Fui funcionário comercial da Brahma nos anos 90.
Foi lá que comecei
a me interessar pela história dessa antiga e popular bebida, não apenas
profissionalmente. Fui só até aonde a minha
curiosidade exigiu, impulsionado pela polêmica Lei da Pureza. E, antes
de mais
nada, deixo registrado que na minha opinião tudo é questão de
preferência.
Tomar uma cerva de sabor suave, estupidamente gelada em Salvador (onde o
garçom apanha se
servir diferente), é coerente; tanto quanto beber uma loira, escura, ou
vermelha encorpada a seis, oito graus, no inverno europeu. No começo a
gente até
insiste, mas com o tempo se abre a novas experiências e descobre novos
prazeres.
A idade da cerveja? E quem sabe? Os historiadores
localizam a invenção da cerveja entre quatro mil e nove mil anos atrás. O certo
é que a Código de Hamurabi já estabelecia algumas regras para a produção e
comercialização da cerveja, no ano de 1760 a.C, estipulando até mesmo o consumo
diário dos babilônios: de cinco litros para a elite do poder (sumo sacerdote e
alguns graúdos da administração pública), três litros para os funcionários do
poder e dois litros para os trabalhadores comuns.
Definição de cerveja: bebida a ser consumida em
companhia, que pede socialização, alegria, festa, praia, churrasco... Ops!
Desculpem, é o que eu associo à cerveja. Recomeçando: cerveja é qualquer bebida
à base de cereais fermentados, normalmente condimentada com ervas e adição de
açúcares (frutas, mel...). A partir dessa definição, podemos baixar as armas e
parar de defender qualquer lei que restrinja as opções. Sabem quantos tipos de
cervejas existem? Não? Tudo bem, ninguém sabe, mas são milhares, desde que
sumérios, egípcios, ibéricos e outros povos começaram a produzir e consumir. Também
existem outras matérias primas utilizadas, em menor quantidade, como o agave no
México (aquela planta da tequila), raiz de mandioca na África, sorgo, arroz,
milho, batata... Basta ser fonte de amido e estar sujeita à fermentação
natural. Não tem que ser cereal.
Lá naqueles anos 90, a água fazia muita diferença no
sabor da bebida. Ainda faz, mas as tecnologias desenvolvidas para tratar a
água, reduziu parte do problema no produto final, homogeneizando o que antes
era diferente. O ideal é que a cerveja seja adequada à fonte de água
disponível: água dura (com maior concentração de sais, como cálcio, ferro...) é
mais indicada para cervejas encorpadas; água mole (com menos concentração de
sais), para cervejas mais leves, como a do tipo pilsen, largamente consumida no
Brasil.
Muitas foram as receitas da cerveja desde a Antiguidade,
cada mestre cervejeiro tinha a sua própria fórmula secreta. Durante a Idade
Média o uso do Gruit era a regra. Gruit era uma mistura de temperos e
ervas, que conferia um sabor marcante e aromas convidativos. Acontece que não
existia uma receita fixa, cada região produzia o próprio Gruit e, não raro, essa mistura incluía plantas alucinógenas que
provocavam intoxicação.
O lúpulo – planta da família Cannabaceae, do gênero Humulus,
da espécie H. Lupulus (na verdade usa-se
somente a flor da planta feminina) – vinha sendo usado na produção da cerveja
desde 1.079, mas só a partir do início do século XVI começou a ser usado nas
cervejas da Inglaterra (uma das três principais escolas cervejeiras, junto à
Alemanha e à Bélgica). É o lúpulo que confere o sabor amargo e o aroma
característico da cerveja no lugar do Gruit,
além de ser ótimo conservante e contribuir para a formação e retenção da espuma
da cerveja. O lúpulo é usado em dois momentos da produção da cerveja: no início
da fervura, para dar o amargor da planta e no final da fervura, com o objetivo
de aromatizar a bebida.
A famosa lei da pureza – na realidade um instrumento
político, econômico e de marketing – não tinha a pretensão de ser tão influente
assim. Tampouco foi uma lei alemã, mas sim uma lei bávara, regional. O primeiro
decreto que regulava a qualidade da cerveja (veja bem: a qualidade do produto
final, e não a produção da bebida) na Baviera foi promulgado em Augsburg, no
ano de 1156. Estabelecia como punição o confisco do estoque e multas a quem
servisse cerveja de má qualidade ou que trapaceasse na quantidade a ser servida.
Ainda antes da Reinheitsgebot, a lei alemã da pureza da
cerveja, Nuremberg, em 1293, Munique, em 1363 e Ratisbona, em 1447 também
criaram leis regulamentadoras. Depois, entre os séculos XV e XVI, diversas
cidades criaram leis semelhantes em quase toda a Alemanha. Somente em 1487
Munique promulgou um decreto estabelecendo quais ingredientes poderiam ser
usados na produção da cerveja, mas era um decreto local. Em 1493 a lei Biersatzordnung
ampliou para boa parte da Baviera a restrição da matéria prima a ser utilizada.
Ficava determinado o fim do Gruit com
a substituição pelo lúpulo, além da água e da cevada.
