Monday, April 04, 2005

Que Horas São?

Caros e Caras,
Paz e saúde!

O argentino Julio Cortazar, num de seus surrealísticos contos, colocou uma alucinação fantasiosa na mente de um motociclista. O personagem vivia ora num passado de magos e sacrifícios macabros, envolvido com um inseto gigante, ora no seu mundo real, onde ele pilotava não o inseto, mas a motocicleta. A cena se alterna até o ponto em que a alucinação toma conta do presente e a moto passa a ser um sonho estranho, uma premonição de uma vida futura do personagem.

No último domingo de março iniciou o horário de verão europeu, adotado desde a década de sessenta e que vai de abril a outubro. Na Itália chama-se hora legal, para diferenciar daquela outra, a hora solar. O fuso horário entre Brasil e Itália se alonga em duas horas por causa do fim do horário de verão brasileiro. A diferença, agora, é de cinco horas. Por um período do ano, tenho a ilusão de estar menos longe de casa. Com o fim do horário solar, retomo a consciência da distância que nos separa. Mas só na distância, pois esse país mostra, cada vez mais, semelhanças com os costumes que cultivei por anos e com as ladainhas que sempre ouvi.

Muda a página. Os jornais italianos só falam da morte do Papa, de crise, violência e futebol. E política. Aqui, tudo acaba em pizza. Ou em macarrão com abobrinha. Alguém tem uma receita aí?

Zapping. Confiro o bolso. Por mais absurdo que possa parecer, não existe a nota de um euro. Quando da criação da nova moeda, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu evitar desperdícios e projetou a primeira nota com o valor de cinco euros. Ocorre que os europeus estavam habituados a dar pouco valor às moedas, e os motivos para decorar as moedas que deviam ser cunhadas anualmente haviam-se esgotados. Uma necessidade européia que se auto-alimentava: a cada novo evento surgia uma moeda comemorativa (tinha moeda comemorativa até de campeonato de capucheta, aquela pipa feita com folha de caderno!) e a cada lançamento os europeus saíam ávidos à caça das novas moedas para colecioná-las. E, com isso, nova necessidade de cunhar mais moedas…

A realidade dos últimos anos mostrou que tudo o que custa menos de cinco euros parece barato. País com alto índice de longevidade, a Itália descobriu que a parcela idosa da população tem grande dificuldade em lidar com a nova moeda, sendo facilmente ludibriada. Comerciantes espertalhões também se aproveitaram do excesso de confiança dos menos idosos. Um dos efeitos da chegada do euro foi a opção da parte de alguns comerciantes por uma conversão muito particular (não de tudo desconhecida por quem viveu a era do Real), em que mil liras se transformaram em um euro. Um aumento de quase cem por cento, pois um euro equivale a 1.936,27 liras italianas! Como a nova moeda foi introduzida pelo BCE mas (aviso: gargalhar nesse momento é pecado!) o controle da inflação é feito por índices particulares de cada país, fica difícil estabelecer um índice de inflação confiável. Na Itália, por exemplo, o cálculo da inflação contempla fatores como o preço de uma corrida de táxi e tinta para impressoras de computador, como se esses produtos fizessem parte das necessidades básicas de uma família média italiana. Só como exemplo: antes da entrada do euro fui a uma loja de eletrodomésticos pesquisar o preço de um fone de ouvido sem fio, que permite assistir tv na cama sem incomodar o outro (no caso, o outro sou eu). Custava 49.000 liras. Achei caro, não comprei. Em janeiro deste ano, após o Natal, quando os preços caem, voltei à mesma loja para, novamente, curiosar preços e vi o mesmo fone de ouvido por 54,00 euros. Isso num país que tem uma inflação anual oficial próxima aos três por cento. Façam as contas.

