Diário de um mundo novo – dia 162
Estamos mais próximos, o horário de verão italiano terminou. O fuso passou a ser de quatro horas e não mais de cinco. O grande problema é acordar às três da madrugada para atrasar o relógio em uma hora. “Às três da manhã, atrase seu relógio de uma hora” avisou a propaganda do governo durante dias. Acordei que ainda faltavam dez minutos pras três da madrugada. Fiquei esperando sentado para não dormir. Atrasei o relógio conforme a orientação e fui dormir. Acordei assustado às três e quinze. Tinha sonhado que estava arrumando o novo horário. Atrasei o relógio para às duas e quinze e fui dormir. Ou tentei. Um pesadelo com o relógio me assustou e resolvi não dormir mais. Eram três e meia da madrugada. Fui para a sala e liguei a tv. O jornal das oito e meia tinha acabado de começar.
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Hoje eu vi uma ilha. Não aquele tipo de ilha cercado de água por todos os lados, mas uma senhora muito idosa. Estava sentada numa mesa de bar com uma coleira de cachorro na mão, uma xícara de café e o olhar congelado num tempo que ela não consegue acreditar que passou.
Diário de um mundo novo – dia 163
Quem trabalha por conta própria sabe como é: há semanas que o trabalho pinga como a torneira da pia durante a noite, uma a cada meia-hora e de modo irritante; e há semanas que a quantidade de trabalho parece querer nos afogar.
Estou vivendo uma semana do segundo tipo, está faltando fôlego e as braçadas começam a doer. E quem disse que estou reclamando?
Diário de um mundo novo – dia 164
Quem nunca cometeu uma gafe, falou uma besteira ou foi deselegante num momento de raiva? Se o fato é privado e entre comuns mortais, não chega a mudar o destino da humanidade. Quando a errar é algum frequentador da mídia, a gafe pode se transformar numa catástrofe. Pelo menos para a imagem do importante mortal.
“PCR is bullshit” Essa foi a frase incriminatória proferida por Cristiano Ronaldo. Ansioso pela partida da Champions League entre a Juventus, time italiano onde joga, e o Barcelona, do rival Lionel Messi, CR7 postou no Instagram (onde tem mais de duzentos milhões de seguidores) a frase acima. Tudo porque os resultados dos dois exames feitos ontem deram positivo para o Coronavirus, deixando-o de fora do jogo. Cancelou o post assim que as críticas e insultos começaram, mas era tarde demais. Tremenda casca de banana, que será esquecida com a mesma velocidade.
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Quarentena, lockdown, escola sim, escola não, bares, restaurantes, cinemas e teatros, tudo indo pelo ralo num redemoinho confuso de quem enfrenta a segunda onda da pandemia como se não tivéssemos vivido a primeira. A França, a Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Lua e Saturno. Vacina, tratamento, UTIs, Vaticano...
Acabamos de comer uma pizza, entregue pela Pizza Del Sole, que é das poucas tradições que resistem.
Diário de um mundo novo – dia 165
Ô diazinho corrido, siô!
Acorda às quatro, vira pro lado e dorme; acorda às quatro e dez, depois às quatro e vinte e cinco e depois, vai se lascá!
Quinze pras cinco e já não mais nenhum jornal pra ler. Quer dizer, nenhuma notícia que já não tenha lido em outro. Limpo e trocado, bora passear, Shiva. E corre e caminha e faz pipi e cheira e corre e caminha até cansar.
Remédio, papa, luta e ele ainda termina de destruir as caixas de papelão que sobraram de ontem.
Lista de compras e supermercado. Comprar ração. Passar no banco. Passar no outro supermercado que faltou alguma coisa. Ir na farmácia. Comprar focaccia di Recco e água com gás. Pegar remédio pra dor de cabeça que ela pediu. Descarregar e arrumar as compras. Levar Shiva pra passear travêis. Ligar pros clientes. Bora pro aeroporto. Escolher o caminho certo no dia errado e pegar um trânsito estressantemente lento. Confiar no GPS velho e descobrir que estou em frente ao aeroporto, mas que a rua que passa por baixo da estrada está bloqueada para automóveis e que tenho que dar a volta láááálararilalaáá longe. Pegar a Lu que acabou de fazer o teste. Voltar pra casa. Levar o Shiva pra passear. Comer pão com carne. Ir no cliente marcado pra fazer o serviço. Voltar pra casa. Fumar um charuto tomando vinho e comendo queijo.
Ufa!
Diário de um mundo novo – dia 166
31.084 novos casos de Covid confirmados com 215.000 testes nas últimas 24 horas.
