Tuesday, October 25, 2011

A Ilha (de 2009)

Em Maio de 2009, quando os primeiros efeitos da crise deixavam perplexos os italianos, escrevi uma alegoria sobre o argumento. Achei oportuno republicar hoje, quase dois anos e meio depois, pois a situação e o humor pioraram muito. Se alguém tiver notícias sobre o navio, não conte a ninguém.



Aos poucos a terra foi desaparecendo até que restou aquela tripa no meio do oceano. O povo que ali vivia se dividia entre ‘de esquerda’ e ‘de direita’, entre sul e norte, ainda que fosse impossível identificar onde era o norte ou o sul. As poucas bússolas giravam sem referência; o sol e as estrelas a cada dia nasciam em uma direção. Tinha-se a impressão de que o último pedaço de terra deste mundo flutuava sobre um lento vórtice.

Eles a chamavam “Nossa Terra”, pois tinha sido proibido referir-se ao lugar como uma ilhaera uma ilha – e todos eram orgulhosos da própria cultura. “A única sociedade que sobreviveu”, diziam. Do resto, discordavam de tudo. Nada era decidido, todos objetavam e denunciavam complôs. Até mesmo quando decidiram construir a nave discutiram e se acusaram mutuamente de plágio, espionagem e processaram-se em uma disputa pela autoria da ideia, que não chegou a conclusão alguma. Foi porque todos se sentiam donos do projeto que o navio foi construído. [E porque – dizia-se à boca miúda – a ilha também iria desaparecer.]

Construíram um imenso estaleiro flutuante, capaz de suportar o navio que abrigaria toda a população. Áreas de lazer, atividades produtivas e, é claro, muito conforto. Para evitar novas acusações e espionagem, a estrutura foi dividida à metade, direita e esquerda, e um tapume escondia o que cada parte fazia. A esquerda caprichou na biblioteca, no salão de debates e nos diversos bares para onde convergiriam as muitas facções partidárias. A direita não deixou por menos no suntuoso e único restaurante, no salão de festas e no palanque eleitoral. O tempo foi passando e a barulheira era infernal, vinte e quatro horas por dia. Na data marcada a grande nave estava pronta. Coberta, mas pronta. A direita desejava fazer uma grande festa, mas a esquerda achou um desperdício e começou a derrubar o tapume. O povo foi subindo aos poucos, deixando aquela tira de terra que começava a alagar. Como previsto, o peso dos moradores fez a estrutura ceder e o navio começou a flutuar.

Os líderes das duas partes se encontraram no meio do navio e tiraram as últimas peças que dividiam a nave. Finalmente todos no mesmo barco. A direita logo apresentou seus planos de navegação, mas a esquerda discordou:
-- Iremos na direção em que aponta a proa. Fácil!

A direita deu de ombros:
-- A proa aponta para a direita. Iremos pra .

-- Fomos nós que construímos a proa. – Retrucou a esquerda – Pilotamos nós o navio. Para a esquerda!

então se deram conta de terem construído duas proas. O navio não tinha popa nem motores ou leme.

-- Vocês tinham os operários e a matéria-prima. Por que não fizeram a popa e os motores? – Questionou a direita.

-- Mas se as indústrias e os engenheiros estavam nas mãos de vocês… – Acusou a esquerda.

-- Mas se as fábricas ficavam no sul, a parte pobre e esquerda da ilha

-- Mas se eram vocês a ter o projeto nas mãos… Blá, blá, blá

-- Acontece… Blá, blá…

-- Blá…

A terra começava a desaparecer, a nave flutuava à deriva e a discussão ameaçava não ter fim. As vozes iam desaparecendo na imensidão daquele oceano único, azul-escuro como a noite que começava a cair. No horizonte grossas nuvens se formavam. E eles rumavam para a tempestade.

-- Blá, blablá, blá!

-- Blá, blá…

8 comments:

Unknown said...

é esperar pra ver...
o que mais podemos fazer?

myra said...

MAIS QUE OTIMO!!!!!!!
que podemos fazer? esperar, mas as vezes , esperar tanto se desespera...
um gde abraço

Menina no Sotão said...

Olha, o meu bisavô falava da crise na Itália. O meu nono também e adivinha de que falava o meu pai. E adivinha do que eu ando falando nos dias atuais. Parece meio desanimador, mas enfim...

bacio

Luma Rosa said...

Fiquei a ver navios, mas não conto para ninguém!!
Bom restinho de semana!! Beijus,

Antonio said...

Ciao Allan .

Rispondo qua al commento fatto sul mio blog riguardo il recente disastro avvenuto nel territorio di la spezia .
Anche io ultimamente ho limitato la pubblicazione di nuovi post e dei commenti .
Infelicemente il disastro avvenuto è tipico del territorio dove io vivo a causa della morfologia del territorio e in parte anche alla anche alla scarsa sensibilità e capacità di prevedere alcune catastrofi dei nostri amministratori ,

un caro saluto .

peri s.c. said...

Ótimo texto ! O mundo está cheio destes navios.

Anonymous said...

E como é que está a crise agora na Itália, na visão de um morador? Tenho curiosidade pois fui visitar a Europa tem pouco tempo e fiquei horrorizada em como a vida e o ânimo das pessoas mudaram com a crise. Quem sabe você não me presenteie com um post sobre isso?

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Allan, nao é só a Terra Nostra que anda em crise, há piores e sabemos disso.
O que acho interessante nessa terra dividida pelas águas entre esquerda e direita, que ela é uma bota e quem sabe, vai nos dar belo chute no traseiro.

Belíssimo texto.

Boa semana