Caros e Caras,
Paz e saúde!
Certa vez, ouvi alguém dizer que para avaliar a civilidade de um povo, bastaria observar como as pessoas se comportam no trânsito. Geralmente esse tipo de frase vem precedida de um “segundo a Ciência…”, porque envolver a Ciência dá uma credibilidade pouco contestável. Desconheço a existência de qualquer estudo que possa ser considerado válido, a respeito da relação entre a civilidade e o comportamento no trânsito, mas devo admitir que faz um certo sentido.
O típico motorista de Salvador não chega a ser presunçoso, mas tem um “quê” de arrogância, além de memória fotográfica. Pode dirigir a duzentos por hora e mesmo assim é capaz de identificar todas as pessoas interessantes que cruzaram com ele. Ao encontrar um amigo, pára o carro no meio da rua para conversar e, talvez, combinar a cerveja do início de noite. Se o motorista seguinte decide buzinar, o primeiro colocará a cabeça para fora da janela e dirá – com o típico e alegre egocentrismo baiano: “Você não está vendo que EU estou parado aqui, não?”
Em Piacenza ainda não consegui me habituar a atravessar a rua sem medo, sobre a faixa de segurança. Eles param! Quanto menor o vilarejo, maior o respeito no trânsito. Um corolário óbvio é que nas grandes cidades a situação está mais próxima da nossa realidade, enquanto a Lei de Murphy se aplica o trânsito das grandes cidades do Sul. Na caótica Nápoles, por exemplo, o perigoso é estar fora de um carro (a pé, de moto ou bicicleta).
Uma experiência tão inútil quanto divertida é observar os garotos que passeiam pelas ruas de Salvador. Sozinhos ou em pequenos grupos, eles caminham pelas calçadas (andar pela rua em Salvador pode ser uma experiência única e definitiva) até encontrarem um automóvel estacionado com alguém dentro. No veículo em questão – e somente nele – passam a mão ou dão pequenas batidinhas em tom provocatório. É como mexer com um cão acorrentado: se alguém reclama, eles não dão bola. Mas se o cão estica a corrente ou alguém desce do carro, correm divertidos.
Já por aqui, a arrogância está nos pedestres. Caminhar por algumas calçadas de Piacenza pode transformar-se numa experiência desagradável e ácida: nos fins de tarde os pombos se recolhem nos beirais das casas (pombo não migra) e deixam o registro sobre os incautos pedestres. Talvez por esse motivo, o piacentino prefira caminhar pela rua e olhar aos que buzinam ou aceleram como quem diz: “Você não está vendo que EU estou andando aqui, não?”
O problema, para os motoristas, é que o automóvel em Piacenza – ou pelo menos no centro da cidade – é uma anomalia. As ruas são estreitas e curtas, e foram projetadas para a passagem de carroças e tropas do antigo exército romano. A bicicleta é o meio mais apropriado e todo mundo a usa. A legislação italiana também contribui para transformar a situação num verdadeiro exercício de auto-controle dos que são habilitados a guiar. Causar um acidente irá provocar enormes enxaquecas (no sentido figurado). Basta o motorista ou um passageiro do outro carro alegar uma forte dor de cabeça (no sentido literal) ou no pescoço, para que o médico do pronto-socorro meta um colar ortopédico e mande-o ficar quinze dias em casa. Pronto! O valor do seguro obrigatório vai para as estrelas. Atropelar um pedestre ou um ciclista, então, nem se fale! Perde-se a habilitação, o carro, a casa e a paz.
Morando há poucos meses na Itália, andava de bicicleta quando fui jogado ao chão por um motorista displicente. Como a rua estivesse movimentada e os limites de velocidade costumam ser respeitados durante o dia, não chegou a passar de um susto. O motorista parou imediatamente e, de dentro de um Citroen que deve ter pertencido a Colombo – parece um aquário feito de eucatex e vidro fino, com as portas que se abrem ao contrário – desceu quem eu imagino ter sido o motorista do próprio Cristóvão. O senhor mal se mantinha em pé. Tremia e chorava enquanto tentava pedir-me desculpas no incompreensível dialeto piacentino. As pessoas que estavam em um bar próximo saíram para ver o que acontecia, apesar do frio. Consegui convencê-los de que estava tudo bem, e que eles deveriam preocupar-se com o motorista que, àquela altura, amparado por dois tomadores de café, sentou-se na calçada soluçando e balbuciando. Peguei a bicicleta e sumi no tráfego antes que a situação piorasse e que aparecesse uma ambulância, com a promessa dos samaritanos de que eles cuidariam do desolado e frustrado piloto ancião.
Ao contar o caso aos amigos, fui duramente criticado. Segundo eles, eu deveria ter ficado no chão, chorando e gritando até a ambulância chegar. É como uma aposentadoria: poderia ter parado de trabalhar e receberia uma renda vitalícia.
O seguro obrigatório custa uma fortuna, e todos os carros devem manter expostos num envelope de plástico colado ao vidro, a parte que identifica a companhia seguradora com a data de vencimento bem visível. Mas quem vai fazer uma viagem longa pode comunicar à seguradora e suspender o seguro pelo tempo em que o carro estiver na garagem.
