Diário de um mundo novo – dia 189
Um grau. 1 ºC. Putaquepariu, pra mó di quê percisa fazê ‘sse friu nessa época? Mais um pouco e neva.
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Shivinha Paz e Amor era um outro animal. Esse aqui é o Deus da Destruição, um cão endiabrado da muléstia doido pra me morder. E morde. E traz o osso de borracha pra me provocar. E ignora o osso pra me morder. E corre, e pula, e rosna, e me deixa cheio de marcas de dentes. Isso é pecado, Shiva. Ou deveria ser.
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Fiz biscoito português, que é o mais fácil que conheço. O Claudio, se frequentasse o Facebook, morreria de vergonha de mim. Taí, fiquei com vontade de fazer stollen. Sabe quantas noites passei acordado fazendo stollen? Na verdade, já estou atrasado. Normalmente fazíamos stollen em outubro, que é pra curtir até o Natal. E tinha quem fosse procurar stollen nos primeiros dias de janeiro. Ofereciam o peso em ouro, pois sabiam que tínhamos deixado os nossos pra mais tarde. Stollen e espumante.
Diário de um mundo novo – dia 190
A semana começa com a mais nova polêmica, o fechamento das estações de esqui. Falar de esqui na Europa é tratar de uma indústria importante que envolve um verdadeiro exército e move muito, mas muito dinheiro. Existe um mundo voltado para as férias nas montanhas que corre o risco de sucumbir. São funcionários de hotéis, restaurantes, das pistas, prestadores de serviço, comerciantes grandes e pequenos, enfim, é a mais importante fonte de renda das cidades e vilarejos das montanhas.
Por outro lado, eu comparo as pistas de esqui, no inverno, com a Via Dutra em véspera de feriadão no verão. Só em filmes antigos pode-se ver esquiadores deslizando em montanhas desertas, o uso de capacetes é obrigatório para os mais jovens e aconselhável para todos. Acidentes entre esquiadores é parte das férias de Natal. Filas imensas por toda parte e jantar com amigos são simplesmente inevitáveis. Por enquanto o governo mantém a determinação em manter tudo fechado e apela: “muitos italianos não estarão vivos no Natal e vocês querem esquiar? Fiquem em casa para evitar o desastre do verão.” Luta de titãs.
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A invenção do vinho quente ainda vai salvar a humanidade.
Diário de um mundo novo – dia 191
A coisa mais difícil pra mim é lembrar que tem o toque de recolher das dez da noite às cinco da manhã. O Shiva só sai da cama se ouve os preparativos pro nosso passeio. Bocejando e se espreguiçando umas duzentas vezes, caminha devagar até a sala, rabo abanando sem convicção. Eu acabo perdendo a noção do tempo e, quando lembro, tenho que sair rapidinho para não encontrar com outros cães na rua.
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Na falta do nosso Gutturnio mais que especial, comprei umas garrafas de Barbera d’Asti. Até que é bom, mas prefiro vinho mais tânico, com mais personalidade. Bem, é pra beber mesmo. Saúde!
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— Adoro frio!
— Então tá.
— Pega aquele outro cobertor pra mim.
— Ué, mas não gosta de frio?
— Gosto não. Adoro.
— E quer outro cobertor?
— Pr’eu ficar quentinha.
— Hein?
— Eu gosto do frio porque posso me cobrir e ficar quentinha, oras!
— Então gosta é de calor.
— A gente tem que simplificar o que é complicado e não complicar o que é simples. É isso.
— ...Hã?
Diário de um mundo novo – dia 192
Querido diário, hoje o mundo perdeu Maradona pela segunda e última vez. Essa notícia é tão forte que vai abafar todas as outras. A primeira vez que ele morreu foi quando parou de jogar. Naquele instante o brilho nos olhos de Maradona se apagou, ele se conscientizou do peso que a personagem que encantava os gramados o perseguiria para sempre, impedindo de ser apenas um ser humano. Foi julgado em cada passo, desde então. E, fora do gramado, não tinha a mesma habilidade em driblar a repercussão das suas escolhas e as consequências delas. O homem sucumbiu ao ídolo. O mito é imortal.
A prefeitura de Nápoles informou que mudará o nome do estádio municipal San Paolo. Será a homenagem maior ao craque que a cidade adotou. Toda a Itália tem uma admiração muito grande por Maradona, “o melhor de todos”, como estará estampado nos principais jornais amanhã. Ciao Diego.
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Hoje é dia de comer pizza. Com bares, restaurantes e pizzarias fechados, preferi não correr o risco de pedir para entregarem a pizza em casa. Comer pizza fria, só de manhã. Preparei a massa de manhã e comemos a nossa pizza quentinha agora à noite. Tiramisù de sobremesa, vinho e um ótimo conhaque pra concluir. Pena que o frio não vai me deixar fumar no balcão.
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Shiva, o destruidor, atacou de novo. Deu a primeira mordida no sofá que compramos anos passado. Aquele que substituiu o que ele destruiu completamente. Talvez por estar estressado com o sumiço do osso kong indestrutível, o brinquedo preferido. Tive que jogar fora, essa manhã ele regurgitou o pedaço que tinha engolido. Pedaço grande. Pois é, destruiu o indestrutível.
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Ciao Diego.
