Sunday, November 28, 2004

Sangue Frio

Caros e Caras,
Paz e saúde!

O problema com as pessoas arrogantes é que elas acreditam conhecerem todas as respostas, e, portanto, não têm necessidade de fazer perguntas. O imbecil, para essas pessoas, é o outro, que não precisa ser questionado. Apesar de achar que todo arrogante é, na realidade, um pobre coitado necessitado de ajuda para emergir de uma obtusidade fantasiada de auto-confiança, tenho dificuldade de lidar com eles. Meus encontros com esse tipo de pessoa criam as poucas oportunidades em que perco o meu auto-controle.

1986. Eu e meu irmão Dawidson voltávamos das férias em Salvador. Eu havia vendido a minha moto pouco antes do Carnaval, na esperança de comprar uma maior. Como o dinheiro era insuficiente e a oferta de motos usadas diminui naquele período, acabamos viajando na sua CB 400. A viagem estava quase no fim quando paramos por um problema no cubo da roda traseira. O borracheiro que montou a roda garantiu conhecer bem os mistérios que envolvem pneus de motocicletas. Mentiu. Cinqüenta quilômetros depois o pneu estourou no início de uma curva, após uma ultrapassagem a cento e quarenta por hora. A moto balançou. Numa fração entendi que iríamos cair e planejei rolar para fora da estrada, torcendo que o motorista logo atrás não decidisse sair da estrada também. Esperei a moto perder velocidade e cair desequilibrada, apesar da tentativa do meu irmão em mantê-la em pé até fora da estrada. Rolei tranqüilo, levantei-me, tirei o capacete, coloquei o boné que estava dentro da jaqueta e fui ajudar meu irmão a levantar-se. Infelizmente ele serviu de proteção à moto e machucou cotovelo, mão e joelho. Nada de grave. Dois dias depois completei o resto da viagem de moto, depois dos necessários reparos e após ter despachado o Dawidson de ônibus.

1993. Fui com um amigo a uma daquelas agências bancárias para clientes super especiais em Salvador. Edifício discreto, sem placa na entrada. Sistema de vigilância com câmeras, gorilas treinados para sorrir dentro de ternos que não combinavam com o clima local. A agência ficava num dos andares altos do prédio e, à saída, o elevador teve uma pane. Desceu alguns andares solto, em queda livre. O pânico provocou gritos, enquanto eu procurava uma fresta que me permitisse elevar-me do piso do elevador, reduzindo os efeitos do impacto. Decidi que treparia no apoio à altura das mãos, caso o freio de emergência não funcionasse até… funcionou! Permaneci imóvel desde o início, tranqüilo. Todos saíram apavorados do elevador e pude notar algumas calças molhadas. Meu amigo apenas sussurrou: “Preciso de um café!” Pedi um conhaque no bar próximo e dei a ele. De um gole só ele esvaziou o copo e, ainda branco, pediu: “Pegue a chave no meu bolso e dirija você.”

1995. Ainda em Salvador, ia pela orla com um amigo. O semáforo do antigo aeroclube, pouco distante, fechou. Os dois carros à minha frente pararam, ocupando as duas faixas. Enquanto diminuía a velocidade, observei o chevete que voava no meu retrovisor. Procurei uma guia rebaixada e parei vizinho a ela, de modo a subir na calçada vazia, caso a frente do chevete não abaixasse antes de um determinado ponto, sinal de que haveria freado. Como o limite foi superado, subi na calçada e observei o distraído voador tentando frear aquele pequeno e ultrapassado representante da tecnologia nacional, que indomável, deu um cavalo de pau antes de bater no meio-fio alto, bem ao lado de onde eu me encontrava estacionado e a uns cinqüenta centímetros do carro à frente. Tudo aconteceu em poucos segundos e eu sequer interrompi a conversa com o amigo, que me observava sem entender o que acontecera.

