paz e saúde!

A Itália tem uma torre torta; tem ruínas de mais de dois mil anos; tem vulcões; tem praias e uma geografia muito interessante; tem neve. E tem, também, coisas que ninguém vê. Por exemplo: tem vacas. Não tem palmeiras nem sabiá, mas tem uma floresta maior que a nossa Amazônica. E antes de questionar minha sanidade ou de sugerir que fiz uso de qualquer substância mais forte além do meu Cuaba cubano ou minha Schwaben Bräu alemã (charuto e cerveja, respectivamente – chique, não?) é bom arranjar uma explicação que me convença da existência de um outro modo para produzir tanto papel assim.

O prefeito estabelece o rodízio de placas para a circulação de veículos: envia para cada residência uma correspondência de quatro folhas de papel, fora o envelope. Faz o balanço anual da administração ou desenvolve um novo serviço: carta! Informa o dia em que poderão ser acessos os aquecedores no meio do outono: outra carta! A escola informa o calendário de aulas ou qualquer outra atividade; o serviço que administra o refeitório das escolas comunica valores e manda o carnê de pagamentos; o serviço de saúde lembra a data da próxima vacinação infantil. São sempre, no mínimo, duas folhas de papel.

O jornal Il Corriere Della Sera custa € 0,90. Às quintas, vem com uma revista generalista; às sextas, com Il Mondo, semanário de economia; aos sábados, com a revista feminina Io Donna; duas vezes por mês, sai com Casa Amica. Tudo por € 1,20. Os outros jornais, para não ficarem atrás da concorrência, fazem ofertas parecidas.

O sujeito que muda de empresa precisa levar um atestado de família, fornecido pela prefeitura, que confirma seu endereço e a formação do núcleo familiar; fotos; fotocópia dos documentos (para os estrangeiros, fotocópia da autorização de permanência no país) e do título de estudo, se houver; atestado de saúde; uma autorização de tratamento dos dados pessoais pela empresa (obrigatório por lei); carteira de trabalho e a receita de um doce típico. Leva pra casa o contrato de trabalho (a carteira profissional fica na empresa) e um punhado de papel informando sobre a privacidade da empresa e do funcionário, segurança no trabalho e diversos informes sobre o funcionamento e regras do novo emprego.

Todos os dias as ruas ficam repletas de sacos plásticos roxos. Veículos especiais recolhem os sacos padronizados de cem litros com material para serem reciclados. Mais de noventa por cento é papel. Não existem catadores, como estamos acostumados a ver pelas ruas das nossas cidades. Toda quinta-feira e segunda-feira coloco cinco sacos cheios de papel para recolhimento e descobro que sou o único a respeitar dias e horários da coleta, que, na minha rua, ocorre às segundas e quintas, das oito às nove e meia da noite. Os sacos devem ser deixados ao lado (e não dentro) dos containers, pois esses são utilizados para o lixo comum e têm coleta diária.

Cena profissional: há alguns anos, quando trabalhava na Brahma, na Bahia, durante uma reunião alguém comentou: “Quando os arqueólogos vierem estudar nossa civilização, daqui a uns quinhentos anos e descobrirem a nossa fábrica, chegarão à conclusão de que éramos uma fábrica de papel, onde os funcionários gostavam muito de cerveja.” A gramática da frase pode ser questionada, mas a conclusão não seria assim tão equivocada. Pois bem! A quantidade de papel que produzíamos à época é como um lenço de papel numa oficina de jornal, se comparada com qualquer empresa italiana: a mercadoria chegou acompanhada de um documento de transporte (quatro vias), a nota fiscal (outras quatro), a fatura (duas vias) e uma correspondência confirmando o recebimento dos documentos, que deveria ser preenchida e devolvida pelo correio. Às vezes, depois de confirmar o recebimento da confirmação do cliente, e este confirmar a confirmação da confirmação do recebimento… (viu?) perde-se a referência e, ocasionalmente, o cliente.

Fax, e-mails e telefonemas não substituem as cartas. Existem, sim, empresas que fazem pedidos por telefone, têm na nota fiscal o único documento para oferecer ao cliente e evitam até mesmo o simples cartão de visitas. Mas tais companhias são mal vistas pelas administradoras de material reciclado.

