Sunday, October 25, 2020

Diário de um mundo novo - parte 23

 Diário de um mundo novo – dia 155

“Avisa lá
Que eu vou chegar mais tarde
Oh yeah!

Vou me juntar ao Olodum
Que é da alegria
É denominado de vulcão
O estampido ecoou
Os quatros cantos do mundo
Em menos de um minuto
Em segundos...

Nossa gente é quem bendiz
É quem mais dança
Os gringos se afinavam na folia
Os deuses igualando
Todo encanto, toda dança
Rataplam dos tambores
Gratificam

Quem fica não pensa em voltar
Afeição à primeira vista
O beijo, o batom
Que não vai mais soltar
A expressão do rosto
Identifica...

Avisa lá, avisa lá
Avisa lá, ô ô
Avisa lá que eu vou...”

 

Diário de um mundo novo – dia 156

“Il coviddi non c’è!” O Covid não existe! Foi o que disse uma mulher quando foi entrevistada na praia durante o verão. Claro que ela estava relaxada, aproveitando a liberdade de quem finge não acreditar em toda essa confusão pandêmica, sem máscara. E o repórter estava procurando – com um sucesso impressionante, devo dizer – quem aproveitava a estação de modo descontraído. A entrevista rodou toda a Bota umas duzentas mil vezes, ela ficou famosa e tornou-se “influencer”. Pois uns dias atrás, para quebra do encanto dos milhares de seguidores, ela esclareceu que sempre soube da gravidade, mas que, como todo mundo, não aguentava mais. Declarou: “Il covid c’è.”

*

Neblina. Nesse pedaço esse é o sinal de que o outono realmente chegou e aconteceu. A mudinha de uma das muitas sementes que plantei durante o verão sucumbiu. Eu já tinha sucumbido as duas irmãs dela, na frustrada tentativa de transplante antecipado. Foi transferida na fase de crescimento certo, continuou crescendo, as folhas começaram a tomar forma e parecia vingar. Adaptou-se bem à janela da sala, onde pegaria sol por algumas horas do dia. Mas a temperatura baixou muito a plantinha se transforma em adubo. Que pena. Vou ficar sem saber do que se tratava.

 

Diário de um mundo novo – dia 157

Seu Zé, meu sogro e grande amigo, era uma pessoa sábia. As notícias de crimes, sequestros e qualquer argumento que envolvesse a violência deveriam sair em letras miúdas, lá pro fim do jornal, segundo ele. As penas para os criminosos, ao contrário, deveriam ser estampadas nas primeiras páginas com destaque. Tinha a plena consciência da emulação que certos aspectos podem suscitar.

 

Como em qualquer lugar, na Itália alguns crimes transformam-se em telenovelas, com cenas do próximo capítulo durante anos. Há um personagem que acabou ficando mais famoso depois de ter sido condenado. Foi amante/marido de modelos e pessoas da tv e faz o tipo bad boy. Chantageava famosos com fotos comprometedoras, y otras cositas más. Condenado, fugiu para Portugal e foi capturado. Puxou cadeia, saiu com liberdade provisória, foi a todos os programas de televisão – que o povo aqui adora uma fofoca e ele é um cara boa pinta –, aprontou todas e acabou voltando pra trás das grades. Não preciso dizer que tem uma legião de fãs, né?

 

Pois é essa mesma emulação que enxergo nesse mundo cheio de vírus e de fãs de pilantras. Precisamos tanto assim de ídolos, a ponto de escolher qualquer um que seja notícia?

 

O nome do bad boy? Não vou divulgar, meu sogro era sábio. Muito sábio.

 

Diário de um mundo novo – dia 158

Ultrapassamos os 16 mil contágios nas últimas 24 horas. São números oficiais, registrados entre os quase 180 mil testes feitos no mesmo período. São muitos e muito mais seriam se mais testes fossem feitos. Quanto mais testes, mas contagiados. Por outro lado, me assusta saber que o Brasil está fazendo uma média de pouco mais de 31 mil testes por dia. Faça as contas aí: a Itália tem pouco mais de 60 milhões de habitantes e fez 180 mil testes. Quantos teste o Brasil deveria estar fazendo por dia para manter a mesma média italiana? Assustou?

*

Pais sem teto. Não é raro encontrar um pai que durma em abrigos, em casa de amigos ou no carro por não ter onde morar. Com salário baixo e tendo que pagar pensão ao filho que ficou com a ex, tem quem prefira dormir no carro por vergonha.

*

Ontem e anteontem teve Champions League, o campeonato de futebol mais importante para os clubes do continente europeu. Hoje tem Europa League, o segundo em importância – seria a série B da Champions League. O futebol vai bem, obrigado. Vírus? Que vírus?

 

Diário de um mundo novo – dia 159

— Eloá, acho que você vai gostar dessa notícia: “Estudo do Instituto W@èfopttr$ conclui que um copo de cerveja por dia faz bem à saúde.”