A data de 23 de abril de 1516 só ficaria famosa muito
depois da Lei da Pureza entrar em vigor. Foi o Duque da Baviera, Guilherme IV a
estabelecer que os únicos ingredientes permitidos para a produção da cerveja
fossem a água, a cevada e o lúpulo. O que não impedia que a família do duque
continuasse a consumir “bebida fermentada de trigo”, que tanto apreciavam.
Somente no fim do século IXX, quando os estudos de Louis Pasteur levaram ao
conhecimento do levedo, o fermento passou a integrar os ingredientes da
cerveja. Mas a tal lei não tinha interesse na qualidade da cerveja. Pelo menos
não era esse um dos objetivos principais.
Naquela época o trigo e o centeio eram disputados entre
cervejeiros e padeiros, o que fazia o preço do pão oscilar. Como o pão era a
base da alimentação dos pobres – a maioria da população – a lei da pureza
visava controlar o preço e o fornecimento da matéria prima do pão, assim como tabelar
o preço da cerveja. De quebra, aproveitava para atingir o bolso à família
Degenberg, que detinha o monopólio do trigo na região e era rival da família do
duque (os Wittelsbach). Mais: com a inclusão do lúpulo como ingrediente da
cerveja, proibia-se o uso do Gruit e,
com isso, limitava-se o poder da Igreja Católica, que detinha o direito de
distribuir e permitir o uso do Gruit
e de cobrar taxas. Historicamente, a Igreja Católica dominou – e ainda domina –
a região bávara, em contraposição à Igreja Protestante, no norte da Alemanha.
Outros dois motivos pela escolha do lúpulo foram a
conservação e a disputa de mercado. As cervejas da Liga Hanseática (a aliança
entre cidades mercantis do norte da Europa) já usavam o lúpulo há muitos anos,
o que permitia exportar a cerveja com segurança. No início do século XVI o
lúpulo passou a ser utilizado como ingrediente da cerveja na Inglaterra. A
cerveja inglesa viajava por meses até a India e chegava com amargor e aroma
pronunciados, conquistando os súditos da coroa do outro lado do mundo. O uso do
lúpulo nas cervejas bávaras tinha como um dos objetivos a disputa por novos
mercados.
Pois bem. A Reinheitsgebot foi uma lei que estipulava a
matéria prima para a produção da cerveja na Baviera. Água, malte de cevada e
lúpulo eram os únicos ingredientes permitidos na produção da bier (cerveja, em alemão). Claro que houve
quem continuasse produzindo com outros cereais, em pequenas quantidades, só não
podia chamar de bier. A
Reinheitsgebot foi adotada em toda a Alemanha em 1906 e continua em vigor até
hoje, mas foi modificada e é mais uma orientação que propriamente uma lei.
Muitos cervejeiros usam o termo “Lei da Pureza” como selo
de qualidade, como se cerveja de trigo ou de outros cereais fosse de qualidade
inferior. Não é. Mas uma mentira repetida por muitos durante muito tempo, soa
como verdade. E, afinal, a indústria cervejeira alemã não podia perder a
oportunidade de se distinguir.
Há anos a indústria cervejeira usa o High Maltose como
complemento. Trata-se de um xarope de milho que serve para baratear o custo de
produção. Como os demais açúcares que podem ser adicionados, serve para a
produção do álcool na cerveja, ou do CO2, no caso da refermentação. O arroz
também é muito utilizado (pensem na China...), tudo dentro da lei de cada país.
O que não acho correto é a adaptação de cervejas
importadas, que passam a ser produzidas no país. Não respeitar o sabor e aroma
originais é desconcertante. No Brasil foi estabelecido um padrão de produção
barata, transformando cervejas saborosas em insípidas. Mas não me importo com a
composição, se tem milho, arroz ou outra matéria prima que não faça parte da
lei da pureza. Me interesso é pelo sabor e pela qualidade. Se gostar, até posso
ter curiosidade pelos ingredientes e pelo método de produção. Mais: evito tomar
cerveja que tenha viajado muito, o que significa que no Brasil só vou tomar
cerveja local. Cerveja oxida com o tempo, sacudindo dentro de navios ou
caminhões, sofrendo choques térmicos, exposta à luz... Além disso, cerveja para
exportação costuma ter algum conservante, estabilizante e permanece em contato
com a embalagem por mais tempo (latas são revestidas por uma camada de plástico
– antes, Bisfenol-A; agora, Bisfenol-S; rolhas metálicas têm o selo plástico).
Prefiro não arriscar. Quer me fazer feliz? Me convide a tomar uma cerveja numa
cervejaria artesanal.
Para o produto destinado ao consumo interno, a Lei da
Pureza ainda é respeita na Alemanha. Mas a cerveja para exportação
está livre dessa amarra. E aí fica a questão: se até os alemães produzem e
exportam cerveja fora da tal lei, que sentido ela têm? Simples, é puro
marketing. Claro que existem muitas indústrias – não só alemãs – que exportam
cerveja produzida dentro da velha lei, mas, repito: é puro marketing.
E você aí perdendo litros e litros de oportunidades,
hein?
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