Gianni tem 72 anos, mas parece ter um vinte a menos.
Média estatura, magro, sorriso fácil. Ele e a atual esposa – vinte anos mais
jovem – são ciclistas apaixonados. Viajam de bicicleta por toda a Europa. E foi
justamente uma bicicleta que o trouxe até aqui. No sentido figurado, ao menos.
Passeavam numa tarde de domingo pela val Trebbia quando decidiram ir
para a val d’Aveto e encontraram uma cratera. No final das contas, foi
uma ambulância que o trouxe. Nenhum osso quebrado, só uma luxação num dedo da
mão esquerda e um enorme hematoma nas costas, o que minimizou o joelho inchado
e os muitos arranhões. Alguns leves, outros, profundos. A forte dor nas costas
o impossibilitava de ficar em pé, que dirá de caminhar. Os muitos exames não
revelaram traumas na cabeça, só no bolso: a bike de mais de seis mil euros
acabou no ferro velho. Gianni tem apenas três dedos na mão direita. Uma prensa
hidráulica lhe esmagou a mão trinta anos atrás. Tinham-na dada por perdida e
seria amputada. Foi o médico bebum, idoso e desacreditado quem decidiu que meia
mão era melhor que nenhuma. O indicador foi transformado numa pinça para
permitir pegar objetos. E Gianni estava lá, adaptado e feliz. Feliz por não ter
quebrado nada, feliz pela sua esposa passar quase o dia inteiro com ele, feliz
com a meia mão. Fez amizade com todo mundo, sorrindo e batendo papo.
—
Gianni, você precisa se esforçar. Procure levantar e caminhar um pouco, mesmo
com alguma dor.
Ele
olhou o médico e não disse nada. As pupilas e narinas se expandiram, a
respiração mudou de ritmo. Só olhava.
Enrico foi largado no hospital. Pelas caras da esposa
e da filha – acho que era filha – ficou claro que fora levado contra a sua
vontade para o hospital. Passou os primeiros quatro dias deitado sem falar ou
reagir, apenas alguns “não sei” quando o médico perguntou que remédio tomava
para o coração, para o diabetes e outras questões de saúde. A mesma bermuda, a mesma camiseta, barba por fazer e
uma absoluta ausência do mundo. Vinte e quatro horas de silenciosa imobilidade
por dia. Ia ao banheiro, pé enfaixado mancando, beliscava a comida que traziam,
dormia e mergulhava na mudez. No quinto dia reapareceram a mulher e a filha.
Levaram roupa limpa, pijamas, produtos de higiene e um pouco de conforto. Aos
poucos descobriu-se que Enrico tem 74 anos, o pé direito em péssimas condições
por causa da doença e um cateterismo que identificou a necessidade de uma
angioplastia. Enrico serviu o Exército Italiano como paraquedista, trabalhou na
construção civil e criou com a esposa as duas filhas. Aposentou-se e foi
prestar serviço no bar da esquina. Cabeça dura, se recusava a ir ao médico e
evitava passar perto de hospitais. Homem rude, um verdadeiro “duro”, Enrico.
Sorriu quando recebeu a visita do neto de treze anos, internado por um pé
quebrado no futebol, levado em cadeira de rodas ao quarto do avô. A outra vez
foi quando um OSS (Operador Sócio Sanitário, o antigo auxiliar de enfermagem)
se propôs a fazer-lhe a barba. Um sorriso de menino no espelho e um curativo no
pequeno corte da lâmina de barbear. Um novo cateterismo, duas angioplastias e a
proibição de colocar o pé direito no chão. A situação era complicada e teria
que ser operado. Enrico continuaria internado, esperando a cirurgia. Ele mesmo
declarou que não voltaria ao hospital, caso saísse. Descobriu-se que a esposa e
filhas tinham ido todos os dias ao hospital naqueles primeiros quatro dias, que
advertiram que ele não voltaria, que tinha sido levado praticamente à força, o
que as fez abandoná-lo, no início. Enrico, emburrado atávico, mas de coração
bom, diabético, cardiopata e silencioso.
Domenico velho de guerra. De família numerosa, recebia
visitas o dia inteiro – inclusive fora do horário de visitas – de amigos,
ex-funcionários, parentes e conhecidos. Reclamava. Casado a mais de cinquenta
anos, dividia a atenção entre a esposa, os filhos, amigos e ex-colegas.
Reclamava do sol, da chuva, do calor, do frio do ar-condicionado, da comida do
hospital, da pouca atenção (sic) da equipe médica, da limpeza (duas vezes por
dia), da política, do mundo e até de você, que nunca o viu mais gordo. Com 78
anos, era um eterno insatisfeito. Reclamava do colega de quarto, Enrico, que
nunca falava, que ia ao banheiro e não o deixava limpo, que parecia um bicho,
como se Enrico não estivesse ali, ocupando uma das três camas do quarto.
“Aquele ali não é normal”. Nas poucas vezes em que não havia visita com ele,
colocava ambas as mãos no peito, junto ao corpo e praticava um lento e contínuo movimento com os dedos,
fazendo o polegar deslizar nos outros dedos, do mínimo ao indicador. Se
percebia que alguém notava, explicava que era um truque hindu para acalmar a
mente. O diabetes tinha causado um estrago no pé direito e ele estava ali para
uma nova cirurgia. Nos horários estabelecidos, as enfermeiras entregavam os
remédios a cada paciente, tudo muito controlado. Ele agradecia, esperava a
enfermeira sair, escondia os remédios que lhe foram entregues e tomava os que
trouxera de casa. “Ah, esses médicos não sabem de nada. Esses remédios
genéricos não têm a mesma eficácia dos de marca. Sou eu o meu próprio médico.”
O
controle no hospital é rigoroso, tudo registrado e anotado, remédios com hora
certa, dietas sendo respeitadas, limpeza, organização e cuidados acima do
esperado.
Gianni
voltou a andar quatro dias depois de dar entrada, com o auxílio de duas
muletas. Mais uma semana, um procedimento cirúrgico para a aspiração do
hematoma nas costas e tornou a caminhar normalmente, carregando pra cima e pra
baixo um saco de drenagem com o tubo inserido nas costas. Recebeu alta poucos
dias depois. Llivre da drenagem, comprou uma bicicleta nova e contratou um
advogado para processar a prefeitura onde se encontrava a cratera. Atualmente
está pedalando por aí.
Domenico
foi transferido para outro hospital, sempre reclamando (mais de cinquenta anos
de casado, santa esposa), para submeter-se à nova cirurgia. Vai reclamar até o
fim dos tempos. E isso é tempo pacas!
Enrico
continua internado, aguardando a cirurgia. Poderia ter ido pra casa esperar a
nova internação com tranquilidade e conforto, mas se sair, Enrico não volta.
Ah, não volta, não.
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Obs.:
val Trebbia e val d’Aveto são as zonas adjacentes do rio Trebbia e do
riacho Aveto, respectivamente, e não apenas o vale dos cursos d’água.
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