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O novo decreto do Governo determina, entre outras medidas, o fechamento de bares, restaurantes, academias, cinemas e teatros às 18h00. Proprietários que investiram para se adequar às normas impostas para a reabertura não se conformam. Em toda a Itália as manifestações contra a nova medida ameaçam a ordem civil. Tenho a impressão de que sentirão saudades desse tempo em que ainda podemos ir às ruas protestar.
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Todo mundo entendeu que aquele grito “o covid não existe!”, pela mulher entrevistada na praia sem máscara, em pleno verão, era um grito de exasperação. Frustrada como um inocente na cadeia, ela era convicta de não merecer o castigo. Mas ela é tão culpada pela situação que vivemos hoje quanto todas as outras pessoas que não respeitaram o protocolo elaborado pela ciência. Com os meus botões, falo sempre que se todo mundo obedecesse às medidas precaucionais (feio isso, né? Prefiro “de precaução”, mas vou deixar assim pra irritar os chatos), não chegaríamos à catástrofe que estamos vivendo. Tenho até a punição para quem saísse na rua sem máscara, participasse de aglomerações e não respeitasse a bíblia científica: uma semana dentro de algum quartel abandonado – que aqui não faltam – vigiado pelas forças armadas, sem celular, tv ou internet. Só livros. As despesas, é claro, seriam por conta do infrator. Imagina o desespero. “Mano, cê tá doido que eu volto pra lá! Vaza que eu quero lavar as mãos.”
Diário de um mundo novo – dia 167
Feliz Saci Pererê pra você, sua Mula sem Cabeça.
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Ontem foi sexta-feira, hoje é sábado e amanhã é domingo.
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Precisamos urgentemente mudar a nossa visão do que é importante. A verdadeira necessidade é a dúvida, não a certeza.
Diário de um mundo novo – dia 167
Domingo é o principal dia mundial do chocolate. Sim, o principal, pois os outros dias são segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado. Essa é uma tradição que acabei de inventar.
Sabe o meme “Raiz x Nutella”? Não faz sentido nem tem graça pra mim. Durante a Segunda Guerra os impostos de importação do cacau aumentaram muito, fruto da escassez do produto, destinado principalmente aos soldados no front. Foi então que Pietro Ferrero, confeiteiro na cidade de Alba, na região Piemonte, decidiu aproveitar a avelã (nut, em inglês) abundante na região, para inventar o que ele chamou de Giandujiot, apresentado em blocos maciços para comer com pão. Isso mesmo, na época era comum comer pão com uma barra de chocolate no café da manhã e na merenda italiana. Em 1951 o nome mudou para Supercrema, então não mais em barra. Foi o filho dele, em 1963, a criar o nome Nutella, juntando o “nut” com ella para criar uma sonoridade tipicamente italiana. Ou seja, italiano come pão com chocolate há muitos anos. A Nutella foi só uma progressão do costume. A receita contém açúcar, óleo de palma, avelãs (13%), leite desnatado em pó (8,7%), cacau magro (7,4%), lecitina de soja e baunilha. E mesmo que substituam algum ingrediente por óleo de motor de caminhão, queimado, vou continuar comendo.
Por isso, na Itália, Nutella é tão raiz quanto sandálias Havaianas são no Brasil.
Hoje é domingo e vou acabar com a Nutella aqui de casa pra comprar outro vidrão amanhã. Pura, no pão, com banana ou o que me der na telha. Amanhã tem mais.
2 comments:
Oi, Allan! Bom saber que ainda blogas :)
E seguimos aqui sobrevivendo nesse mundo novo... estou na Lombardia, "zona rossa" e esperando que passe logo esse pesadelo!
Um abraço
Eu estava tão feliz quando anunciaram, ano passado, que este ano seria o último ano do horário de verão. Não aguento. Apesar que até hoje meu marido me diz que vivo no fuso horário brasileiro.rs Será que um dia este tormento de adiantar e atrasar relógio vai ter fim? Olha vc, tem até pesadelo. Rs
Olha, tá aí uma das poucas coisas das quais não gosto: Nutella. Juro que já tentei...mas aqui em casa é iguaria que não compramos. Olha que interessante vc falando sobre se comer pão com chocolate. Mas isso não é mérito só dos italianos pois os holandeses comem pão com o chocolate granulado. Marido se lembra de uma vizinha de barraca no camping, de quando eram crianças, e a mulher belga mandadando ver num sanduba com uma barra de chocolate. Rs Eu não sou adepta desta modalidade, nem granulado e nem em barra. Prefiro pão "normal" rs
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