Friday, December 11, 2020

Diário de um mundo novo - parte 29

 Diário de um mundo novo – dia 196

A convecção das elucubrações pandorianas pode colidir com o concretismo abstrato do pindoramismo. Bora tomar uma no Plebesítio.

*

Tomando spritz com a Eloá. Ela que fez, mas a receita é da Lu, nossa bartender preferida:

1 ½ dose de prosseco

1 ½ dose de água com gás

1 dose de Aperol

1 rodela de laranja

Muito gelo

*

Uma abelha é, em última instância, um aglomerado de átomos. Pessoas também. Em alguns casos, só com elétrons e nêutrons.

*

Daí que os números da pandemia começam a diminuir. Daí que algumas regiões que eram zona vermelha passaram à laranja, menos restritiva. Daí que tá uma pressão braba para não proibirem a abertura das estações de esqui. Daí que tem gente já organizando vigem de férias no Natal. Daí que vai dar merda.

*

Um melro nos observava na noite que amanhecia. Silencioso no gramado, queria que ele cantasse. Café da cafeteira moka Alessi. O nublado virou sol, o frio não esquentou. Massa com frutos do mar, vinho nacional, pera com grappa. Charuto e passeios com Shiva Tranca Rua.

 

Diário de um mundo novo – dia 197

Segunda-feira e eu aqui pensando no futuro. Não um futuro longínquo, mas amanhã, 1º de dezembro desse ano que ninguém previu. Dezembro é um mês que normalmente eu trabalho muito pouco. As festas de fim de ano italianas começam no dia 13, dedicado a Santa Luzia. No Centro-Norte e Norte da Itália é costume dar presentes às crianças, quase coo um Natal antecipado. Deve-se deixar um pires com biscoito e um copo de leite para ela, que vem de longe e um pouco de palha ou capim para o burrico que a acompanha. Também é o dia de escrever as cartas para Papai Noel. As festividades se concluem no dia 6 de janeiro, quando a Befana passa deixando doces para os meninos que se comportaram e carvão para os que precisam se esforçar (todas as crianças encontram doces e carvão nas meias deixadas nas janelas. O carvão é de açúcar). Sendo período de festas, costumo ter trabalho até o dia 15, mais ou menos e só volto a trabalhar depois do dia 6 de janeiro. Não por vontade própria, é um tipo de férias forçadas. Você pode estar pensando “que legal!”, mas eu não gosto. Trabalho por conta própria. Ninguém me paga pra ficar em casa, não tenho 13º nem férias pagas. Considerando que o auge do verão é agosto, mês que também trabalho pouco e que todo mundo fecha por duas ou três semanas, eu tenho que fazer malabarismo rebolando pra pagar as contas.

 

Mas – e me contive pra não escrever tudo em maiúsculas – é um ano atípico. E bota atípico nisso. Ceias, reuniões, viagens, almoços e confraternizações já estão pra lá de proibidas. Será que dessa vez irão aproveitar para arrumar o carro, substituí-lo (o que me faz trabalhar e girar a economia), ou estaremos todos numa enorme zona vermelha como em março e abril?

 

Torçam por mim, não sou fã de carvão.

Diário de um mundo novo – dia 198

MSG1: bi, diz pra sua mae trocar a folhinha do calendario, por favor

MSG2: oi papi. tudo bom?

MSG1: tudo. filha, eh urgente

MSG2: kd vc, scubidoo?

MSG1: por favor, please, per piacere

MSG: nuintendi, vc quer que mude o calendário?

MSG1: sim

MSG2: onde vc esta?

MSG1: estou em novembro

MSG2: paiiii eu estou trabalhando

MSG1: filha, faz o que te pedi por favor

MSG2: perai

MSG1:

MSG2: pq vc n responde o telefone?

MSG1: to sem tel. Pede pra sua mae mudar o calendário, faz o que to pedindo

MSG2: vc ta bem? Aconteceu algm coisa? onde vc esta?

MSG1: filha eu juro que estou em novembro. Pede pra sua mae trocar aquela merda de caledario

 

— Alô!

— Mãe...

— Oi minha filha. Tudo bem?

— Sim. Você muda o calendário por favor?

— Claro que mudo, meu amor. O que você...