Controlo o calendário. Perdeu a graça a capacidade dos meteorologistas italianos errarem todas, como os nossos. A primavera continua tímida, permitindo o alongamento do inverno e o risinho irônico do sujeito no bar, cada vez que saio para fumar o meu charuto sem um capote pesado. Algumas tulipas já deram o ar da graça, mas foram dizimadas pelo frio que vai e vem. O sol nasce por volta das seis, mas ninguém sai de casa nessa hora por causa do frio. Sou a única testemunha do vazio das ruas. Eu e minha bicicleta, que os policiais em ronda observam com um olhar desconsolado e um balançar de cabeça, dentro das viaturas aquecidas. Os meteorologistas mostram mapas, movimentos das nuvens e das massas de ar quente e garantem chuva, mas o sol aparece e permanece. Junto com o frio.

A agonia e morte do Papa, num mundo organizado e regido por normas católicas e explorado pela televisão, tem contribuído para aumentar a sensação de fim de século, de confusão, como quem vai para casa depois de assistir um empate de zero a zero. Não católicos permanecem num silêncio respeitoso, cultivando a paciência de quem conhece o momento justo de calar.

Bocejo. Há um ano, o senador Umberto Bossi saiu do coma induzido por causa do terceiro infarto. Mesmo assim, manteve-se caldo, convalescendo, o que tem colaborado para a redução do besteirol típico da política italiana. Mas o primeiro-ministro Silvio Berlusconi ocupa todos os espaços vagos para informar que a Itália está no caminho certo, que a economia vai bem, o índice de desemprego tem diminuído e os salários aumentado. E para que tudo isso continue indo bem, basta ele ser reeleito.

Clic. É por essas e por outras que, às vezes tenho a sensação de estar dentro do conto do Cortazar, ora na moto européia, ora com o inseto brasileiro. Vou tomar outra cerveja.

Ciao.

6 comments:

Anonymous said...

Allan, teu estilo é hipnótico e fico meio bêbado com essa vida italiana que parece subir volteando em espiral como uma fumaça. Aqui o Brasil segue em espasmos em direções múltiplas. Nas manchetes o mesmo Papa que alguns anos atrás era tachado de o mais conservador entre os últimos, recebe aura de o grande estadista do século. No congresso o Severino testa o quão sacana pode ser. Deus me livre de charutos. Abraço.

Leila Silva said...

Allan,

Todo mundo precisa acreditar em alguma coisa, ne? Acredito que vou tomar uma cerveja :).
Voce tem toda razao, a gente agora anda com uma sacola de moedas. Eu, que nao estava na Europa no momento em que o euro foi implantado, estranhei e tive que comprar outra bolsinha de moedas, na carteira normal nao cabia.
A sua cronica esta excelente, esse seu jeito de passar de uma coisa para a outra e depois casa-las e' muito habilidoso.
Abracos
Leila

Anonymous said...

Allan, que texto gostoso de ler. Parece que a gente tá lendo um jornal de meia página, que fala um pouco de tudo.

Anonymous said...

Antes de comentar fomos reler o conto (somos fãs do Cortázar!). Você foi e voltou como no conto.
Abração,

Frank & Gaia

Anonymous said...

Allan
Gosto do seu modo de escrever.Parece uma costura. Primeiro marca, depois alinhava, depois costura e finalmente arremata. O resultado é perfeito.
A propósito do seu texto (não era o mais importante!) acabei de almoçar, macarrão com abobrinha! Aí vai:
Pegue 2 abobrinhas bem verdinhas e tenras e rale com casca até aparecer o miolo, naquele ralador que sai em tirinhas bem finas.Não use o miolo com as sementes.Aproveite numa sopinha. Cozinhe uma massa fina de grano duro. Coloque azeite virgem com um dentinho de alho numa frigideira e deixe dourar um pouco. Em seguida coloque a abobrinha. Um pouquinho de sal e pimenta branca moída na hora. Deixe 1 minutinho só. Escorra a massa e jogue sobre a abobrinha. Sacuda a frigideira e coloque direto nos pratos que vão para a mesa. É um sonho de bom! Eu como sem nada! O gosto do azeite, do alho e o frescor da abobrinha já me deixam muito feliz! Ponha queijo se gostar.

Anonymous said...

sensação de voltar pra casa após um empate de zero a zero. Muito bom!