Diário de um mundo novo – dia 193
O vírus não para de se reproduzir. A previsão para as festas de fim de ano é de que teremos muito pouco a comemorar. Na melhor das hipóteses, será permitido a comemoração entre parentes de primeiro grau (pais e filhos), com um máximo de seis pessoas. Na melhor das hipóteses.
Do lado de cá do Atlântico, assisto atônito o verão brasileiro se aproximando. Se sobrar espaço entre banhistas e botequeiros. Quando o outono chegar no hemisfério sul, vai sobrar choro. Protejam-se.
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Shiva ganhou um osso novo maior que o anterior. Tomara que os estragos de ontem e hoje (sim, aprontou) tenha sido pelo estresse causado pela perda do brinquedo preferido. Levou um tempo para me acalmar, quando cheguei em casa hoje. Só depois é que dei o presente que já se tornou o novo brinquedo favorito. Enquanto arrumava a bagunça, catava os cacos e encomendasse outro controle remoto, ele sabiamente se enfiou na casinha e ficou me controlando com os olhos. Nem precisei brigar com ele, a sintonia foi imediata. Fizemos as pazes e ele adorou a surpresa.
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Entre as quatro maiores cidades italianas, somente Nápoles tem apenas um grande time de futebol. Roma: Roma e Lazio; Milão: Milan e Internazionale; Turim: Juventus e Torino; Nápoles: Napoli. A torcida pelo time da cidade é unânime, não existe napolitano anti-Maradona. Hoje, mais do que nunca, a sintonia entre Nápoles e Buenos Aires é completa. O adeus será longo e doloroso.
Diário de um mundo novo – dia 194
Ganhei a edição de luxo de Riccardino, o último episódio do Comissário Montalbano, de Andrea Camilleri. Nela estão presentes a duas versões do romance que põe fim à saga do chefe de polícia da cidade de Vigàta, na província siciliana de Montelusa. Camilleri havia decidido não deixar órfão o personagem que se tornou popular, escolhendo e escrevendo um final para que fosse publicado em edição póstuma. Entregou a obra em 2005 e a revisou em 2016, apenas para ajustar a linguagem. É possível seguir as mudanças página por página.
Montalbano morre? Casa-se com Livia? Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Como leitor de Camilleri e fã do comissário, vou concluir a saga antes de ler o epílogo, sem pressa. Ainda não tenho toda a obra de Camilleri e prefiro ir lendo aos poucos, como alguém que saboreia a sobremesa vagarosamente para alongar o prazer.
A propósito, muitos episódios do Comissário Montalbano foram adaptados para a tv, com a interpretação divertidíssima de bons atores, capitaneada por Luca Zingaretti, com produção da RAI (raiplay). Na série a língua é o italiano, ao contrário da usada nos livros, inventada por Camilerri. Vigáta, a cidade do comissário, só existe no romance. Assim como a província de Montelusa.
Daqui uns anos eu conto o final. Ou leia você mesmo e não me conte.
Diário de um mundo novo – dia 195
Sempre fui ruim em matemática, sempre fui. Tenho dificuldade com números, tenho. Aprendi a ver as horas num despertador antigo, com números enormes, eram. Naquela época os despertadores tinham números, tinham. Aprendi em um dia, aprendi. Queria aprender a ler e meu pai disse que se aprendesse a ver as horas, ele me mandaria à casa da Nádia, que morava em frente, que morava. Era no Cremerí, um bairro de Petrópolis e no dia seguinte minha mãe me levou na casa dela. Era o que eu mais queria pro meu aniversário de três anos. Mas acho que gostei mais do bolo em forma de navio pirata, gostei. Lembrei dos números. Desculpe, sou prolixo e vou falando assim, traçando trilhas sinuosas e às vezes me perco, às vezes. É muito difícil eu me conscientizar do tempo, quando vejo as horas em forma digital. Claro que eu sei em qual posição estão os ponteiros ao ver um relógio digital, mas não interpreto bem o tempo marcado em números. “São 08h12, ainda tenho tempo de sobra.” Aí vou na cozinha pegar água e olho o relógio marcando 08h13: “taquepariu, tô super atrasado!” Eu sei quanto tempo o ponteiro leva pra chegar às 08h30 e quanto tempo eu levo até o cliente, mas não consigo calcular isso em números. Só no espaço que o ponteiro deve percorrer.
E é pela minha dificuldade com os números que meus diários correm o risco de repetir a numeração. Amanhã vou arrumar os dois diários de número 166. Não se assuste se você achou que eu pulei um número, apenas acertei esse aqui.
Em tempo: tenho certeza de que você não tinha notado. Assim como você deve ter tido a impressão de já ter lido isso aqui. Eu sei da dificuldade em gravar toda a informação que recebemos diariamente e apostei nisso para falar da minha lição com o despertador, um assunto sobre o qual já tinha escrito.
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Depois dos nossos comerciais, cenas do próximo capítulo.
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Tralalalalá tralalalá dingle bells... Compre, consuma, ajude a mover a economia
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Não percam, amanhã iremos ver a minha dificuldade com as palavras e a absoluta falta de eloquência. Aqui, neste mesmo mural, no mesmo final de noite.
1 comment:
Olha, se tem uma coisa que me chocou profundamente foi saber da morte de Maradona! Foram tantas as mortes de famosos, mas a dele, foi mesmo de ficar de queixo caído!
Este Shiva é muito danado!
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