Thursday, September 09, 2004

Italiano dedo-duro

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Às vezes, aquilo que parecia moda acaba resistindo e torna-se parte da cultura de uma sociedade. Um velho tema que se recicla, tornando-se cada vez mais atual, o personagem Big Brother do livro 1984 de G. Orwell, é um desses casos. No país de Dante e do macarrão as pessoas se sentem vigiadas vinte e quatro horas por dia. Não é à toa que, segundo uma pesquisa publicada na revista Panorama, o italiano é o povo mais triste da Comunidade Européia. Assustados? Imaginem um país onde as pessoas tentam provar a própria superioridade culinária sobre a França e Espanha; ou cultural contra a mesma França e Inglaterra; histórica contra a Grécia; industrial contra a Alemanha; tecnológica e econômica contra França, Inglaterra e Alemanha. É um exercício de auto-convencimento tão inútil quanto angustiante como discutir as qualidades do azul sobre o verde. A mesma pesquisa levantou que 70% dos italianos gostariam de viver em outro lugar (avisem o Lula, o Brasil é a meta preferida).

Retomando o Big Brother. O sujeito vai até a loja comprar uma tv, um rádio, uma filmadora, uma antena, um DVD ou um simples par de caixas acústicas. Qualquer coisa relacionada a um aparelho de televisão ou a um rádio. O balconista preenche a nota fiscal com os dados pessoais do comprador, incluindo o endereço e envia uma cópia ao Departamento de Entradas ($) que verifica se o comprador paga a assinatura da RAI (a Tv do estado). O mesmo vale para vencedores de prêmios anunciados pela Tv e rádio. O pagamento da assinatura da RAI é obrigatório para quem possui ao menos uma televisão ou um rádio, apesar de ser uma emissora de sinal aberto, ter a programação mais decadente e ser tão comercial quanto as outras.

Conseguiu driblar a compra na loja indicando nomes e endereços falsos? Não se preocupe, você será denunciado pelo colega de trabalho invejoso, pela cunhada ou pelo primo chato. Isso no caso de ser morador antigo, pois caso tenha acabado de se mudar, a denúncia será feita pela vizinha do andar de cima, aquela senhora simpática que mora sozinha e que acaba de substituir os binóculos velhos por um modelo mais eficiente. Em breve você estará recebendo a intimação acompanhada do devido recibo anual. E pague! Caso contrário a polícia virá verificar as provas e a coisa será pior.

A mesma vizinha (a do andar de cima) não hesitará em chamar o Telefone Azul, caso escute ou imagine mau tratamento às crianças. Isso inclui deixá-las sozinhas em casa para ir ao mercado. Diante de uma denúncia de mau tratamento, a polícia primeiro leva as crianças a uma instituição e os pais à delegacia, depois investiga a situação.

Comprou um carro muito mais caro do que permitiria o seu orçamento doméstico (apesar das imensas facilidades de pagamento)? Começou a fazer extravagâncias que demonstrem enriquecimento repentino? Logo, logo a Guardia di Finanza estará visitando você, atendendo a diversas denúncias. Não ofereça cafezinho: eles não só não aceitam como também não entendem nada de gentilezas.

Esqueceu-se de fazer o cadastro na empresa de saneamento urbano para a coleta do lixo? – luz, água, gás e telefone só tem quem paga – eles (a empresa) e os vizinhos não. Um dia você irá receber a conta.

O programa Striscia la Notizia é a atração campeã de audiência da Tv italiana (mais de 40%). Apresentado em forma de noticiário satírico no horário nobre, logo após o jornal das oito, os apresentadores mostram as gafes cometidas em todas as emissoras, sacaneiam o patrão e primeiro-ministro Silvio Berlusconi, (na realidade acredito ser uma estratégia para manter a credibilidade do programa) e promovem a entrega do troféu “Anta de Ouro” aos mais merecedores. Sempre com um venenoso sarcasmo, fazem denúncias e mostram abusos de todo tipo: Certa vez localizaram um aeroporto e entrevistaram as pessoas que trabalham no local desde a inauguração, há quatro anos. A médica, o responsável do Departamento de Aviação Civil, o rapaz que trabalha no bar, policiais que fazem a segurança (de metralhadora e tudo) e que impediram à equipe de filmagem o acesso à sala de embarque, e outros funcionários. Tudo isso não seria engraçado de forma ridícula e assombrosa se não por um detalhe: passageiros e voos só a muitos quilômetros dali! (!!!!!) Não houve sequer o vôo inaugural. Tudo muito limpo e cuidado; a pista de pouso toda equipada; torre de controle; música ambiente. Tudo absolutamente vazio. O rapaz do bar informou que o único trabalho é tirar o pó. Com um rosto inexpressivo, continuava a repetir: “São dezenove cafés e dois copos de leite por dia. O leite, tomo eu…”

