Thursday, May 05, 2005

Formigueiro Global

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Uma velha piada sobre os equívocos da humanidade:
Um homem e uma mulher se encontram no fim do mundo. Nada está inteiro, só ruínas. As formigas tomam conta de tudo, estão por toda a parte. O homem está sentado sobre os escombros de uma construção, nu. A mulher, também nua, se senta perto dele. Não dizem uma palavra, mas têm a consciência de serem os únicos sobreviventes humanos. Juntos observam as formigas. Milhões de formigas. De repente, uma voz que parece vir das nuvens fala num tom amigável:
- Um dia eu lhes disse que vocês herdariam a Terra…
O homem e a mulher se olham, se reconhecem, reconhecem o local e dizem:
- É verdade! Mas olhe o que nós fizemos. Isso aqui antes era o paraíso e nós o destruímos.
- …Sim, mas agora sabemos onde erramos e o que devemos evitar. Se pudéssemos haver uma outra chance…
A voz, constrangida, responde:
- Desculpem, deve haver algum engano. Eu me referia às formigas.

Comparar um estádio de futebol aos domingos, ou o Coliseu, séculos atrás, com um formigueiro é natural. A saída do supermercado como formigas em volta de um torrão de açucar. Na realidade (mesmo que alguns tenham dificuldade em lembrar) somos animais e temos comportamentos similares, nada de estranho. A analogia poderia ser com as abelhas, uma manada de búfalos ou um cardume de peixes. Ou um grupo de baleias (um meio-termo entre peixe e búfalo).

Não me surpreende o movimento frenético do ser humano, nem a movimentação constante de material e alimentos. Observo sem muita admiração as nossas proezas arquitetônicas em cavar túneis ou construir prédios. As formigas fazem o mesmo sem máquinas ou equipamentos. Nossas estradas são cópias mal feitas das trilhas produzidas pelo movimento organizado delas, que, mais práticas, se adaptam às mudanças geográficas e não perdem tempo com cimento, asfalto e escoamento pluvial. Quando há necessidade, abandonam a velha trilha e partem em outra direção.

O que diferencia o homem dos animais é a capacidade de pensar (que poderia ter sido distribuída de forma mais homogênea, devo concordar), ter consciência da própria existência e modificar o ambiente para satisfazer às suas necessidades. E rir. (Tínhamos um cachorro que ria e tomava cerveja, mas era somente uma exceção que confirmava a regra.) Mas até essas diferenças começam a ser questionadas.

Depois de uma certa idade todos concordam que a vida é curta demais para ocupar-se de profundos conceitos filosóficos, mas não podemos perder de vista os valores que formaram e organizaram a nossa consciência, e permitiram que a aventura humana se prolongasse até os dias atuais (mesmo que um jus-naturalista acredite que tais valores compõem a natureza humana). É essa a questão que tem passado despercebida e que atrai a minha curiosidade.

Lembro que tentaram ensinar-me sobre céu, inferno e purgatório quando era criança. Sinto-me velho como um esqueleto de dinossauro quando ouço alguém falar de céu e inferno hoje, pois há muito aboliram o purgatório. O que se aprende hoje é que quem é bom vai pro céu e quem é mau vai pro inferno. Não há meio-termo nem um lugar onde purificar a alma antes de merecer o paraíso. O resultado é que após cometer o primeiro erro, o jovem desiste de preocupar-se com o céu e opta por tirar o maior proveito possível deste mundo e de quem nele habita.

Como numa colônia, cada um tem uma função: operários vão em busca não só de alimentos, mas tudo aquilo que pareça ser necessário à manutenção e o crescimento do formigueiro. Uma casta especial de machos disputa entre si para fecundar a rainha, que irá gerar os novos operários, que irão manter tudo funcionando. Quando a rainha não produz operários na velocidade desejada, constrói-se uma janela no formigueiro, defenestra-se a velha matriarca e dá-se lugar a uma nova rainha. Esse é um conceito que ainda não assimilamos, mas que poderia nos ser útil.