— Mãe, por favor. Eu estou em casa, mas estou trabalhando. Muda o calendário atrás da porta.

— Nossa! Que isso, filha?

— Mãe...!

— Nuintendí, você me liga pra pedir uma besteira dessa e ainda fica nervosa?

— Faz o que estou pedindo. Eu preciso voltar a trabalhar.

— Que estresse! Volta a trabalhar, Bi. Quando eu for na cozinha...

— M ÃE!!!

— Credo! Tô indo, tô indo. Essa juventude, viu. ...AAAHHHHH

— Mãe...?

— O que você tá fazendo aqui, Allan? De onde você apareceu?

— Mãe...? Alô! Alô, mãe!

— Nossa, que susto!

— Alô, mãe! O que que tá acontecendo aí? O pai chegou? Mãe...

— Com assim, você estava preso em novembro? Que maluquice você inventou dessa vez?

— Mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe

— Allan, como é que alguém fica preso em novembro, Allan? Como você apareceu aqui assim, do nada? Quer me matar do coração? Onde você tava?

— Mãe, pai? Alguém me responde, por favor.

— Mas para com isso, Allan. Acho melhor você não explicar de novo, não.

— Vou voltar a trabalhar, mãe. Um beijo pra vocês. Tchau.

 

Diário de um mundo novo – dia 199

A primeira neve caiu. Neve é legal, mas é uma merda. Nos filmes, pela janela e no alto das montanhas é tudo bonito de se ver. Um espetáculo. Já no dia a dia a neve é um porre. Aquilo vai virando uma lama marrom ou cinza, dependendo da pavimentação da rua, e vai grudando em tudo. O inverno é o período com maior incidência de acidentes domésticos com fratura. Neve escorrega. Empunhar uma pá e ir limpar a neve na entrada da casa, costuma acabar no pronto socorro. Isso porque as dores no dia seguinte são tão fortes que o zeloso morador acredita estar tendo um ataque cardíaco. Os médicos imploram: não iniciem atividades físicas ao ar livre no inverno repentinamente. O ideal é capinar o campo na primavera, praticar esportes leves nas horas mais frescas do verão e varrer a cidade no outono, sem intervalos superiores a dois dias. Quando chegar o inverno você estará habituado, a cidade vai estar mais limpa, seu físico estará nos trinques o campo terá produzido e você não irá ocupar inutilmente um lugar no hospital.

 

Você já tentou montar uma corrente de neve nos pneus do carro? Nem tente. Quando neva o carro perde aderência. A neve – fofinha – vai sendo amassada pelos carros e se transforma em gelo. Gelo escorrega. Tem sempre algum apressadinho que resolve que o trânsito tá lento demais e resolve ultrapassar. E você, pobre trabalhador que sonha com os trópicos, vai vislumbrar o apressadinho rebolando na estradinha de apenas duas pistas e sem acostamento, vindo no sentido contrário. Eu sei que você vai dizer que é o carro dele que vai estar rebolando, mas saiba que ele, o motorista apressadinho, vai estar rebolando dentro do carro tentando controlar a situação.

 

Eu gosto muito de neve. Sabe os filmes de Natal cheios de neve? Eu assisto no verão, com o ar-condicionado ligado. E tem mais, a neve é atiradora de elite. Naqueles primeiros dias de neve é comum levar o cachorro pra passear de madrugada, usando um doposci (após o esqui. A pronúncia é dóposchí), que é um calçado ideal para usar nas montanhas, depois de esquiar. Do tornozelo para baixo é uma bota sete-léguas forrada por dentro e os dez centímetros da parte de cima, é feito do mesmo material das roupas de esqui. Eu levo meia-hora pra calçar o treco, mas é um problema mecânico do meu tornozelo direito. A única coisa positiva é voltar pra casa com os pés secos e quentes. Além da botina especial, uma camisa, uma malha, um colete e um casaco de frio são fundamentais. Gorros cobre-orelhas e luvas vão depender da temperatura e da sensibilidade de cada um. Pois é quando o vivente, morrendo de frio, acredita-se protegido, que um floco de neve passa no momento certo no único espaço inimaginável e acerta as costas. Nem o campeão olímpico de tio ao alvo consegue algo tão perfeito. Blasfeme e grite baixinho. É madrugada, lembra?