Outra coisa que impressiona é a capacidade de investigação da polícia italiana. Através de um fio de cabelo encontrado no carro usado pelos assassinos de um político e de uma bituca de cigarro numa rua de Roma meses depois, identificaram e prenderam os principais líderes das Brigadas Vermelhas. Conseguem localizar criminosos que tenham cometido o deslize de usar cartões telefônicos (o celular seria burrice demais). Através do código eletrônico do cartão, é possível identificar todas as chamadas efetuadas.

Câmeras filmando as ruas; todos os dados pessoais sendo cruzados e averiguados; depósitos bancários acima de certo valor que necessitam de justificativa. Balconistas, jornalistas, a vizinha e a cunhada. O espírito orwelliano saiu da moda para entrar na tradição. A invenção do tal micro chip localizador para ser implantado na pele é somente uma tentativa de baratear os custos.

…E esse povo sonha ir morar no Brasil.
Avisem ao Lula!

Ciao.

7 comments:

Rafael Galvão said...

Brilhante.

Mas a grande surpresa, mesmo, é ler que o italiano é considerado triste. mas se ele é triste, os suicidas noruegueses são o quê? :)

Mineiras, Uai! said...

Allan, fiquei de cara em saber que a TV aberta aí na itália é paga! Que absurdo! E o que a vizinha "simpática" do andar de cima ganha em te denunciar por não ter pago a RAI? Se aqui no Brasil inventassem de ter de pagar prá ter TV aberta, acho que ninguém teria televisão! Só falta ter que pagar prá escutar rádio, pagar prá tirar retrato, pagar prá andar na rua... Realmente, se eu morasse na Itália, ficaria triste de ter que viver vigiada. Mas como disse o Alex Galvão, se os italianos são tristes, o que seriam os noruegueses, suecos, japoneses (...) suicidas?
Prá onde o mundo vai? Acho que nem Deus sabe mais... Depois do que aconteceu na Rússia este final de semana, não sei se será ainda possível a paz mundial (pelo menos enquanto eu estiver viva, acho meio difícil).
Abçs
Ana Letícia
http://mineirasuai.blogspot.com

Leila Silva said...

Allan,

Fiquei meio pasma sim! Será que até mesmo essa 'alegria' faz parte do jogo?
Pois é, a gente está sempre aprendendo...é verdade. Tudo isso que você disse tem lógica, no final das contas, o italiano (pelo menos os romanos) tão preocupados com a aparência, devem estar tentando provar alguma coisa. Agora, que a comida é boa, ah! isso é.
Abração
Leila

ps: Muito obrigada pelas visitas e pelas palavras.

Leo said...

Italianos são tristes? Que estranho... Eles parecem pra cima, abertos, friendly...

Anonymous said...

É...!
Assusta mesmo saber que o italiano tem muita pose mas é pouco satisfeito com a própria vida. Aposto que você já escutou "tirei férias na praia. Não devo ter inveja de ninguém!" que a gente ouve sempre que algum balconista encontra alguém bronzeado. Só (con)vivendo para entender.
Abraços,
Diogo

Anonymous said...

Allan, gosto muito de teus posts descritivos sobre a Itália, mas prefiro imensamente teus textos que falam do comportamento deste povo. Você é bem perceptivo e noto que existe um certo ranço, como dizendo: se eu pago outros têm que pagar. Se for uma característica do povo é algo que realmente faz as pessoas infelizes. O clima delacionista (herança do facismo?) a falta de laços, deixa as pessoas sós e infelizes. Muito interessante. espero mais.
Reginaldo Siqueira mblog.com/singrando

Anonymous said...

Allan, como eu gosto da forma como você escreve!
Nora Borges