Quando uma catástrofe se abate sobre o formigueiro, as operárias combatem até o último grão de areia. Ou enquanto tamanduá não saciar a sua fome. Logo depois as formigas reconstroem o formigueiro e a rotina se refaz. Formigas são incapazes de prever o apetite dos tamanduás ou de montar estratégias para desestimulá-los (colocar uma formiga envenenada na entrada, por exemplo). Apenas reagem quando há necessidade ou quando aparece o tamanduá.

Os jornais e TVs italianos despejam diariamente as imagens de uma guerra que ameaçou se alastrar. Madrid e Bagdá, no entanto, continuam realidades longe demais. As pessoas só têm se preocupado com o roteiro das férias que se aproximam. O retorno a uma determinada cidade será descartado porque o hotel não tinha ar-condicionado, assim como o paraíso no Mar Vermelho, montado para os milhares de turistas europeus corre o risco de ficar vazio, por estar mais próximo à zona de conflito (considerando que turistas italianos não abriram mão das férias de janeiro, antecipadamente programadas e pagas, na região do tsunami, posso estar redondamente equivocado).

A guerra e as partidas de futebol são distantes da maioria das pessoas. Confundem-se com as outras ficções apresentadas pela Tv e provocam efeitos similares: você pode ser contra ou a favor. Participar é para poucos.

A movimentação alegórica criada pelo Coliseu, pelos estádios, estradas e supermercados lotados, oferecem a ilusão de que o formigueiro é eterno. Passada a catástrofe basta reconstrui-lo e a rotina será retomada. Me divirto quando penso que estamos cada dia mais parecidos com as formigas, que não têm céu nem inferno, mas têm o tamanduá. Ou parecidos com um grupo de baleias, em constante mutação genética cada vez mais gordos.

Só perde a graça quando percebo que o ser humano começa a diferenciar-se cada vez mais do ser humano.

Ciao.

8 comments:

Biajoni said...

eu, PARTICULARMENTE, odeio aglomerações!

Claudio Costa said...

Filosófico e político, este texto, nos sentidos mais sublimes. Gostaria de tê-lo escrito. Para me consolar, acabo de recomendá-lo, pois o que você disse é bom "pras cabeças". Abraços.

Anonymous said...

Há tempos não aparecia por aqui. Em boa hora o Cláudio Costa deu a dica.
Será que o ser humano tem cura?

Anonymous said...

Cheguei aqui via Pras Cabeças e gostei muito do seu texto, nunca havia parado para pensar dessa forma e é sobre o nosso próprio comportamento. Eu volto. Abraços!

Anonymous said...

Allan, você conhece a história infantil "A Formiguinha e a Neve"? Aquela que tinha (no meu tempo de mãe de filhos pequenos)disco com a voz da "pobre fomiguinha"? É assim a vida...Os homens ao invés de aprenderem com elas tentam torná-la frágil e humanizá-la, pedindo a Deus que "derreta a neve que prende o meu pezinho"...

Anonymous said...

Bárbaro.
Só me diz que 'certa idade" é esta, pois, quanto mais véia fico, mais filosofo e estudo os filósofos, pois aí é que fazem falta.
Angela

Anonymous said...

Meu amigo, este vou ter que imprimir( já fiz isso com outros textos teus) e ir ler na rede. Uma , duas, três... quantas vezes seja preciso.
Estou com as suites de Bach para violoncelo pelo ar... e seu texto deixa um gosto meio ácido, como se travando a língua.
Beijos

Anonymous said...

Formigueiro e conflitos. Nos nossos formigueiros cá temos um prenúncio de conflito. Nada preocupante, apenas uma guerrinha de ironias, piadas e ciúmes. Mas as formigas cabeludas estão iradas.
Parecemos formigas sim. Talvez sejamos (e imaginemos que não somos). Borges explicaria. Ou Kafka.
Só não quero ser barata.