Por aqui os cães não costumam ser acorrentados, e as crianças não têm o hábito de passar a mão nos carros. Mas os motoristas param quando há um pedestre sobre a faixa de segurança. A arrogância dos passantes é coisa dos tempos de Colombo (que na realidade se chamava Cristoforo), mas somos todos pedestres em algum momento do dia, em Piacenza ou Salvador, e esta é uma condição que a existência dos pombos não nos permite esquecer.
Enquanto a Ciência se ocupar mais com o desenvolvimento dos carros que com os problemas do trânsito, nós, pedestres, podemos contar só com a boa vontade e gentileza encontradas nos vilarejos.
Ciao.
11 comments:
Allan, notei isso em Roma: apesar do trânsito caótico, a gente botava o pé na rua e aquele monte de Vespas e Fiats 126 (que vi ali pela primeira vez e que me pareceram filhos bastardos de Fiats 147 com Variants) paravam. Foi quando eu me senti no primeiro mundo. Quase esqueci o trânsito alucinado das avenidas de vale em Salvador.
Allan,
Piacenza, Terracina, Fondi, è tudo igual.
Eu nao gosto de dirigir por aqui, tenho medo.
ah, obrigado pela receita.
Meire
Duvidei quando me contaram, mas depois pude comprovar: existe no Brasil uma cidade assim. Em São Bento do Sul (SC) os pedestres também têm preferência para passar pela faixa, e ao primeiro indício de que um transeunte irá atravessá-la, os carros param. Dizem que esse comportamento se deve à forte influência da imigração Alemã e Polonesa na cidade.
Allan:
Revendo antigos comentários, encontrei teus passos no Meu Porto. Voltei, então, para rever teu canto e convida-lo a, se quiser e puder, novamente, passear por minhas letras. Receber tua Nau, será para mim, uma honra e uma alegria...
Míriam Monteiro - http://migram.blog.uol.com.br
Allan, eu literalmente viajo lendo seus textos. Bom, quer dizer então que os baianos, sempre tidos como a tradução do "slow motion", são rapidinhos e perspicazes atrás do volante? Nunca imaginei! Sobre o pé na faixa de pedestres provocar a parada automática dos veículos: passei por isso na Alemanha, e me senti diante de algo tão inusitado quanto ver um elefante voando. Nos únicos dois dias que fiquei por lá não consegui criar coragem de atravessar a rua como fazem os pedestres alemães. Mas, que vontade de conhecer a Itália, viu? Acho que eu nem ia reclamar se virasse alvo de cocô de pombo. ;)
Beijo,
Mônica.
Aqui em Belo Horizonte os automóveis (melhor, seus motoristas) estão em guerra contra os pedestres: quando alguém ameaça pisar na faixa, aí e´que eles aceleram!!! Estive em Salvador e presenciei a cena: um motorista pára em plena rua. Mil carros atrás, buzinando. Pois ele xingou todos, até à última geração: que se danem, EU parei aqui, irmão!
Allan,
Continuamos vindo e lendo seus textos, que são sempre ótimos. Apenas deixamos de comentar tanto porque descobrimos que estávamos babando.
Frank & Gaia
Allan, esta Itália dos teus olhos quada dia me parece mais estranha e louca. Ou serão meus olhos que lêem turvos? Pareço Marco Polo visitando terras inusitadas. Mas reconheci Salvador na sua essência mais cara, o jovial estrelismo. Em minha cidade quem bota o pé na faixa termina na faixa.
Reginaldo Siqueira singrando.org
Conheci Nápoles e entendo o que você disse sobre parecer com o Brasil. O que realmente assusta é descobrir que o primeiro mundo não é tão primeiro mundo assim. Parece tudo pra inglês ver. E aí eu me pergunto: e quem é esse tal inglês?
Lenine
Obrigado pela visita e parabéns pela vitória contra o Aldo Pereira. Invejo você por ter conhecido Embu quando ainda era longe de São Paulo.
Abratz.
Allan, aqui em BH está ficando muito difícil ser pedestre e motorista. O pedestre corre risco de ser atropelado se atravessa na faixa, fora dela, com o sinal verde para ele e fechado para os carros, em cima da calçada, na rua, etc. Ou seja, basta ser pedestre prá correr riscos seríssimos. Ameaças tanto de automóveis particulares, como tb de ônibus coletivos publicos e as motos e bicicletas então, estas que não respeitam mesmo. Prá ser motorista aqui tem que saber fazer muito controle de embreagem, pq só tem morros, cruzamentos, sinais de trânsito, isso qdo não é tudo isso junto, ao mesmo tempo. O trânsito não flui pq as pessoas são lerdas: radar de 60 km/h o pessoal freia o carro p/ passar a 30 km/h, o que vem atrás tem q estar muito atento prá não bater na traseira. Tem carro demais prá avenidas de menos. A BR-040 já virou rua, praticamente, e a via expressa, bairro. Tudo é lento, tudo é difícil, tudo é perigoso. A moda de seqüestros relâmpagos, q antes era no rio e sp, já chegou por aqui, e sair de carro pode ser pedir prá morrer ou ser assaltado, dependendo do lugar e hora. Reclama não, pq só de poder andar na rua e ser respeitado já tá bom demais!
Abração,
Ana Letícia.
http://mineirasuai.blogspot.com
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