— Gostei não.

— ...Por quê?

— Um copo é muito pouco.

*

— Você almoçou hoje?

— Claro!

— O que você comeu?

— Bolo.

— Allan, bolo não è comida.

— Bebida é que não é.

*

— Não pode mudar o antúrio de lugar, ele detesta correntes de ar.

— Tá bom.

— E se você vê que a terra tá seca, colocar o dedinho pra controlar e achar que ele “tá triste”, não pode pôr água.

— É pra matar de sede?

— Não. Nós combinamos que você não cuida das plantas pra não matar mais nenhuma. Antúrio não gosta de excesso de água, só pode molhar quando a anterior secar completamente.

— Olhar pode?

— De máscara, luva de látex e distância de segurança.

— Pódexá.

 

Diário de um mundo novo – dia 160

A moda agora é inventar uma moda a cada dia.

*

Futebol rolando em meio à segunda onda da pandemia. Atletas infectados em quarentena, estádios a portas fechadas, críticas e elogios. O circo ganhando dinheiro, o show não pode parar.

*

Há dias frios, úmidos e há dias frios, secos. Chove, faz sol, neblina. Estamos num período de dias mais quentes. E o rio Po alterna as marés silenciosamente.

*

Shivinha dengoso e rosnento. Culpa das vacinas de ontem. O veterinário chegou, a festa estava animada e de repente o Sapeco lembrou que Filippo (o vet) é sinônimo de espetada. Entrou na casinha e ficou por lá. Houve uma tentativa suborno com biscoito, mas ele ignorou solenemente. Conversamos um pouco, eu e o Filippo, para dar tempo ao eremita da casinha. Peguei o biscoito oferecido pelo doutor e levei dentro da casinha. Mais uns minutos e o Marmotão decretou a primavera transferindo-se, muito desconfiado, para o sofá. Meia-hora examinando tudo, perguntando, auscultando, cheirando – o vet, não o Shiva. Quer dizer, o Filippo cheirando o Shiva, entendeu? – até a hora das vacinas. Depois da agulhada, a festa pode reiniciar. E reinicia com um alívio canino de quem sabe que o pior passou. Claro que os efeitos chegaram hoje e devem durar até amanhã. Paciência.

*

Esquece, Babe. Estamos fora de moda.

 

Diário de um mundo novo – dia 161

Ontem achei uma carteira de mulher na rua. Sábado, dia de feira, dia de punguista trabalhar. Estava escondida atrás de uma banca de jornal fechada, onde o Shiva costuma ir cheirar. Abri pensando encontrar documentos para avisar a proprietária. Nada. Só dois cartões do Correio e um chip de telefone. Como a maioria das pessoas fazem, decidi depositar dentro de uma caixa do Correio, que informa a proprietária. Na caixa mais próxima onde estávamos havia uma senhora com um cachorrinho e, sabe, o Shiva. Passamos batido e fui depositar na outra, quase em frente de casa, num cruzamento com grande movimento de pedestres. E era sábado. Na maior tranquilidade, coloquei a carteira lá dentro. Só então percebi que a cidade inteira me observava. E eram olhares hostis. Deu um frio na barriga e faltou pouco pra um casal me perguntar onde tinha jogado o corpo.

*

Domingo de sol, calorão de dezoito graus, dia ideal para passear. Pergunte ao Shiva. Também foi dia de feijão gordo, que é pra empatar comigo. A Bia esteve aqui, voltou, mas esqueceu de levar a saudade. Pergunte ao Shiva. E por falar nele, saiba que acordou com vontade de me morder. Todas as manhãs lutamos pelo osso vermelho indestrutível (até agora, pelo menos). Hoje ele pegava o osso e me oferecia, como sempre faz. Mas, ao contrário do ritual matinal, não lutava pelo osso. Apenas esperava que eu o pegasse para me morder. E me mordeu a cabeça várias vezes. Quando fiquei passando por trás da perna, de um lado para o outro, ele nem perdeu tempo tentando pegar o brinquedo, economizou tempo e foi logo mordendo a minha perna. Enfim, acho que foi uma punição por ter deixado o vet entrar em casa na sexta-feira. Pedi arrego e fui me refugiar na cama. Ele pulou e mordeu a mim e a Eloá. Até cansar. E roncamos até o prédio tremer.

1 comment:

Eliana said...

Coitadinho do Shiva...mas já se animou.
Pois é ...o Covid não existe, e muita gente morreu, de Covid, aliás, pensando o mesmo.
Eu já cansei de ouvir, com certo deboche, sobre como estamos nos protegendo. Aliás, os mesmos debochados que acabaram adoecendo. E agora tem que tomar cuidado pra não adoecer de novo.
Dizem que crianças não pegam e não transmitem. Eu estou bem longe de qualquer uma. Até o meu sogro não teve mais contato com os netos. Na dúvida, melhor manter a distância.