Thursday, March 19, 2020

Diário do fim do mundo - parte 1


Dia 1
Esse silêncio nas ruas me emudece. Até as ambulâncias tronaram-se raras.
O que fazer quando o mundo acaba? Não me preparei, preciso organizar uma agenda. O que ler, o que não comer, regras para cochiladas e passeios, pequenas arrumações, não criar expectativas.
O mundo parou, mas não há paz. Só uma sensação que não consigo explicar.

Dia 2
Acordei de madrugada, abri a janela da sala e fui observar a cidade fantasma. Do outro lado da rua, uma das janelas da igreja de Santa Clara, que celebra apenas duas missas por semana, deixava passar uma luz acesa. Quem estaria lá naquela hora da madrugada? Tentei ouvir o longínquo barulho dos caminhões na estrada. Nada. Nem a geladeira estava acordada. Só os gatos passeavam pelos jardins e quintais alheios. Não, não vi gato algum, mas sei que eles estão lá. Gatos são silenciosos, sorrateiros, invisíveis. Os gatos estarão sempre lá. O cão, que roncava na cama com ela, não demorou a sentir a minha falta e foi roncar no sofá da sala. Me aproximei e ele entreabriu os olhos. Rosnou. Ele rosna quando quer carinho. Ele não sabe da janela e dos gatos. Mas eles estarão sempre lá.

O dia foi mais quente, o sol nasce mais cedo. Ela descobriu que lojas de materiais de construção podem permanecer abertas. Perguntou se eu não queria comprar tinta pra parede. Acho que vou passar a noite na janela. Quem sabe eu vejo um gato.

Dia 3
Alan: Allan, desculpa te encher com isso, só preciso de duas informações: o nome completo do Flávio e onde ele morava no Brasil... Ele é daí de Piacenza mesmo, né?
Opa, já achei tudo aqui no perfil, valeu!
Eu: Alan, primo serve é pra encher o saco mesmo, pode aproveitar. O Flavio Prada mora em Riva del Garda, mais ao norte. Ele é de Limeira, ou de Americana. Responde aí, Flavio!
Alan: cabei de ver que ele tá aqui também! Valeu, Flávio!
Eu: Porra, o cara é o único que está em quarentena e não está no Facebook nem atende celular. Acoooorda, Flavio!, ou eu vou espalhar daquela vez que... última chance, hein? Vou te dar a ficha completa: Flavio Honorino Riccardo dos Santos Sardinha da Silva Prada nasceu não se sabe quando. Casou com Marly Kerpe Prada – estamos providenciando a canonização em vida dela pro mês que vem – com quem teve três filhos, Beatriz, Julio e Marcelo. Foi preso diversas vezes por tocar música brega entre Americana e região, até optar pelo rock. Apesar da convivência com o pai, os filhos, protegidos pela Santa Marly, cresceram saudáveis e fundaram uma banda...
Flavio: Ahahahah ! Desculpa aí. Eu tava jogando no computador. Nome: Flavio Prada
Eu: ...Ops! acordou.
O resto do papo foi entre eles e vai entrar para a história.

Dia 4
Dia de luz, festa de sol e um silêncio imenso.
Com cheiro de cachorro de banho tomado, o Shiva passeou tarde. Depois, passeou à tarde. À noite, passeou de novo. Estranhando o ritmo dos dias, sem ficar sozinho. Gosta de caminhar com as ruas vazias, como vazias estão nesses dias. Vai buscando cheiros aqui e ali, tranquilo por ter-me ao seu lado, conferindo-me com os olhos. Tem uivado pouco para as sirenes das ambulâncias. Também elas, as ambulâncias, têm diminuído, diferente dos dias anteriores à quarentena. Uma quarentena anunciada para poucas semanas para não assustar, mas que deve durar o suficiente para debelar a situação. Giuseppe, nosso amigo carabinieri aposentado, deixou a UTI. Uma excelente notícia. Mais uma vitória sobre o vírus, mais um leito de UTI livre.
Uma nova preocupação acontecerá no pós quarentena, quando as medidas sanitárias não poderão ser esquecidas. O preço seria uma medida mais restritiva.

Mas, por enquanto – e pra todo o sempre – a preocupação dele, o Shiva, é passear. E me vigiar ao lado dele.

Dia 5
Ontem à noite ligaram e avisaram a ela que foi detectado um caso de coronavírus e que a partir de hoje estarão fechados. Agora somos em três isolados em casa. Estamos tranquilos e aproveitando a ausência de compromissos para ler, rir, tomar vinho e fazer nada. 

Saímos, eu e o Shiva, bem cedinho pro primeiro passeio do dia. Encontramos com uma amiga médica infectologista, que trabalha aqui no hospital no departamento de doenças infecciosas. Estávamos sem máscaras – que devem ser deixadas para os que realmente têm necessidade e para fazer compras – e trocamos um sorriso e um “que confusão, hein?”. De longe. Que falta faz a proximidade, trocar um aperto de mãos, abraços. As interações virtuais já não bastam. Aquelas físicas, bem, melhor não.

