Caros e Caras,
Paz e saúde!
Esse é o período em que a saudade bate mais forte. O inverno tomou conta da nossa rotina. Até a tradicional falta de neve em Piacenza não se confirmou, tendo nevado nos últimos dez dias, além do frio polar. Vez ou outra sopra uma brisa primaveril que nos ilude e nos convence a deixar os pesados casacos em casa, ousando uma escapada com roupas mais leves. Mas não dura mais de dois dias. A posição do sol incomoda, sempre num ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao horizonte, mesmo ao meio-dia. O pequeno consolo é que ganhamos algumas horas de sol, depois das limitadas oito horas de dezembro.
Fazendo as contas, descobri que os dias da Merla, que são os últimos três dias de janeiro, marcam o meio do inverno no hemisfério norte. No ano passado creio ter contado a lenda desse pássaro, que teria ficado preto por ter-se escondido em uma chaminé nos dias mais frios do inverno. Lembram? Por algum motivo que talvez Freud explicasse, Os dias da Merla funcionam como o ponto de inércia do inverno no imaginário deste povo. É o momento em que as pessoas começam a notar a mudança da temperatura e o aumento das horas de sol. Mesmo sendo fevereiro o mês dos recordes de frio.
O clima da Planície Padana é realmente atípico. Não havendo nevado (de verdade) em Piacenza, resolvemos ir encontrar a neve no Passo Penice, uma pequena estação de esqui a poucos quilômetros. No fim-de-semana seguinte, para contrastar, fomos a Gênova visitar o maior aquário coberto da Europa, onde é permitido tocar as arraias.
De volta a casa, a rotina reinicia: Me levanto cedo e (havendo coragem e ausência de chuva) saio para uma volta de bicicleta ou a pé. Uma hora pelas ruas geladas e iluminadas na madrugada italiana. Sob duas camadas de roupas de ginástica apropriadas para o frio, cachecol, capa de plástico (muito útil contra os ventos gelados) e luvas de esqui, observo o lento e preguiçoso despertar da pacata cidade. Quatro e meia, cinco da manhã. Neste período os carros ficam todos brancos e quem não tem garagem coberta, encontra dificuldades em sair de casa. É necessário aquecer bem o motor antes, raspar pacientemente o gelo grudado nos vidros ou derretê-lo com água morna. Por volta das seis a cena é comum. O gelo também toma conta das calçadas e beirais das janelas.
Ano passado, nessa época, pudemos observar uma experiência raríssima: No Norte soprava um vento polar, com neve cobrindo cidades com até um metro de altura. No Sul, o vento vinha da Africa, elevando a temperatura em Palermo, na Sicília, a vinte e oito graus. Naquele dia saímos para uma volta e descobrimos um dia nublado, pouco antes da neve cair, mas com uma coloração amarelo alaranjado. O dia, as nuvens, as ruas, tudo estava da mesma cor e os olhos não conseguiam se habituar aquilo que parecia um defeito na revelação de uma foto. A sensação era quase desagradável. No dia seguinte, após a pouca neve derreter, descobrimos casas e carros cobertos por uma fina camada de areia do Saara…
A partir do fim de janeiro fala-se muito dos preparativos do Festival de San Remo (ai…) e do Carnaval de Veneza. Mas como essa não é uma festa levada a sério por aqui, fica difícil saber exatamente quando é. Os calendários são desprovidos de qualquer informação a respeito. Vai-se ao trabalho, à escola, a vida não pára nem muda. Até as notícias pela internet não informam sobre as datas, apenas dizem: “…os preparativos para o desfile…” mas sem esclarecer se o desfile ocorrerá no fim-de-semana seguinte ou dentro de um mês. A única certeza apareceu na necessidade de ajudar numa redação de escola, a qual deveria contar o Carnaval da própria cidade. Aí então tive a certeza: é Carnaval! Mas já era sexta-feira e o Carnaval em Salvador começa na quarta…
Cinzas. A neve continua a cair misturada com a fina chuva. E se vocês pensavam que a meteorologia fosse uma ciência exata, podem tirar o cavalo da chuva. Ou da neve. Existe sim a neve misturada com chuva. Os telhados ficam brancos, com uma fina camada de neve, mas o asfalto transforma a neve rala em água. Os carros passam mais lentos, por causa do gelo. As bicicletas passam mais lentas, por causa do vento. A vida escorre como um fio d’água mais denso, quase congelada, no meio fio do calçamento secular da cidade do pisarei e faso’. Nem mesmo o cheiro (resgatado na memória) do acarajé fritando no dendê de Itapoan reaquece os meus sentidos.
A luz alaranjada que toma conta de Salvador neste período quando o sol se põe, me fará recordar (um dia) dos dias da Merla passados em Piacenza. Da mesma forma que a areia da praia e a música de Caetano (“… Eu sou a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma…”) poderão suscitar lembranças italianas. Difícil será reviver a sensação de frio intenso por longos períodos. Hummm… Acho que isso pede uma meditação a dois em companhia de uma garrafa de vinho.
Ciao.
6 comments:
esse foi o alibi ( se tomar vinho for crime...) mais original pra dar uma namoradinha com vinho que eu já vi!
abração ( de uns 30 graus em sampa, abafadíssimos e chuvosos)
Allan,
Neve neve neve por ai, ne? Ate minha irma (vive em Bruxelas) que nao costuma reclamar do clima disse que 'JA BASTA!'. Bom, eu tenho visto muita chuva mas esta bom....Vino, caro mio?! Salute!
Abracos
Estou meio congelada só de ler teu bonito post sobre o inverno em Piacenza. Descobri o Cartas por meio do Cláudio do PrasCabeças, e te garanto que vou viajar mais por aqui. Um abraço e tim-tim! Adelaide
www.meublog.net/adelaideamorim
Allan, tudo ilustra bem as dificuldades de se viver longe da terra de origem. Vejo que você se adapta bem, é o típico homem do mundo. Apesar de me atemorizarem tantas diferenças, acho que me acostumaria. Sou um homem extremamente adaptável.
Abraço.
Ah! mas você não tocou nas arraias...rs. Sempre assim, a inconstancia humana, quando estamos no frio, lembramos do calor e vice-versa. Beijocas, Luma
Allan, que coisa. Você disse: "Naquele dia saímos para uma volta e descobrimos um dia nublado, pouco antes da neve cair, mas com uma coloração amarelo alaranjado. O dia, as nuvens, as ruas, tudo estava da mesma cor e os olhos não conseguiam se habituar aquilo que parecia um defeito na revelação de uma foto." Hoje BH ficou assim. Um espanto, uma sensação de que algo diferente está prestes a acontecer. Senti um certo fascínio e ao mesmo tempo uma coisa parecida com medo, embora não seja essa a palavra certa. Um calorão por aqui. E eu sonhando com o frio. Beijão,
Mônica.
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