Sunday, June 15, 2014

O bode



Daí que o bode escorregou e ficou pendurado no abismo. Situação muito estranha, pois bode que é bode não escorrega nem fica pendurado em abismos. Além disso, o bode conhece bem a região, está acostumado a fugir da onça e a beber água no rio quando o jacaré não está por perto. O bode é – digamos assim – macaco velho. Além disso, sofre de vertigens; nunca se aproximou do abismo. Como aconteceu dele estar pendurado no abismo, eu não sei. Eu só sei que foi assim.

O sol esquenta a moleira do bicho. Olhos estalados, boca fechada, que bom cabrito não berra. No caso, bode. Mas tá lá, na beira do abismo. Ninguém sabe, ninguém viu como foi; coisa estranha mesmo. Não dá pra subir, pra baixo tá muito longe e também não dá pra ficar ali. E o bode que nem é de filosofar, quer apenas sair dali. Aguçando bem as orelhas, sente o respiro e o farejar logo ali em cima. Mudo estava e mudo permaneceu.

Lá embaixo a água tem movimentos suspeitos. O bode estala os olhos e elimina definitivamente a alternativa de megulhar lá de cima. Jacarés também não fazem escândalo. Nem quem ronda ali em cima. Presas e predadores são sempre silenciosos. Até a grama do bode cresce sem barulho. Um mundo mudo de armadilhas e escorregões, o importante é não dar na vista. E disso o bode sabia muito bem. Só não sabia como tinha ido parar numa situação daquelas, como iria sair e se escaparia de ser devorado. Em todo o caso, o silêncio é ouro. Matutar quieto. A torcida para ele tomar a decisão errada e deixar a pele é só o que existe. Matutar quieto.

A tardinha ameaça a virar noite, quando todos os gatos são pardos. Bode, onça, jacaré e a plateia espreitam o escuro para adivinhar o futuro, mas o futuro ainda nem é madrugada. Quando o Sol despontar, nem bode, onça ou jacaré estarão lá. O presente será passado e o bode – se sobreviver – não vai se gabar. Nem fazer escândalo. Só a grama vai saber se deu bode na cabeça, que nem tem no jogo do bicho, só no jogo de vida e da morte. Sem Severina, sem nada.

Como aconteceu do bode estar pendurado no abismo, eu não sei. Eu só sei que foi assim.
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5 comments:

author casulo-online said...

Bem reflexivo a e-h-stória do bode... rss... mas é bem assim, viver é se ver, em alguns momentos, "sem Severina, nem nada", e sem saber para onde aponta o sol. O que não podemos é ficar na zona de conforto, seria se jogar pro abismo apenas com a coragem do fim, mas não da verdadeira luta.

Claudinha ੴ said...

Ah pobre do bode, da história que deu bode!
Me diverti!
:)

Claudinha ੴ said...

Ah pobre do bode, da história que deu bode!
Me diverti!
:)

denise rangel said...

Tenho cisma com finais abertos. Gosto de desfechos. Felizes ou trágicos, não importa. Quero saber que bicho vai dar! :)
abraço, garoto

Bah said...

Literalmente deu bode kkk

k!