Sunday, July 22, 2012

Guido


Ele contava histórias do tempo da guerra. E sorria um sorriso tranquilo de quemmuito fez as pazes com o passado. Riu muito ao contar quando uma bomba explodiu na oficina onde trabalhava, segundos depois dele ter saído correndo, avisado pela sirene que lhe berrava nos ouvidos; riu ainda mais quando contou da segunda bomba, que caiu no momento em que ele espiava por trás da parede da casa vizinha para observar os estragos na oficina, e o deslocamento do ar o jogou longe.

As pizzas saíam do pequeno forno a lenha no quintal em quantidade industrial. A fome também era industrial (ou foi o Stefano que se mostrou tão bom pizzaiolo que acabou atiçando a vontade de quero mais); o chá gelado e a cerveja substituíram o vinho. Uma lembrança puxa outra e as risadas continuaram. Contou de ovos escondidos na palha do estábulo da vizinha. Ovos devidamente esvaziados através de um furo de agulha e habilmente chupados pelos garotos que cuidavam da propriedade da ávara senhora; contou como dançavam à noite na penumbra, ao som do gramofone quebrado que obrigava ao voluntário da vez a manter o aparelho em movimento; contou dos bailes rastapés e dos poucos salões de festas que sobreviveram, num dos quais conheceu Irene, a mãe do Stefano.

A primeira tempestade de Verão da temporada vai deixar saudades. Raios e trovões movimentavam a mata que nos envolvia. A Benê empenhada em nos fazer sentir a vontade na imensa varanda da casa de campo, de onde observamos a chuva chegar trazendo mais alvoroço que água. Nem as galinhas se incomodaram com a chuva que caía junto com a noite. Guido e suas histórias lembram Seu Zé, que tem o mesmo tipo de sabedoria simples e a mesma simpatia lúcida. Ele evitou falar dos irmãos, mortos na praça.

Chuva de relâmpagos, boa companhia, boa pizza e Guido que contava das dificuldades e do racionamento; que cada um tinha direito a 150 gramas de pão por dia, um cubinho de manteiga duas vezes por semana, um maço de cigarro e meio quilo de carne por semana, e que quem tivesse perdido o ticket ficava com fome. Tempos duros esquecidos na abundância das pizzas. No final, “confundiu” uma garrafa de grappa com uma de laranjada e brindamos aos dias de hoje. Deu um gole e exclamou: “Que bomba!”
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9 comments:

myra said...

meu querido Allan um texto muito lindo e cheio - malgrado aqueles tempos - de poesia...
e uma bela ironia final:)
abraço sincero

peri s;c; said...

Belíssimo texto é finésima frase : " E sorria um sorriso tranquilo de quem há muito fez as pazes com o passado. "

Seremos um dia capazes de um sorriso destes ?

peri s.c. said...

Corrigindo " Belíssimo texto E finésima frase ... "

clabrazil said...

Delícia de ler. Parece até que conheco o Guido.

Que maravilha sao essas pessoas que envelhecem tao bem e nos passam a esperanca que nem tudo está perdido.

Gaspar de Jesus said...

Excelente este seu conto ALLAN !!!
Abç
G.J.

Luma Rosa said...

Guido deve ser uma pessoa agradecida e por isso sorri de tudo que passou. Me fez lembrar de "A Borboleta", versos do poeta italiano Tonino Guerra:

"Feliz muito feliz
tenho sido bastantes vezes na vida
mas acima de tudo quando fui libertado
na Alemanha
porque comecei a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer"

Bom fim de semana!!

Nennafalchi said...

Allan,
Acho incrível como vc consegue ver poesia em tudo. Pensando bem, a vida é poesia para quem é de paz.

BLOGZOOM said...

Allan, gostei da parte quando fala sobre os raios e trovoes que movimentavam a mata que os envolvia e que "nem as galinhas se incomodavam com...", tudo visto e sentido de maneira simples.

Sobre o direito a gramas de pão por dia, minha familia já passou por guerra, já ouvi historias, inclusive do pós guerra na Alemanha, era assim mesmo.


Beijos

Anonymous said...

tio,
escreve mais, tio

pedro luis