Uma talentosa amiga deverá assumir uma cadeira como docente numa importante universidade brasileira. Só falta essa epidemia pandêmica doente passar para que ela possa tomar posse. 

As ruas, praças e jardins estão absolutamente vazias e silenciosas, depois das onze da noite. Caminhamos com calma, cheirando cada migalha, árvore ou pedaço de grama. Ele examina cientificamente alguns odores. Nunca saberei suas conclusões ou teorias. Ele me olha e retribui o meu sorriso curioso com a cauda, complacente pela minha ignorância.

Dia 6
Estou impressionado (positivamente impressionado, diga-se) com a diminuição da poluição nos países afetados pelo vírus, em quarentena. Fotos de satélites mostram como a Terra vem providenciando uma faxina do que despejamos na atmosfera.

Quando todos os países estiverem em quarentena, o próximo passo será a limpeza dos mares. Peixes, tartarugas, leões marinhos, gaivotas, baleias e todos os habitantes das águas regurgitarão nas praias todo o plástico e lixo acumulados. Siris, tatuís, crustáceos, moluscos, anelídeos, gastrópodes, aves marinhas, vôngoles, corruptos, ouriços e outras formas de vida das areias, alguns microscópicos, levarão o lixo para nossas ruas, praças, jardins e cidades. Não poderemos jogar tudo no mar, novamente. O trânsito ficará intransitável, com montanhas, colinas e montes daquilo que jogamos no mar ou nas ruas, que foi levado ao mar através de bueiros, que descarregam nos rios, que desaguam no mar. 

Nós, humanos, não poderemos nem mesmo queimar tudo, pois estaremos perenemente vigiados por outros animais do ar e da terra. Seremos obrigados a encontrar uma solução do que fazer com todo o material devolvido e não simplesmente encontrar um outro lugar para depositar tudo, que o tudo será muito e não caberia em aterros. Só depois poderemos reiniciar uma vida próxima da que havíamos antes, mas diferente. Muito diferente. Não poderemos nunca mais jogar o lixo fora. Porque o “fora” não existirá mais. Nunca mais. Caranguejos, orcas, lulas gigantes, pelicanos, tubarões, pinguins e todos os animais aquáticos permanecerão vigilantes, próximos às praias. E os animais das florestas tornar-se-ão em feras protetoras das matas, córregos, lagos, igarapés e nascentes. Teremos que transformar o lixo em algo útil, ou viver com tudo o que produzimos, sem jogar nada fora.
Porque o “fora” não existirá mais. Nunca mais.

Dia 7
Ela iniciou hoje o quebra-cabeça de remontar o pinguim da geladeira. Sim, um pinguim de geladeira. Anos atrás ela pediu à mãe, Dona Inês, que lhe trouxesse um de presente e nós rimos muito. Minha sogra, na viagem seguinte à Itália, tirou da bagagem, desembrulhou e entregou-lhe, rindo muito. Seu Zé, com sua sabedoria simples, observava silencioso e divertido o ritual de colocar o presente no devido lugar, em cima da geladeira, claro. E ali ele permaneceu por anos.

Quando adotamos o Shiva, ainda não tínhamos ideia do comportamento ansioso dele. Sim, sabíamos dos estragos nas casas dos que o adotaram antes de nós, mas a teoria é outra, na prática. Até entendermos a ânsia de separação do nosso vigoroso pitbull e descobrirmos que o barulho da campainha e o interfone, quando estávamos fora, o deixavam muito excitado, ele já tinha destruído quase toda a casa e uma parte do carro. Com a descoberta, florais de Bach, óleo de CBD e o hábito de deixar campainha e interfone desligados, o bicho acalmou. 

Foi logo depois da decisão de desligar a campainha e o interfone (ele também enlouquecia com o barulho da impressora) que ela um dia pediu, antes de sair para o trabalho: “Shiva, pode destruir a casa toda. Só te peço pra não quebrar meu pinguim.” Quando cheguei em casa no final do dia, as lágrimas dela misturavam raiva e tristeza. Ela me olhou sem dizer nada e não aceitou nem mesmo o meu abraço. Guardou os cacos do pinguim que tanto fizera rir amigos italianos, que não entendiam o sentido de ter um pinguim em cima da geladeira. O presente, assim como Dona Inês e Seu Zé, não existia mais.
Talvez exatamente por nos recordar os muitos momentos com meus sogros, talvez porque, apesar dos momentos ruins, não podemos deixar de rir, talvez por motivos íntimos do coração de filha, ela decidiu que era hora de reconstruir o presente. Sem pressa, como deve ser tudo o que fazemos nesse período de isolamento. Claro, faltarão alguns cacos, não será perfeito, mas o pinguim vai voltar para o lugar dele. Mesmo que ela decida que o lugar dele é dentro de uma caixa num armário.

E é assim que vivemos esse tempo de lentidão e recolhimento. Reunindo cacos, colando pedaços, lembrando quem não está aqui, almejando novas risadas e amigos. Hoje tudo é espera e esperança. Inclusive aquela do Shiva não subir mais na geladeira.
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