Recentemente tive todos os documentos perdidos (na realidade roubaram minha carteira, numa parada para um café na estrada, mas a raiva e a insignificância do fato me impedem de entrar em detalhes). Registrei a ocorrência e tirei diversas cópias. Fui à Prefeitura, deixei uma Fotocópia da Ocorrência (FO) e tirei uma segunda via da carteira de identidade; fui aos Carabinieri (Polícia Militar), entreguei uma FO e solicitei a segunda via da habilitação. O funcionário registrou minha solicitação e mandou-me ao Detran (o caminho é esse! Não se pode ir ao Detran sem ter ido antes ao quartel dos Carabinieri); fui ao Detran, deixei lá uma FO e eles me forneceram duas folhas de papel, informando minha situação. A habilitação chegará pelo correio; voltei aos Carabinieri, que fizeram uma fotocópia dos documentos do Detran (que devo apresentar na eventualidade de uma blitz de trânsito) e me forneceram uma autorização para dirigir, enquanto não chegava a habilitação; fui ao escritório do Ministério das Finanças: outra FO entregue, em troca de uma outra folha de papel que substitui o CPF italiano. O original chegará pelo correio; na empresa, tive que deixar outra FO. Banco e administradora de cartão de crédito, idem. Hoje, caminho pela rua com duas valises: uma com toda a papelada que substitui meus documentos, outra, com Fotocópias da Ocorrência (FOs).

Jornais, livros, revistas, correspondências, folhetos de supermercados, de teatros, da loja de produtos para animais, fotocópias, embalagens, comunicados diversos e documentos: papel, papel e mais papel. A minha preocupação é que a cada reciclagem a quantidade de papel se reduz. Cedo ou tarde eles irão necessitar de outras florestas!

Ciao.

8 comments:

Anonymous said...

Oi Allan! Dessa vez vou assinar, é Angela! ;-) ah, e dê um pulo, se quiser, claro, no http;//angelaescritora.multiply.com

cara, você tem que reunir tudo isso e publicar um livro! É muito legal esse olhar estrangeiro. Você chegou a ler How to be a carioca? Já tive vários deles, mas acabo presenteando. Uma americana radicada no Rio explica o que é ser carioca. E percebe coisas fantásticas. É em inglês. Faz isso em italiano!!!

Anonymous said...

...Cada vez melhor!
Lenine

Anonymous said...

Ciao Allan, è realmente muito divertente tua maneira de relatar os fatos.
Qualquer dia fale alguma coisa sobre quando voce precisa de alguma informaçao aqui na Italia, por qtos guiches voce tem que passar atè acertar..rs
Temos uma Tipografia, e sabemos bem o consumo de papel aqui na Italia. Para fortuna nossa, è claro!
Um abraço
Meire

Anonymous said...

Que coisa! Pensávamos que essa mania fosse típica e exclusiva do terceiro mundo!
Abraços,

Frank & Gaia

Claudio Costa said...

Como sempre, Allan, lendo você e aprendendo cada vez mais. Desta vez, uma aula de Ecologia. Não a "ecologia folclórica" e distante da gente, mas a Ecologia na qual a gente se sente inserido: reciclar materiais é o que há. Evitar desperdício, também. Para isso: abaixo a burocracia, a redundância, o pleonasmo! Muito bom.

Anonymous said...

Allan,
O papel tornou-se sinônimo de burocracia. Quanto mais evoluido, mais papel o país usa. Imagino uma Torre de Pizza de papel, com o vento levando as folhas embora...
Marcelo Sabóia

Anonymous said...

E a gente aqui blogando, sem FO, sem carta, sem envelope... sem lenço e sem documento ( ainda não tenho meus papéis regularizados. hahahah
Brasileiro é Fo... ou não?
Beijo
Nora

Anonymous said...

Oi! Sou eu, Angela! O niver é 24 de outubro. Ainda falta! só que eu comecei a aniversariar no início do ano. ;-)) Para comentar no multiply precisa estar cadastrado, foi por isso que te mandei zentos convites. Tem versão em português do livro! por isso pensei no livro bilingue.