 

Diário de um mundo novo – dia 200

Gente, tá um frio danado aqui. Tomei um copo de vinho, assisti um filme, fumei um charuto e tomei um conhaque depois de passear com o Shiva, tomei uma cerveja e gelou tudo. Vou voltar pro conhaque.

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O Natal vem chegando e foi autorizado a reunião de parentes de primeiro grau, pais e filhos, mesmo que morem em regiões diferentes. A Lu não vem, nem pensar. O Boris avisou que a vacina começa semana que vem e ela deve ficar por lá, acabou a mamata. A Bia mora na Lombardia e nós, na Emilia-Romagna. Acontece que viajar de uma região a outra fica proibido entre os dias 21 de dezembro e 6 de janeiro. Como ela trabalha, não dá pra ficar tanto tempo longe da empresa. Tá bom, está fazendo home office, mas e se precisar ir até o trabalho, que é a cinco minutos da casa dela? Vamos ter que promover o Shiva.

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O inverno – que calendáriamente ainda não chegou – tem suas vantagens. Com o aquecimento ligado, a roupa seca rapidinho.

*

Com a neve e o asfalto congelado, o perigo aumenta. Vou deixar o skate em casa.

 

Diário de um mundo novo – dia 201

Voltaremos a ser zona amarela a partir de domingo. Terça é feriado, as lojas ficarão abertas até às nove da noite para permitir aos comerciantes venderem presentes de Natal que não serão presenteados a quem não poderemos encontrar. Se você quiser colocar uma vírgula aí, fique à vontade. Senta, toma um chá, temos tipos variados e inclusive café.

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Cassio: oi Allan! Tudo bem?

Por favor use esse e-mail no lugar de cassio@...com. Forte abraço.

 

Allan: Senhor usuário remetente

Este endereço e-mail pertence a um cyber-robot.

O Senhor Allan não existe.

Atenciosamente,

Gerador de respostas non sense.

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Shiva Terminator me levou pra passear debaixo da chuva que antes era neve. Amanhã terei que comprar outro braço. Cochilei no sofá (pensa que é fácil domar o passeio do bicho, pensa?). Acordei, tomei banho e voltei pra sala. Cadê o Shiva? Claro, foi pra cama. Shiva Abanador de Cauda aparece na sala me chamando pra ir dormir. Tem mandão demais nessa casa.

 

Diário de um mundo novo – dia 202

Precisei ir a Travo hoje. Trata-se de uma cidadezinha da província, às margens do rio Trebbia, a estradinha maravilhosa que liga Piacenza a Genova, a SS45, mais conhecida como Valtrebbia. Percorrer  o vale do Trebbia não é novidade, costumo levar amigos de fora para passear por lá, mas não tenho certeza de já ter passado por lá no inverno, calendário à parte. Gostei da paisagem mimetizada pela neve. “Fiocca!”, murmurei para lembrar de guiar com mais prudência. Fiocco = floco; fioccare = nevar, cair em flocos. Ou seja, nevava levemente e os pneus de inverno se tornavam menos aderentes ao asfalto. A sinuosidade da estrada sugeriu cautela e obedeci.

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Vacina. Vai levar um bom tempo para a maioria da população estar imunizada. Não podemos baixar a guarda, ou o guarda – que nos guarda – faz a multa que nos aguarda. Não, na verdade as medidas de prevenção servem a isso, preservar a vida. Nossa e dos outros, mas não resisti à brincadeira do guarda. E ainda será necessário descobrir na própria pele por quanto tempo estaremos imunizados. Prudência e canja de galinha.

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Se alguém aí souber o que poderemos ou não fazer no período das festas de fim de ano, por favor avisem o governo italiano. Aliás, se alguém aí souber qualquer coisa, avisa mesmo. Grazie.

1 comment:

Eliana said...

Que legal esta tradição de Santa Luzia e o carvão hahaha Tem costumes que a gente nem sabe que existem, né?
Eu já tive fratura de punho com uma queda no inverno. Era uma poça de água congelada no estacionamento e quando me aproximei do carro, logo me vi no chão com a minha mão direita pendurada! Me rendeu uma cirurgia e pinos. Evito sair andar com neve, evitamos de pegar estrada. Felizmente não tem nevado mais! Você descreveu bem: é bonito só em filmes.