2004. Dia dezoito de novembro, aniversário do amigo Cássio. Eu me encontrava nas câmaras frigoríficas do departamento de queijos e salames, que ficam no fundo do imenso depósito da empresa onde trabalho. O telefone toca e eu atendo. O gerente do depósito, que tem uma fala de difícil compreensão para mim (e completamente incompreensível para os italianos) me pede para levar os funcionários para a frente. Pergunto “pra frente, onde?” e ele responde “pra cá, no meu escritório.” Chamo os funcionários e transmito-lhes a orientação. O telefone toca e eu o atendo novamente. Era o mesmo gerente, que repetia a solicitação de modo impaciente. Digo-lhe um desaforo e apresso o pessoal. Quando atingimos o meio do depósito, ouvimos o estouro de algumas garrafas do depósito e só então notamos a fumaça. Era um incêndio. Os funcionários, capitaneados pelo “Grande”, um homem de um metro e noventa e cento e trinta quilos, correm em direção a saída. Lembro-me dos outros funcionários das câmaras de frutas e verduras e volto para evacuar o local. Saímos pela imensa porta, nos fundos do depósito, a dez metros das câmaras. Contornamos o depósito e eu pergunto ao gerente porque ele simplesmente não avisou que havia um incêndio. Meia hora depois, quando os bombeiros já haviam apagado o fogo e controlavam a situação, voltei ao meu escritório para responder o e-mail de uma amiga com dificuldades na tradução de um texto, apesar da confusão.

2004. Vinte e cinco de novembro, quinta-feira passada, uma semana depois do incêndio. Na realidade a quinta-feira havia apenas começado, pois eram meia-noite e cinco minutos. Dormíamos todos quando acordei com a cama que balançava e a cabeceira batia na parede. Olhei para a janela e ela também balançava. Achei um absurdo a natureza mandar-nos um terremoto em uma zona livre desse tipo de advento. Pulei da cama e pensei nas meninas e no beliche enquanto a Eloá acordava com o meu movimento. “Que foi?”, perguntou. “A casa tá balançando”, respondi. “Eu ouvi alguém batendo na parede, assim: tum, tum, tum.” Mas o terremoto havia parado e ela voltou a dormir. Fui para a sala, separei uns casacos, bolsas, carteiras e destranquei a porta, liberando o percurso para o caso de um segundo terremoto. Depois, tomei um chá, li um pouco e voltei pra cama. De manhã os jornais informavam: cinco vírgula dois graus na escala Richter.

Apesar do sangue frio, confesso ter assustado com o terremoto. Impotente, decidi que vou descarregar no primeiro arrogante que encontrar pela frente.

Ciao.

6 comments:

Rafael Galvão said...

Fique longe de mim, seu... seu... seu sem coração! :)

Felicia said...

Allan e Rafael,
Isso não tem a menor graça,viu? toda vez que quero comentar no blog de um, o outro já chegou primeiro. E eu tenho que ficar repetindo comentários: seus, seus, seus...sem coração. :)
Abraços,
Felicia

Anonymous said...

Allan, tá difícil associar a imagem de homem de gelo a quem imaginei que você é. Acho que ele só surge em situações extremas. Só que o homem de gelo aparece também quando nos tortura. O texto anterior foi uma tortura explícita. Abraço.
Reginaldo Siqueira singrando.org

Leila Silva said...

Allan,
Foi engracado ler este post (li os dois ultimos)agora pois o meu irmao acabou de chegar de Salvador e estava descrevendo umas situacoes parecidissimas...em todo caso ele adorou.
Puxa, mas que controle...e' bom ter alguem assim por perto.
Quanto ao seu comentario la no blog, bom, confesso que estava mesmo meio down quando escrevi aquele texto mas, infelizmente, a estoria da minha colega era aquela mesmo. Vou aceitar o seu desafio e vou me empenhar ao maximo para criar um texto no genero mas mais alegre.
Abracos

Anonymous said...

Allan, já vi que você não gosta de arrogantes, mas, e quanto aos invejosos? Espero que não tenha nada contra, pois... AAAAAI, QUE INVEEEEJAAAA!!! Diante de uma coitada de uma lagartixa (com barata também funciona) minhas pernas ficam bambas e eu começo a tremer. Você consegue, então, imaginar o que eu sentiria se passasse por essas situações que você descreveu, né? Acho que desmancharia que nem paçoca! Conta pra mim o segredo da transmutação de paçoca em granito, por favor!
Beijo,
Mônica

Anonymous said...

Olá Allan....Menino sangue frio é pouco eu diria que vc nesses momentos neutraliza sangue, nervos e intestino..rsrs. Euzinha....teria feito o maior espanta reganho...em todos os casos...


Abraços da terrinha pra ti

Sandrinha